UM
No princípio de todas as coisas, quando não havia estrelas nem mares, Bekar caminhava sozinho no silêncio do alto firmamento. Ele era chamado de o Único, pois sua luz brilhava sem fonte, e sua voz era canção antes que existisse eco. Mas dele nasceu também um outro, seu irmão, Karan, belo de rosto, mas de corpo enredado em patas de aranha, como se o engano tivesse tecido sua própria carne. “Tu me chamas irmão,” dizia Karan, “mas não aceito a tua luz que me cega.” E Bekar respondia, com tristeza: “Não é minha luz, mas a luz do Ser que nos criou. E não suportas a ti mesmo, não a mim.”
DOIS
Houve então a primeira luta. Karan lançou-se sobre Bekar e cravou-lhe as presas no calcanhar, tentando envenenar-lhe o passo. Bekar caiu de joelhos, mas sua mão segurou o pescoço da aranha e, com voz de trovão, lançou-o ao vazio. “De ti nada restará senão fome e trevas, até que aprendas humildade.” Mas Karan, caindo, gargalhou: “Se não posso possuir tua luz, hei de destruí-la em quem tu amas.” E assim, desde o princípio, o veneno do ódio se tornou seu alimento.
TRÊS
Muito tempo depois, quando Bekar atravessava as margens do Nada, encontrou diante de si o Espelho do Mundo, lago cristalino que refletia não o que é, mas o que pode vir a ser. E ali, como se houvesse sempre esperado, estava Guzelik, a bela, deusa do amor. Seus olhos eram auroras e seu semblante era paz. Bekar contemplou-a em silêncio, e por um instante esqueceu-se do irmão caído. “Tu me procuravas?” perguntou Guzelik. Bekar sorriu e respondeu: “Não, mas encontrei mais do que buscava.”
QUATRO
Eles se sentaram juntos diante do Espelho, e conversaram como dois viajantes que se reconhecem antes mesmo de dizer os nomes. Guzelik falou do desejo de criar, e Bekar lhe contou das dores da luta. “O mal sempre retorna, mesmo quando é vencido,” disse ele, “como uma sombra que se move com a luz.” E Guzelik retrucou: “A sombra existe porque a luz existe; mas onde há amor, a sombra não reina.” Então, de sua união, surgiu um planeta, coroado de mares e montanhas, onde rios cantavam como harpas e árvores dançavam ao vento.
CINCO
O planeta era belo, mas a beleza desperta inveja. Do abismo, Karan viu a obra e roeu-se de raiva. “Um espelho foi dado a ela, mas eu serei o espelho da destruição. Onde houver rios, lançarei veneno; onde houver árvores, trarei fogo.” Em suas cavernas de sombra, teceu uma teia tão vasta que podia cobrir céus inteiros, e em sua mente ardia um único propósito: desfazer o amor que ele jamais poderia ter.
SEIS
Certo dia, Bekar falou a Guzelik com olhar grave: “Meu irmão não cessará. Já me mordeu uma vez, e sua fome não se extingue. Virá contra nós.” Mas Guzelik não se perturbou; ergueu o rosto e disse: “Então lutaremos não só com a força, mas com aquilo que ele jamais conhecerá: a compaixão.” Bekar, porém, calou-se, pois sabia que contra a malícia do irmão até a compaixão podia ser retorcida.
SETE
Houve um tempo em que Karan subiu do vazio como fumaça, e sua forma terrível cobriu metade do firmamento. Os mares do novo mundo estremeceram, e as montanhas tremeram. “Vês, irmão?” bradou ele. “Teu planeta é frágil como vidro! Basta minha teia e tudo se quebrará.” Bekar respondeu com voz de trovão: “Não quebrará, pois foi gerado de amor, e amor é mais forte que vidro.” Então lutaram de novo, e mais uma vez Bekar lançou Karan ao abismo. Mas o veneno no calcanhar ardia ainda, lembrando que a vitória não era plena.
OITO
Passaram-se eras, e o mundo de Bekar e Guzelik florescia. Povos nasceram, aprendendo canções, artes e memórias. Os rios refletiam o céu, e as montanhas guardavam segredos. Guzelik sorria ao ver as crianças correrem pelas colinas, e Bekar, embora ferido, sentia no coração uma paz que jamais conhecera. Mas sempre, em noites de silêncio, ele ouvia no fundo do vento o sussurro da aranha: “Ainda estou aqui.”
NOVE
Certa vez, Guzelik levou Bekar de volta ao Espelho do Mundo. “Olha,” disse ela, “a criação é um reflexo nosso. Mas não devemos possuí-la como reis, e sim guardá-la como pais.” Bekar inclinou-se sobre a água, e viu seu próprio semblante refletido ao lado dela: luz e amor unidos. Mas quando as ondas se moveram, também viu, fugaz, o rosto de Karan, rindo como se o espelho fosse dele. Bekar recuou, e Guzelik pousou-lhe a mão: “Não temas. O mal sempre tenta ver-se como centro, mas nunca poderá ser raiz.”
DEZ
O ódio de Karan cresceu tanto que já não o alimentava: consumia-o. Ele rangia as presas contra o vazio, e cada mordida em si mesmo gerava monstros, pequenas aranhas que rastejavam em busca de brechas no mundo. “Destruir-vos-ei por meio de vossos próprios filhos,” dizia. “O amor vos dá frutos, e eu darei venenos.” E assim a guerra não era apenas entre irmãos, mas entre descendentes do amor e descendentes do rancor.
ONZE
E Bekar ergueu-se uma vez mais, contemplando o horizonte do planeta. “Se há luta eterna, que seja eterna a esperança,” disse. Guzelik assentiu: “A esperança não é menor por ser combatida; é maior, pois sobrevive.” E os povos do mundo ouviram fragmentos dessas palavras como se fossem ecos em suas lendas. Aprenderam que não era apenas Bekar quem devia lutar, mas cada um que amava a vida diante da sombra.
DOZE
Assim começou a história dos imortais, não apenas como lembrança de batalhas, mas como convite à escolha. Pois Bekar e Guzelik continuam a caminhar sobre o planeta que geraram, e Karan ainda espreita no vazio, roendo-se de ódio. Mas o mundo não é feito de ódio, e sim de amor; e ainda que as sombras caiam, a luz sempre se levanta. E quem ouve esta balada deve escolher: seguirá o caminho do veneno, ou do amor que sustenta céus e mares?