Quando Tolstoy saiu do hospício, era uma manhã cinzenta, daquelas que os cínicos chamam de “fresca” e os pobres apenas suportam.
Tinha o cabelo como um ninho de corvos e a barba de um profeta derrotado. Caminhava com passos curtos, mas firmes — como quem sai de uma prisão e entra noutra, com a vaga esperança de que talvez agora seja pior.
Foram vinte anos entre paredes acolchoadas, doses exatas de sedativos e médicos que falavam com ternura bovina. Lá, ao menos, havia um horário para o almoço.
Mas agora Tolstoy voltava ao mundo. O mundo real.
O mundo dos são-mentes.
Logo na primeira esquina, um homem com olhos vidrados lhe ofereceu “coisa boa, pura, baratinha”.
Tolstoy recusou com um aceno, sem olhar.
Poucos metros adiante, uma mulher em minissaia, com o corpo perfumado e a alma enterrada, lhe sorriu com os dentes de ouro.
“Vem comigo, véio. Faço barato.”
Tolstoy sorriu de volta. Mas era um sorriso que não se ajustava no rosto.
Andou mais. Viu um velho dormindo na sarjeta, o corpo coberto por jornais que anunciavam um escândalo político: “Deputado acusado de desviar 32 milhões é solto por falta de provas”.
Tolstoy abaixou-se, leu a manchete três vezes, e deixou o jornal onde estava, sobre o peito do mendigo.
— Ao menos o papel te esquenta — murmurou.
Passou por um hospital. Gritos. Ambulâncias. Crianças com febre. Mães com olhos secos de tanto chorar.
Pediu um copo d’água. O segurança respondeu:
— Só para pacientes, senhor.
Tolstoy continuou.
Em frente a uma igreja, viu fiéis orando por prosperidade.
Atrás da igreja, um pastor contava notas gordas numa sacola preta.
No alto da torre, o sino não tocava — talvez de vergonha.
No fim do dia, sentou-se num banco de praça.
Três adolescentes discutiam sobre quem roubava melhor celular.
Um político sorria num outdoor promissor: “Renovação com Deus, Família e Progresso”.
E dois velhos, de olhos vermelhos e pele ossuda, dividiam um pão velho com a precisão de um ritual.
Tolstoy olhou ao redor. O mundo estava inteiro, ali, diante dele.
Mas era um mundo rachado por dentro.
Uma casca de ovo flutuando num rio de lama.
Pegou o último trocado do bolso e entrou numa padaria. Pediu café.
— Vai querer açúcar? — perguntou o atendente.
Tolstoy ficou em silêncio. Depois respondeu:
— Não. Já me basta a amargura.
Na manhã seguinte, Tolstoy voltou ao portão do hospício.
Bateu três vezes. Esperou.
Um enfermeiro atendeu.
— Tolstoy? Mas… o senhor saiu ontem.
— Eu sei.
— E já quer voltar?
— Lá dentro — disse ele — todos eram loucos.
— E aqui fora?
Tolstoy suspirou:
— Aqui fora… é pior. Aqui todos fingem ser sãos.
Entrou sem dizer mais nada.
Deitou-se na velha cama, fechou os olhos e sorriu.
Lá fora, o mundo queimava lentamente.
E ele, enfim, descansava.
A tragédia, é claro,
não era ele.
Era o mundo.
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