quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
terça-feira, 29 de dezembro de 2020
domingo, 27 de dezembro de 2020
A CAVALA - conto
A CAVALA
Em dezoito de agosto a chuva caia
calma e suave pelos telhados das casas do Norte. As pessoas iam para os
mercados e voltavam felizes por terem nas sacolas muitas frutas e legumes.
Nesse tempo os lobisomens eram raros, e só podiam ser vistos nas matas e
florestas do outro lado do rio que cruzava a cidade como uma enorme serpente ondulada.
Algumas pessoas do lado direito entre a longa ponte e o ponto das prostitutas e
de outras partes do país chamavam a cidade de a Cidade do Rio. O nome da cidade
era muito antigo e algumas pessoas velhas e rotas, capazes de se lembrar de até
mesmo das coisas mais profundas do oceano diziam que o seu nome verdadeiro
significava “Veia de Prata”. A cidade se chamava Altopicoshuypis.
Os mais
corajosos aqueles que tinham dentes de ouro na frente de toda a boca se
embrenhavam na mata em busca de encontros perigosíssimos. Voltavam contando
coisas que arrepiavam os cabelos dos mais covardes, e fazia o dono do bar mais
movimentado de Altopicoshuypis pigarrear como que duvidando de tudo o que
contavam.
Dei de cara com um enorme Mapinguari, disse
Fulorzinho, que era um caçador experiente. Ele era grande e vermelho, nunca vi
uma criatura mais estranha e lenta.
É mesmo?
Duvidava o dono do bar, o turco Malamed. Era vermelho e grande?
Isso mesmo
foi o que eu acabei de falar, turco. Retorquiu Fulorzinho irritado. Vocês da
Turquia não sabem ouvir não?
- Quem tem
ouvido escuta. É o que dizia meu pai quando morávamos em Istambul. Mas é
difícil acreditarmos em fábulas como essas Fulorzinho.
- Pois o
bicho parecia uma preguiça enorme. Devia ter quatro metros de altura, disse
Fulorzinho enxugando a boca com um guardanapo em forma de toupeira.
As
conversas do bar do turco Malamed giravam em torno de tais acontecimentos.
Entre bebidas e comilanças alguns insensatos ousava contar casos de encontros
entre eles e os vampiros da região. Poucos ousavam contar sobre os curupiras
que andavam na mata, prendendo caçadores para deixarem em paz as pequenas
criaturas que lá viviam.
No pequeno bairro de Boa Esperança, Melquisedeque não levava em
consideração nenhuma dessas bravatas. Diziam que ele era igual ao velho turco,
por isso não aguentava escutar lendas. As pessoas acenavam a cabeça em
reprovação quando Melquisedeque passava, por causa da sua teimosia em negar
tudo o que fosse fundamentalmente sobrenatural. O coração de Melquisedeque se
punha para fora como um pássaro de ferro, fazendo as moças de seios enormes
suspirarem de paixão por ele. Sua esposa já estava grávida e o bebê estava
prestes a sair andando da sua barriga quando avistou uma enorme serpente no
quintal e tornou a voltar correndo para a proteção do útero da mãe.
Seu filho vai ser um covarde Melquisedeque,
disse Florbela gargalhando de prazer em sentir o bebê novamente chutando sua
barriga.
Ele vai ser macho que nem o pai, respondeu
Melquisedeque bufando entre o dente muito branco e sua língua de hipopótamo. E
também não vai acreditar nas histórias da carochinha que esse povo sem noção
vive repetindo como papagaios no bar do turco.
As noites se tornaram frias e húmidas pela
cidade quando aconteceu algo insólito que arrepiou o coração do mais valente.
Disseram que Ana Batista, filha do coronel Batista, havia tido um filho com o
vaqueiro Jorge Pingão. O vaqueiro que era o mais respeitado empregado do
coronel recebeu a benção do patrão para se casar com a menina, que de tão alva
conseguia parecer com um urso polar mesmo vivendo em uma terra em que a neve só
aparecia quando os anjos faziam questão de derramar caspas pelos orvalhos do
campo. O vaqueiro e a menina tiveram um filho. Nessa época o vaqueiro era
acostumado a ler livros terríveis de encantamentos, e tinha tido um terrível
problema com uma feiticeira que morava do outro lado do rio, entre as árvores.
Por causa do maleficio enviado pelas bruxarias de tal bruxa o vaqueiro passou
dia sim e dia não a se transformar em um terrível lobisomem de plumagens secas,
com a cara de lobo percorrendo a cidade, seus olhos vermelhos espumando como
saliva, e sua boca escancarada querendo sangue e sofrimento.
Tenho certeza que a feiticeira o encantou por
causa de alguma coisa que ele fez para ela, disse Maria Chuchu, a maior
fofoqueira da cidade.
Deixa de
falar bobagens, disse Melquisedeque, estão dizendo que o vaqueiro perdeu uma
aposta de jogo e para saudar a dívida com o coronel, seu sogro, teve que fazer
um pacto com o Coisa-ruim.
É mesmo?
Aguçou os ouvidos na porta da casa Maria Chuchu, que de tão curiosa acabou
levando um tiro da asa de um anjo que acabou caindo da Noruega e sem querer
caiu em cima de seu telhado, deixando a mulher morta por um milagre de
segundos. Essa também foi a opinião de Marieta, aquela menina sempre foi uma
grande fofoqueira.
Fofoca ou
não é preciso tomar cuidado, disse Florbela. Todo mundo sabe que lobisomem
gosta de recém-nascido.
Deve ser por
isso que seu filho não quer mais sair de dentro de seu útero, não é mesmo?
Disse Maria Chuchu, dando uma risadinha salgada de cebola e piscando o olho
para Melquisedeque, que virou o rosto para a lua e suspirou fazendo dois alhos
saírem de suas narinas.
Depois que o caso do
lobisomem chegou aos ouvidos do dono de um circo perto da cidade vizinha, esse
fez questão de levar sua lona e sua trupe circense para a cidade, ganhando algum
dinheiro com a vantagem de dizer que o Homem-lobo estava de posse de seu circo,
e que com apenas uma moeda de ouro qualquer pessoa fosse jovem, idoso, carente
ou rico, poderia ver a criatura e inclusive, poder-lhe-ia atirar-lhe pedras por
cima das grades. Melquisedeque chegou até mesmo levar Florbela e seu filho
dentro do útero para o circo, apenas para relembrar os momentos em que vira as
bailarinas em cima da corda bamba, no tempo em que vivia na Paraíba. Ficou
horrorizado com o tratamento que o povo da cidade de Altopicoshuypis estava
dando ao Homem-lobo, que mais parecia ser um idoso muito peludo, os dentes da
frente todos amolecidos, e ao invés de ter garras suas mãos pareciam lembrar as
nadadeiras de uma foca. A cada pedra que o povo lançava nele Melquisedeque
balançava a cabeça em sinal de reprovação. “O povo nunca vai escolher Cristo.
Sempre vai optar por Barrabás”, pensou para si mesmo, cruzando seus olhos com o
do Homem-lobo, que abriu um grande sorriso em sinal de que tinha entendido
telepaticamente a frase que Melquisedeque acabará de falar para si.
Era dezoito de agosto e a chuva parecia estar
sentindo um tédio imenso de estar caindo sobre o chão de Altopicoshuypis. Os
bruxos que abriam suas tendas e usavam seus turbantes na cabeça estavam
sentados agora em frente à Praça Central. Comentavam sobre os últimos
acontecimentos na cidade. O aumento dos turistas norte-americanos faziam com
que rolos de dólares pudessem ser jogados pelas esquinas. Havia um absurdo
movimento de pessoas estranhas por todas as partes.
Isso aqui
está parecendo à Índia, disse Fulorzinho com o cachimbo na boca.
- Graças a
Deus por isso – disse Malamud.
As meninas de menor idade
olhavam para a rua com os seus olhinhos de peixe para a rua. Elas estavam
completando dezoito e dezenove anos, e viam os rolos de dinheiro que os
turistas arremessavam para a rua. O aumento da prostituição foi drástico. A
dona do bordel local era uma gorda senhora que se enfeitava com muitas joias
nos braços, no pescoço, em cada dedo havia um anel de ouro ou com uma pedra de
diamante. Mesmo não se importando com a origem das meninas que permitia usar
seu imenso estabelecimento para venderem os corpos, ela tinha esperança de dar
uma vida boa e religiosa para a sua filha, Sâmara, que tinha um rosto delicado
e uma voz lenta de nuvem. Ficou conhecida em todo Altopicoshuypis a
desobediência da filha da alcoviteira, que fez questão de sair para uma festa
regada de vinho e orgias por todas as partes, bem do lado Sul da cidade, onde
se podiam ver turistas com malas cheias de dinheiro em todo lugar. Ao voltar
para a casa Sâmara topou com a cara da mãe com um furor terrível como se
acabasse de declarar guerra ao mundo. Depois que deu uma surra de ferro quente
na filha, costume dos mais antigos, a severa dona do bordel gritou:
- Não quero
mais você na minha casa. Você vai aprender agora o que é ser quenga, sua cara
de cavala.
Em minutos mágicos a menina saiu da casa, não
sem antes ter sua cara se transformado em uma cara longa de cavalo, conservando
os traços femininos da adolescência no corpo, como se fosse um minotauro. Ao
ver no espelho o que tinha acontecido com o seu rosto, Sâmara saiu em disparada
sem conseguir pronunciar alguma palavra, apenas gritando em alto som,
arrepiando os moradores de Altopicoshuypis: “CAVALA! CAVALA! CAVALA!”.
- Que noite estranha essa – murmurou
Melquisedeque, enquanto Florbela fazia uma sopa para ele, que havia acabado de
voltar do trabalho. – Nada de
extraordinário acontece nessa cidade!
Fim
A MORTE DO CORONEL IVAN MACEDO
A MORTE
DO CORONEL IVAN MACEDO
(CONTO FANTÁSTICO)
O coronel Ivan Macedo sabia muito bem que sua
esposa, Samara Alburquerque de Andrade, há muitos dias estava se encontrando
com o seu amante às escondidas. Em
silêncio profundo, ele meditava, quando ela entrou pela porta. Já ia dar
meia-noite em ponto, quando ele olhou o seu relógio de pulso.
- Não sabia que você ia estar acordado – disse Samara. –
Como anda a dor da sua perna?
- Está bem melhor! – respondeu Ivan, com um leve bocejo. – E
o seu amante? Como anda?
- Você quer mesmo ter essa conversa há essas horas? –
perguntou Samara com indignação. – Podíamos conversar amanhã de manhã. Preciso
dormir. Estou cansada.
Ivan Macedo havia sido ferido na sua perna
durante a noite. Atentados aconteciam muito por aquela região, onde ele fez
questão de comprar uma bela casa com cobertura e lareira.
O tiro da bala do revólver havia acertado a sua perna
esquerda.
Os amigos mais
chegados, desde os tempos do colégio militar, costumavam chama-lo de Leão. Ele
gostava muito da metáfora.
O Leão, além de ser conhecido como o rei dos
animais, era um animal feroz, capaz de amedrontar qualquer pessoa; caso alguém
tivesse um encontro com essa fera sem uma boa arma na mão, era bom se ter boas
pernas para correr.
Ivan agora se
recordava dos tempos em que saia para caçar patos selvagens e outros animais
com os mesmos colegas da escola militar. Era um jovem ousado e respeitado pelo
seu grupo. Por isso doía-lhe tanto a notícia do seu médico que não teve pena em
anunciar o fato:
- Essa bala atingiu
um nervo muito importante da sua perna, coronel – disse o médico, tirando os
óculos redondos da sua cara cavalar, para limpá-los.
- E o que isso
significa doutor? – perguntou Ivan, apreensivo. – Vou poder continuar com as
minhas atividades normalmente, não vou?
- Acredito que não! - respondeu o médico com sinceridade. –
A bala está encravada, e acertou esse nervo, que como eu já te disse, é muito
importante para a sua perna. Infelizmente o senhor irá mancar para o resto da
vida.
- Vou ter que usar bengala também, doutor? – disse Ivan com
um sério acesso de tosse percorrendo sua garganta.
- Acredito que sim! – disse o médico.
Uma lenta garoa começou a cair pelo bairro, e
o coronel Ivan sentiu os fantasmas das suas lembranças agitando sua alma
decadente. Seus cabelos, que um dia foi de um negro profundo como o céu, agora
estavam mais brancos do que a lã de uma ovelha.
E era assim que ele
se referia a si mesmo, quando algum amigo ia visita-lo: - Não sou mais um leão,
como antigamente; agora sou como uma ovelha manca sendo levada ao matadouro.
Lembrou-se do tempo e dos dias em que amava profundamente
Samara.
Quando a viu falando
francês, se encantou profundamente. Ele era um típico amante da cultura
francesa, e decidiu abordá-la firmemente, mesmo sabendo que ela já conhecia a
sua fama como “coronel famoso com as prostitutas do bordel dos mais variados
lugares do país”.
Ivan chamou-a de
“minha pequena” na primeira conversa que conseguiu ter com ela a sós. E Samara
respondeu firme e bruscamente:
- Pequena é tu! – disse Samara.
- Não quis ofende-la
– disse Ivan. – De onde vim, na minha cidade natal, é costume chamarmos nossas
mulheres dessa forma, delicada e poética.
- Não gosto de poetas
– disse Samara. – Prefiro os homens de combate.
- Homens como Hemingway, não é? – perguntou Ivan, sabendo
qual seria a resposta dela.
- Homens que se assemelhem a leões – respondeu Samara.
- Então você não pode ser comparada a uma bela borboleta,
não é mesmo? – perguntou Ivan.
- Prefiro ser chamada de
Tigresa – disse Samara.
- Uma tigresa de
unhas negras e íris cor de mel – cantou Ivan.
As unhas de Samara eram pintadas de negro, e as íris de seus
olhos eram da cor pura do mel. Ela ficou encantada com o coronel Ivan Macedo.
Antes que o ano acabasse, ela aceitou o seu pedido de casamento.
Samara ainda
continuava pintando os seus cabelos de negro. Não aceitava os avanços da idade.
Mesmo quando descobrira as traições do coronel, não se sentiu envergonhada: ela
também tinha seus amantes, com os quais se deliciava nas noites em que Ivan
passava as madrugadas fora, bebendo ou jogando.
“Ela deve estar com algum amante gordo e imbecil”, pensava
Ivan. “Semelhante a um grande hipopótamo, que vive na sombra das águas do rio
Nilo”.
Nos dias que antecederam suas noites de
insônia, quando a dor da sua perna aumentava drasticamente, a morfina o fazia
meditar e pensar sobre como seria o rosto dos amantes de sua esposa.
Pensava em escrever um livro de memórias, em que poderia recordas
as suas lembranças no tempo em que pegava as putas mais atrevidas do bordel,
deixando-as com as pernas bambas e sem folego com os seus vinte e três
centímetros descomunais que possuía.
Recordou a primeira vez que pôs o cacete para fora,
mostrando aos olhos de Samara a prepotência do seu imenso órgão genital.
Ela arregalou os olhos, como se não houvera visto em lugar
nenhum aquilo. Assombrou-se com o tamanho gigante da cabeça vermelha.
- Não sei se vai caber tudo – disse Samara, falando mais
para si do que para Ivan.
Ele riu gostoso com a situação. Gostava de assombrar as
moças, e de certa forma seu pau, sempre que dava essa cena para a contemplação
dos seus olhos, o fazia pensar na palavra com que os colegas do colégio militar
se referiam a ele: um Leão, um verdadeiro leão.
Samara abriu a boca e engoliu a rola gigante do coronel. Em
poucos segundos sentiu seus lábios adormecerem, e se cansou de boquetar o tal
cacete.
- Cansa! – disse Samara.
- Não sei se cansa, nunca chupei meu pau – disse Ivan,
gargalhando.
Samara deitou na cama e ficou com as pernas abertas,
deixando antever aos olhos do coronel sua bela buceta macia e raspada.
Ambos se satisfizeram com a primeira relação sexual depois
do casamento, como mandava a boa tradição dos pais da moça.
Tudo isso agora não
passava de uma leve lembrança, como se os dias e os tempos em que Ivan Macedo,
o coronel Leão, tivesse vivido fossem apenas uma flor murcha que chegava ao
fim.
Na frente da sua cadeira de repouso, um espelho mostrava a
sua face. A lua podia ser vista se refletindo pela janela.
Quantas vezes ele não viu a lua em outros lugares, em outros
países? Havia visitado a França, a Polônia, a Rússia, o México.
E agora ele estava
ali, entravado, parado, com a perna alojada a uma bala de ferro, enferrujando
seus ossos por dentro.
Samara estava
dormindo na cama.
O coronel sentiu pena das palavras que disse para ela.
- Me desculpe por ter dito aquelas coisas – disse Ivan.
Ele sabia que ela não estava ouvindo, pois dormia
profundamente. Realmente estava cansada.
“O hipopótamo deve ter dado muito trabalho na cama”, pensou
o coronel, satisfeito em não sentir ódio, nem ciúmes, nem rancor. Apenas sentia
a sua perna alojada com uma bala.
Ivan Macedo, o
coronel, levantou os olhos para a porta do seu quarto, e viu na sua frente uma
figura encapuzada, segurando uma espécie de foice.
Nada disse. De dentro do capuz uma voz feminina chegou até
os ouvidos do coronel:
- Coronel Ivan, vamos?
- Eu já estava esperando isso – respondeu Ivan.
Fim
A VENDEDORA DE MAGIA - conto
A VENDEDORA DE MAGIA
O mercado de peixe local era muito
requisitado internacionalmente. Os pescadores ganhavam muito bem por cada peixe
que vendiam para o exterior. Miguel gostava muito de passear pelo mercado de
peixe, não sentia enjoo como seu irmão Santiago, que não só não podia sentir o
odor dos peixes, como não podia nem sequer prova-los.
- És um
grande fresco Santiago, disse Miguel irritado com o irmão. - Não existe coisa
melhor do que peixe para se comer. É o símbolo cristão por excelência.
- Pois o
símbolo dos cristãos deveria ser um porco, disse Santiago que não era religioso
como o irmão, e odiava ir para as missas. - Ai sim eu ficaria contente. Afinal
é o que eu mais gosto de comer. Porco!
Que não te
ouça os judeus que compram as carnes dos tubarões de duas cabeças no mercado de
peixes, disse Miguel.
Alguns ciganos chegaram pela cidade
carregando bandeiras com vários símbolos diferentes. Santiago observava as
ciganas com olhares de sedução. Nenhuma lhe prestava atenção, pois os ciganos
tinham os seus próprios assuntos para cuidarem.
Levantaram a tenda do lado direito da cidade, o lado da sorte, onde as
pessoas mais pobres viviam.
- Que há que
você está vendo? – perguntou Miguel segurando um peixe vivo de dois olhos no seu
relógio de pulso. – São os ciganos? Fiquei sabendo que já chegaram pela cidade.
Espero que eles paguem o imposto devido aqui... Não é justo apenas nós pagarmos
os impostos.
- Deixe de
dizer asneiras, Miguel – disse Santiago. – Os ciganos têm suas próprias regras
sociais.
- Você está
observando as ciganas bonitas, não está? – Miguel sentia muito prazer em encher
o irmão com perguntas.
- Como posso
estar observando as ciganas, se estou aqui conversando com você, seu idiota? –
disse Santiago.
- Tenho que
ir ao Mercadão – disse Miguel. – Vou comprar algumas coisas para nós comermos.
- Que não
seja peixe – disse Santiago.
- Não será
peixe!
O
Mercadão era conhecido pela variedade de produtos que os comerciantes ali
vendiam em inúmeras barracas enfileiradas uma atrás da outra, como grandes
árvores em um bosque. Miguel gostava de andar no meio das pessoas, porque ali
no Mercadão encontrava inúmeras pessoas, todas das mais variadas formas e
aspectos. Havia uma mulher com corpo de
aranha, que estava sentada no meio de um pequeno palco, onde um verde e alegre
duende de dois olhos na barriga tocava flauta e agradecia as tímidas moedas que
os transeuntes ofereciam para ele, arremessando-as no ar até o pequeno barril
que ele colocara a frente para receber seus trocados. Havia grupos de centauros
que discutiam herméticas fórmulas com homens velhos de barbas muito cumpridas
que chegavam até o chão. Havia minotauros sem camisetas que pousavam com suas
cabeças bovinas para os pintores em forma de baratas que com ágeis mãos (ou
patas) faziam ótimas pinturas e esculturas realistas. Havia tímidas flores que levantavam as
cabeças para cantar canções chinesas quando o vendedor chinês chegava até o
pote onde elas estavam deitadas e pronunciava algumas palavras nunca ouvidas
nesse lado do mundo. Havia mulheres
muito altas com traços romanos no rosto, semelhantes às modelos das passarelas,
porém assustavam quaisquer homens que ali passavam, pois não tinham pudor algum
em mostrar os seios grandes e esverdeados para quem quer que fosse, ou alguma
parte das nádegas muito brancas que se assemelhavam a girassóis ardentes como
fogo. Essas eram as ninfas, musas dos
bosques que estavam ali como meras representantes sexuais dos faunos, que
sentados ficavam como bons comerciantes esnobes sem esboçar nenhuma reação
quando algum turista oferecia pouco dinheiro para se deitar com alguma ninfa de
rosto asiático e seio azul.
Miguel
ficava encantado com tudo isso, pois além do mercado de peixe, sua única
diversão era ir visitar o Mercadão e comprar alguma coisa diferente para o
jantar. O pouco dinheiro que herdada de seu pai, um ilustre capitão de navio
que foi engolido pelo mar, dava para sustentar ele e seu irmão. A mãe havia se
casado novamente e partira para uma terra muito distante, pelo qual os dois
irmãos apenas mencionavam para qualquer um que perguntassem por sua mãe que se
chamava Terra do Bomfim.
Ao
passar pelo meio do Mercadão, Miguel observou em um canto quieta e silenciosa
uma linda mulher de vinte e cinco anos e vinte e cinco séculos que estava
sentada em uma cadeira feita de cauda de pássaros muito antigos.
- O que
vendes? – perguntou Miguel interessado na beleza diferenciada da mulher.
- Sou uma
vendedora de magia – respondeu a mulher sem nenhum orgulho. – Gostaria de
comprar uma magia?
- Gostaria
primeiro de saber o seu nome – disse Miguel. – Você é uma moça muito linda!
- Não sou
moça – disse a vendedora de magia ríspida. – Me chamo Shelda. Não é um nome
muito comum para as pessoas dessa cidade.
- Não, não é
– disse Miguel. – E o que viria ser magia?
- Não sabes
o que é uma magia? – perguntou Shelda.
- Não sei o
que é – respondeu Miguel um pouco envergonhado. – Nunca aprendi isso no
seminário que frequentei.
- Isso não
tem nada haver com seminários – disse Shelda.
- E tem
haver com o que? – perguntou Miguel.
- Tem haver
com encantamentos, bruxarias, ocultismos.
Miguel encarou os olhos de Shelda com
interesse. Percebeu que no fundo dos olhos dela estavam milhões de estrelas e
planetas bailando num cosmo profundo e denso.
- Você é cigana?
– perguntou Miguel.
- Você faz
muitas perguntas, Miguel, disse Shelda. Nunca vi um homem com essa tendência
antes. Você precisa usar mais o ponto de exclamação!
Você sabe o
meu nome, disse Miguel surpreso. De onde nos conhecemos?
Vou
responder a sua primeira pergunta. Depois eu respondo à segunda, disse
Shelda. Sou cigana, filha de Nabuco e
Sarai. Meus pais vieram da Romênia, há muito tempo. Eu te conheço por causa da
marca que você tem no seu braço esquerdo. Essa cruz ai, essa cicatriz.
Sim, eu
tenho uma cicatriz em forma de cruz, e ela está aqui e é bem visível, disse
Miguel. Só não estou recordando de você ou de ter te contado sobre minha
cicatriz.
Miguel, eu
peguei você e Santiago nos braços, disse Shelda. Eu fui amiga da sua mãe. Há muito tempo eu
passei por essa cidade. Vocês eram pequenos, e seu pai era vivo. E nessa época
eu já vendia magia.
Miguel
ficou extremamente maravilhado com o que disse a cigana. Convidou ela para ir
até a sua casa para jantar, o que ela aceitou. Não sem antes fazer Miguel jurar
que iria comprar uma magia das mãos dela, antes que os ciganos fossem embora
para a próxima cidade.
- Eu juro –
disse Miguel.
Às sete da noite Shelda estava sentada na
mesa com os irmãos Miguel e Santiago. Havia pão e queijo na mesa, vinho e bolos
de sementes de chocolate. Um pequeno javali assado completava a refeição, que
saciou tanto a cigana quanto os dois irmãos.
- Miguel
disse que a senhorita vende magias – disse Santiago. – O que vem ser isso?
- Magia são
coisas que os outros não podem ter. Por isso as vendo por um preço bom e
barato. E quando essas pessoas tem a magia nas mãos se sentem bem e
maravilhadas.
- Que coisas
seriam? – perguntou Santiago.
- Você já
quis fazer ventar, não é? Eu vendo magias que podem fazer ventar, chover,
crescer árvores, nascer ouro no nariz, afastar lobisomens.
- Você vende
utilidades, então! – disse Miguel.
- Não são
utilidades – disse Shelda indignada. – São magias, já o disse.
- E você
conheceu a minha mãe e meu pai? – perguntou Santiago. – Eles nunca disseram que
eram amigos de uma cigana.
- Sua mãe
nunca me mencionou para vocês porque eu pedi, disse Shelda. Eu sei que ela está
na Terra do Bomfim. Passamos por lá, vocês sabem, a caravana de ciganos que eu
faço parte. Sua mãe mandou lembranças. Foi uma coincidência fortuita ter
encontrado Miguel no grande Mercadão. Vi que seu cabelo loiro é semelhante aos
cabelos de sua mãe, mais o rosto puxado em forma de tubarão é semelhante ao
vosso pai, sem duvida.
- Que bom
que você conheceu a nossa mãe! – disse Miguel.
A caravana dos ciganos estava deixando a
cidade quando as primeiras estrelas do céu estavam brilhando bem longe. O velho
cigano que ia à frente de todos levava um pandeiro e alegre tocava ele com as
mãos.
Miguel havia dado uma moeda de ouro para
Shelda, antes de se despedir dela. Entregue a magia para Santiago, disse
Miguel, ele saberá fazer o melhor com ela.
Quando os ciganos já estavam sumindo
pelo horizonte, Santiago levantou a magia que Miguel havia comprado de Shelda,
a cigana, e arremessou a magia para o céu, que se tornou negro como uma rajada
de ventanias frias.
Vários peixes prateados começaram a cair
de cima das nuvens, batendo sobre as casas e sobre as árvores, derrubando as
pessoas desatentas que escorregavam nas barbatanas que se espatifavam no chão.
Fim
AQUELE QUE DORMIU POR MUITO TEMPO
AQUELE QUE DORMIU POR MUITO TEMPO
- Para Isabel Garcia de Ataide Lima,
meu amor: dedico esse conto mágico para minha esposa mágica!
Francisco levantou os seus olhos
azulados pela janela de vidros quebrados e dobradiços de ferro enferrujados e
viu que todas as estrelas brancas do mapa astral estavam intactas e continuavam
no mesmo lugar. Voltou sua atenção para a rua onde uma senhora simpática e
elegante passava do outro lado da rua carregando uma sacola amarela na mão.
- Boa noite, minha senhora, disse Francisco.
Está precisando de ajuda para carregar os seus sonhos até a sua casa?
Não, a velha
respondeu cordialmente. Meus sonhos não pesam mais do que meio quilo. Meus
braços secos de uvas passas ainda aguentam carrega-los. Obrigada pela
preocupação. Vou dispensá-lo da tarefa.
A velha continuou o seu caminho, subindo a
ladeira. Seu corpo ossudo e cabisbaixo parecia antever sonhos belos e fortes.
Lá dentro da casa, a mulher de Francisco suspirou bem forte.
O aconteceu Amanda? – perguntou Francisco, preocupado com o
suspiro forte que trouxe para dentro da sala da casa um grande vendaval de
sinistras andorinhas. Ele conhecia muito
bem os suspiros de Amanda. Quando eles eram lentos como doces rouxinóis, é
porque o dinheiro que eles estavam precisando para comprar leite de vampiro ou
dente de lobo estava chegando através de algum artificio mágico. Mas quando os
suspiros dela eram fortes como a fúria de mil ventos, ele sabia que o pior
estava para acontecer.
- Já vão se fazer três mil anos, Francisco!
Três mil anos e ele ainda dorme Francisco. Três mil anos! Três mil anos
completados agora. Eu vi, eu olhei, as estrelas brancas continuam no mesmo
lugar Francisco.
Eu sei disso, respondeu Francisco com os
olhos marejados de lágrimas. Também me preocupa que ele durma tanto.
Não come,
não bebe, não se levanta, continuou Amanda com um suspiro lento e potente como
a onda do mar de Julho sem se importar com o que Francisco acabara de dizer.
Como eu posso viver sabendo que o meu irmão é um morto que está vivo?
Desde que Roberto deitara seu corpo na cama macia da irmã para tirar um
cochilo proveitoso, já que acabava de chegar de viagem e não havia nenhuma cama
de hospedes na casa de Francisco e Amada, que ele não se levantava para mais
nada.
Se ele
tivesse ido para alguma pousada, falou Francisco. Talvez continuasse acordado.
E não estaríamos nessa situação constrangedora.
- Eu nunca iria
mandar meu irmão para uma pousada - gritou Amanda furiosa. – Minha família
jamais perdoaria se eu fizesse algo desse tipo.
A
porta da casa estava aberta e foi por ela que entrou Eduarda trazendo na mão
cinco galhos de mandrágoras e um elixir da vida eterna. Era uma mulher forte e
alta, muito magra, seu pescoço era longo como o de uma girafa e seus cabelos
eram ruivos como o fogo. Diziam as más línguas da cidade que ela era uma bruxa,
uma verdadeira feiticeira daquelas antigas que eram queimadas escondidas pelos
sacerdotes. Até o padre da igreja de mil pedaços caídos tinha medo de Eduarda.
Ali na casa de Francisco ela sempre foi bem acolhida, e era uma das melhores
amigas de Amanda.
Como vão
todos? - perguntou Eduarda sentando no sofá com suas nádegas grandes e
volumosas. – O jovem já levantou os olhos?
- Não só não
levantou os olhos, como não levantou as mãos, os pés, o corpo, disse Amanda,
dando um suspiro tão forte que encheu a casa com um rugido de um leão terrível.
Calma amiga,
não precisa suspirar desse jeito, disse Eduarda. Ele vai acordar. Ninguém dorme
para sempre.
Só os
mortos, tornou a falar Francisco que até aquele momento não tinha dito nenhuma
palavra. Eu mesmo já vi um dorminhoco levantando. Só que isso foi há muito
tempo, nos dias em que eu me aventurava lá pro norte. Não sei se essas coisas
continuam sendo possíveis.
Tudo é
possível para aquele que crê, disse Amanda. Não é isso o que aprendemos todos
nas escolas bíblicas das televisões? Já fiz os meus votos. Se Roberto levantar
hoje eu juro que dou aquela galinha que bota ovos de ouro para a caridade.
Juramento. Eu jurei Francisco. E você sabe que quando se jura é sagrado.
- Sei muito
bem disso – disse Francisco. – Eu mesmo fiz vários juramentos. Um dia jurei
para um peixe do oceano que não iria pesca-lo se ele me levasse de volta para o
litoral que eu não conseguia mais encontrar, pois eu estava perdido no meio do
oceano atlântico. Na aldeia de Altopicoshuypis, meu avô jurou para uma
prostituta que iria dar para ela uma estrela cadente que ela viu caindo em
direção as Montanhas dos Andes. Ele trouxe para ela a estrela cadente
embrulhada em um manto desses que se encontra em qualquer camelô de rua.
Todas essas
coisas são sérias, disse Eduarda colocando o elixir no meio das pernas que eram
grossas e atraentes. Fiz alguns juramentos na minha vida. Alguns juramentos
guardei, e manterei assim até o fim. Coisas da qual não posso nunca falar e nem
pigarrear. Preciso manter o pacto do silêncio. São juramentos profundos de
magia.
Você quer um
pouco de café Eduarda? – perguntou Amanda com tristeza. – Meu irmão sempre
tomava café nessa hora, comigo e com o Chico. Ficávamos conversando sobre
muitas coisas. Agora ele não pode tomar nada e nem conversar nada. Nem água
está bebendo. Graças a Deus que não se desidrata.
Seu irmão há
de acordar, disse Eduarda segurando a xícara de café com lenta atenção de
felina. – Será que não tem um pouco de leite para eu misturar com o café?
Eu sei que
ele há de acordar no último dia, disse Amanda balançando a cabeça de um lado
para o outro, preocupada. Quando viu que o suspiro subia pelo seu estômago até
a boca tapou os próprios lábios sem vida com a mão direita.
Sim, ele há
de acordar, disse Francisco. E nós vamos voltar a tomar café como antes. E
vamos conversar sobre muitas coisas como antes.
- Quem está
no quarto com o Roberto? – perguntou Eduarda.
- Não tem
ninguém lá – respondeu Amanda. – As luzes estão apagadas. A última fada que ficou
olhando para ele, teve que ser enxotada de lá com a vassoura. Se pelo menos um
anjo descesse e viesse ter com ele. Algum milagre. Quantas vezes eu olhei para
aquele espelho do quarto enquanto ouvia o suspiro dele eu dizia para cima com
os olhos cheios de tartarugas, sim, eu disse: eu creio, eu creio em Magia.
Nunca descri. Nunca descrerei. Eu não posso descrer. Nem quando a velhice e a
morte fizerem questão de me acompanhar para o túmulo sem flores para onde vou.
- Não diga
bobagens – disse Francisco ríspido. – Seu túmulo será cheio de flores e trolls.
- Eu sei
disso – disse Amanda. – Meu irmão dorme Francisco. Será que não vê que é por
isso que suspiro?
- Não
precisa suspirar tanto – disse Francisco. – Estamos cuidando dele. Logo ele
acorda.
Um tremor percorreu a casa com uma
eletricidade viva, como se vários elefantes estivessem chovendo pelo céu. As
telhas da casa se levantaram e tornaram a estrondar no chão. Lá fora a rua
estava movimentada, com pessoas ouvindo músicas em seus carros, várias motos
passavam em direções variadas, e muitos jovens bebiam cerveja sem nenhuma
condescendência com o coração. Quando isso acontecia Francisco descia até o
porão, donde tirava uma velha arma que guardava para tempos escusos. Era um
velho bacamarte de herança de seu bisavô, um cigano barbudo e hostil que não
gostava de discutir termos matemáticos com pessoas que não fossem cristãs. Seu
bisavô deixara o bacamarte especialmente para ele, que era o mais novo dos
cinco filhos do velho João Cigano. O velho bisavô tinha ficado vivo até os
duzentos anos, e era muito bom em xadrez, e somente Francisco conseguiu
detoná-lo em uma partida de xadrez.
- Não conte
a ninguém sobre isso, meu bisnetinho – disse o velho bisavô. – Você sempre foi
o meu neto predileto. Sei que coisas extraordinárias vão acontecer na sua vida.
Você é um mago, um grande mágico, como meu pai foi, e o pai dele, e o pai do
pai dele, e o pai do pai do pai dele. E sei que coisas maravilhosas acontecerão
para você.
Sempre que segurava o bacamarte na mão, Francisco
se lembrava do rosto do seu velho bisavô dizendo tais e tais coisas.
“Velho
bruxo, sabia muito bem que o extraordinário iria me cercar por todos os lados”,
pensou Francisco, enquanto a voz de seu avô entrava em seu ouvido como um
vento. Ele sentiu uma estranha fragrância de rosas invadindo a casa. Voltou
para a sala e encontrou Amanda dando um novo suspiro que trouxe para a casa
centenas de garças e pelicanos. Eduarda dava batidinhas suaves nas costas de
Amanda, como que para acalmá-la.
O que houve? – perguntou Francisco colocando o
bacamarte na mesa.
Sua esposa
subiu até o quarto onde está Roberto, para ver se ele havia acordado, disse
Amanda.
E ele
acordou? É preciso ter esperanças, disse Francisco quase num sussurro
inaudível.
- Não,
Francisco, ele não acordou – gritou Amanda. – Nem com todos os ruídos que esses
mil demônios fazem ali fora ele não acorda. Ele não acorda com nada. Estou
cansada de ter esperanças. Não quero ter esperança nenhuma. Esperança era o
nome da filha que eu sempre quis ter e nunca vou ter porque não é o meu sonho
ser a mãe de uma pessoa que vá dormir para todo o sempre. É assim com a minha
família, Francisco, você bem sabe disso: meu avô, meu pai, e agora meu irmão.
Todos dormem. Todos se vão para a terra do sono e não se levantam. E as
mulheres, nós mulheres, sofremos por eles. Por que eles são a carne da nossa
carne e o sangue do nosso sangue.
Posso ir
chamar um comprador de sonhos, disse Eduarda, eles são pessoas boas no
comércio, falam por ai que é por causa do sangue semita misturado com o sangue
grego; eu tenho minhas dúvidas, só conheço um que é sábio como uma coruja e
esperto como uma raposa. Quem sabe pode ajudar...
Nunca gostei
de raposas, disse Francisco, é melhor deixarmos o tempo resolver essa questão.
Mesmo que durem mais três mil anos. Já vi velhos errantes passarem por aqui
nessas bandas com sacolas cheias de ouro e diamantes. É só uma questão de tempo
e matemática.
Amanda levantou um suspiro que estremeceu não
só a casa e a rua, toda a cidade estremeceu dentro de seu suspiro. Um grande
trovão chocalhou a prefeitura onde o gordo prefeito estava sentado comendo um
baiacu vivo com uma esponja em forma de garfo e faca.
- O que foi
isso, o que foi isso, Marieta? – perguntou o prefeito para Marieta, sua secretaria
que parecia um palito de fósforo com sete dedos nas mãos de tão rápida que
digitava no computador os seus nadas em brancos.
- É a mulher
que estava suspirando por causa do irmão que continua dormindo – disse Marieta
com sua voz de ganso em grasnados lentos.
- Aquele que
dormiu por muito tempo? É esse? – perguntou o prefeito novamente, antes de
abrir sua boca e engolir de uma só vez o baiacu entre suas mandíbulas.
- É esse
mesmo prefeito – disse Marieta.
- E o que a
prefeitura pode fazer para ajudar essa coitada? – perguntou o prefeito com uma
gargalhada, como se já soubesse a resposta da secretária.
A secretaria
tirou o búfalo que estava segurando sua pasta com as mãos cheias de pelos
negros e antes de responder olhou a lâmpada que parecia estar sendo penetrada
por uma orgia errante de duendes eletrônicos.
- A
prefeitura não pode fazer nada – disse Marieta. – Não temos verbas para
ajuda-los. Só para nos ajudar!
“Se todos
esses suspiros pudesse acordar esse coitado infeliz”, pensou Francisco
serenamente, olhando a rua cheia de jovens e motos e carros. Viu que um garoto
de quatorze anos se assemelhava muito com Roberto, pois ele também tinha nariz
aduncado, olhos negros perspicazes, movimentos ágeis com os pés em forma de
ovelhas e chifres de faunos nos tufos escuros e loiros da cabeça.
Eduarda já
tinha ido embora, e o relógio da sala estava em um silêncio de túmulo e dias
antigos. Uma chuva serena não fez espantar os meninos e meninas que se agitavam
como cotovias na frente da rua. “Claro que ele vai despertar, mais não é a
hora, nem o dia, nem o momento”, pensou Francisco. Amanda estava dormindo como
uma sonambula há três mil dias. Seu irmão não estava morto, apenas dormia o
sono dos justos. Francisco guardou o bacamarte do bisavô cigano no porão.
“Velho bruxou” pensou balançando a cabeça como um dinossauro com sono. De novo
enfiou a cara larga e vermelha pela janela aberta. Seus olhos azulados
faiscaram com a passagem do vento coberto de cobres e carregado de um odor de
urina. Viu que todas as estrelas brancas do mapa astral estavam intactas e
continuavam no mesmo lugar. Antes de fechar a janela Francisco deu um largo
suspiro, que fez o mar arrepiar seus braços titânicos de água.
Depois disso foi dormir com medo de nunca mais
acordar, assim como Roberto.
Fim