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Era a primeira vez que eu notava o sorriso
dela. Nunca havia imaginado que aqueles olhos
tão escuros e belos, pudessem estar sendo dirigidos
para mim. Lá estava ela, sentada na mesa em frente.
A conversa como sempre girava em torno de coisas
triviais, como: aquele ali é um profundo vigarista;
aquela ali me ajudou num momento de dificuldade; tal
e tal foi despedido; tal e tal foi contratado; estamos nessa
crise por que o nosso prefeito roubou; já sabíamos disso, é
claro; nós somos os únicos que iriamos fazer a diferença na
política. Eu ria, embora nada disso me importava.
Eu olhava de novo para ela, que estava tão perto e tão longe
de mim. Quase um paradoxo. Ela sorria. Não desviava o olhar de mim, embora eu desviasse de vez em quando.
"Coloca outra música, xará! Essa tá batida!" ouvi no canto gritar o homem de cabelos grisalhos no canto da nossa mesa. Falava mais alto do que todos ali.
Mudou-se a música. Ela desviou o olhar, conversando com
a amiga.
"Dá outra coca pra mim, camarada!", "porra, cê não bebe memo, em?!", "é que ele quer ser padre, não é mesmo?", "como, se ele é protestante?", "nada disso. Só tenho origem judaica-cristã. E gosto desses assuntos", "então vai virar beato mesmo". Há!há!há Sorri e ri junto das irônicas palavras, recordando os versos do Primeiro Salmo.
Ela me olhava, e eu a encarava, desejando saber o que
significava aqueles olhares. Poderia ser apenas que ela
fosse uma mulher que gostasse de sorrir, ou se estivesse
dizendo sem palavras: tome uma atitude, idiota, e venha
falar comigo.
Assim a noite passava, em conversas, risos, e inúmeras
gracinhas. Vi, quando ela se levantou e foi com a amiga,
ainda sorrindo, e entrou num carro preto, desaparecendo
na esquina.
Eu, bocejando e com sono, entrei em meu carro,
contente por tudo ter acontecido e por nada ter acontecido.
Ia recitando para mim mesmo em voz baixa o primeiro Salmo: bem-aventurado o varão que não anda segundo o conselhos dos impios...
(foto: ilustrativa)