domingo, 14 de dezembro de 2025

Dois one-liners

 






o amor que dura

 


Passarito - piada de suruba

 








O IDIOMA BRASILEIRO

 

O IDIOMA BRASILEIRO

...Lusámérica Latim em Pó...
...

Ó Língua Brasileira, que em fulgor de luz noviça 

Vibra no vasto sul da Pátria amada,

 Não és a voz de Portugal cansada, 

Mas alma nova em nova e forte liça!


Em ti não há a dor da velha justiça,

 Nem o rumor da história já findada; 

És NA América o verbo, renovado, 

Um sol que a lusitânia revitaliza!


Tu és o Brado, o sotaque que arrebata, 

A gíria que na esquina se dilata, 

O neologismo ardente e tropical!

Com o vigor da mata e do sertão profundo,

 És o idioma maior do Novo Mundo, 

Mais rico em corpo e menos ancestral!

A Escassez e os Ossos da Memória

 O calor pegava de jeito, um bafo de fim de tarde sem a pressa habitual da ventilação forçada. Desde as duas, o silêncio era uma chaga sonora na Paulista, só o buzinar irritado e distante, sem semáforo. O pequeno homem, Mário, estava sentado no peitoril da janela do terceiro andar, o corpo franzino pendido para dentro, quase uma dobra de pergaminho gasto, as mãos cruzadas sobre os joelhos finos. A cidade, lá embaixo, respirava um ar pesado, de estafa e desarranjo.

"É o fim, Mário. O fim," ele cochichou para o ar imóvel, mais um ruído dentro do estômago que uma palavra de fato.

A falta de luz não era nova, mas esta… esta durava, vinha com ares de permanência, de promessa descumprida. Sentia a irritação crescer nos músculos, o suor fino escorrendo na têmpora. Irritação com o óbvio: a fragilidade de tudo. A eletricidade, os fios, o cimento, o gás, o motor, a vida que era feita desses enganos sólidos.

Aí veio o pensamento, rápido, como um estalo de vela acesa: e se não voltar? Se for só o primeiro sinal?

Fechou os olhos. A escuridão interna era mais fresca. Viu então, no olho da mente, não o caos do asfalto, mas a vastidão silenciosa do nada. O mundo dobrando-se sobre si mesmo, não em fogo e trovão, mas numa lentidão de poeira, de tijolo que volta a ser argila e areia. A cidade, a sua São Paulo, reduzida a um monturo de ferros retorcidos e sombras longas. E ele ali, Mário, o pequeno homem, o último vestígio, talvez, de uma linhagem que já vira o mundo acabar e recomeçar tantas vezes.

Lembrou da avó. Dona Clara. O cheiro de azeite e alecrim. A voz, uma toada arrastada, meio portuguesa, meio castelhana, que ele nunca soube decifrar por completo.

"Vovó," ele murmurou, a língua sentindo o gosto da palavra antiga. "Você lembrava, não lembrava? Do que é preciso para o escuro não ser o fim."

A avó Clara, sentada na cadeira de balanço no quintal, sob a mangueira do Brooklin. O avô Elias, judeu espanhol, de Málaga ou de Sevilha, que ele nunca soubera ao certo, só a história da travessia. Eram a diáspora em pessoa.

"O sol se põe, Mário. E a gente acende o que tem. Um candeeiro. A brasa. A memória."

A voz da avó era agora viva dentro dele, uma agulha a costurar o tempo.

"Mas aqui, vovó," ele respondeu, agora em voz alta, a garganta apertada pela seca, "aqui não temos candeeiro. Só o disjuntor. E ele está morto. Nós somos gente do disjuntor. Gente fraca."

O avô Elias, nos seus ternos velhos, o rosto de um mapa de rugas profundas, os olhos muito escuros, fixando um ponto invisível no horizonte do quintal.

"Vê, Mário," o avô dizia, a voz grave, cansada de mundo. "A terra é redonda e muito vasta. O Brasil é vasto, mas não é a nossa terra. A nossa terra… a nossa terra é feita de ossos. Dos ossos que deixamos na Espanha e dos que vamos deixar aqui. O os de onde a gente vem e o os de onde a gente não volta mais."

Mário sentiu um arrepio. A falta de energia era isso. A fragilidade do não-lugar. Eles tinham chegado com pouco, com a pele, com a língua, com a memória e a crença de que o novo país aguentaria. Mas São Paulo, com seus milhões de luzes apagadas, parecia desmentir os avós.

Ele abriu os olhos. O cheiro de esgoto subia da rua, misturado ao calor do asfalto. A cidade era um monstro deitado, sonhando um pesadelo sem eletricidade.

"Não," ele disse, balançando a cabeça de leve, quase uma negação involuntária. "Os ossos são os meus. E os seus, avó. Não a luz."

Ele se levantou, cambaleando levemente, o pequeno homem procurando a caixa de fósforos na penumbra do apartamento. A vela estava em cima da mesinha de centro, um toco gasto. Se o mundo estivesse mesmo acabando, seria com um calor abafado e o cheiro de parafina barata. E a certeza incômoda de que a força, a verdadeira força, nunca estivera nos fios.

"Acende o que tem," ele repetiu a frase da avó. E riscou o palito, a pequena faísca rasgando a escuridão com um som seco, familiar.

OITO PÁSSARINHOS



1. Abro a janela

Abro a janela do dia como quem aprende a respirar.

 O mundo entra sem pedir licença — 

poeira, pássaros, notícias. Fico.

 Entre o barulho e o gesto simples de existir.

2. Inventário da Manhã

Um copo d’água, um nome esquecido, a luz caindo no chão. Tudo cabe na manhã se eu couber também. O resto é pressa.

3. Geografia Íntima

Há ruas dentro do peito, becos de medo,

 avenidas de vontade. 

Caminho por mim sem mapa,

 errando certo.

4. Manual de Sobrevivência

Guarde silêncio para a noite. 

Use palavras como abrigo. 

Não discuta com a chuva.

 Aprenda a cair sem quebrar o céu.


5. Carta ao Tempo

Tempo, não me apresse. Ainda estou aprendendo 

a perder com elegância e a ganhar sem ruído.

 Deixe-me aqui mais um pouco.

6. Corpo em Trânsito

Meu corpo atravessa o dia como um ônibus cheio. Leva sonhos em pé, saudades sentadas, um futuro cochilando. Chego inteiro por insistência.

7. Breve Teologia

Não creio em respostas. Creio em tentativas. 

Se há um deus, que seja intervalo: uma pausa

 onde a vida respira.

8. Fecho

Quando a noite fecha o livro, fico entre páginas. 

Não terminei. Amanhã continuo — com outra luz,

 outra voz.

CORAÇÃO DE PALAVRAS


Não escrevo pra viver.

Pra mim, viver basta —

feito água que segue sem perguntar ao chão.

Escrevo porque a mão coça de mundo

e o peito quer dizer sem saber.


Escrevo e não uso isso

pra sonhar.

Sonho é bicho que corre solto,

não cabe em papel sem se ferir.


Lá fora o mundo é barra pesada,

pedra com dente,

estrada que morde.

Ficar escondidinho no quarto

é terrível —

sei, covardia miúda,

mas às vezes a coragem

também se recolhe pra não morrer cedo.


O mundo lá fora tem armas,

olhos duros, pressas afiadas.

Eu não tenho aço nem pólvora,

nem escudo que aguente a brutalidade do dia.


A única coisa que tenho

é um coração

feito de palavras.


Coração falante,

meio torto, meio bicho-do-mato,

que sangra letra quando aperta

e aprende a bater

no compasso do indizível.


Com ele enfrento o caminho,

sem vencer, sem perder —

indo.

Porque palavra, quando é viva,

também anda.