*cada título dessas pinturas me geraram um poema por issoo título dos poemas são os títulos dos quadros
Travesti negra
Travesti negra,
és como a noite africana
que não se explica,
mas se impõe.
Teus olhos são luas
plantadas em corpo migrante,
teu gesto atravessa
ruas hostis,
mas não se curva.
O mundo pergunta,
com língua torta,
“o que és?”
e tu respondes:
sou travessia,
sou corpo de invenção,
sou mulher forjada no fogo
da recusa e da coragem.
Travesti negra,
há beleza em tua pele firme,
em teus quadris que dançam
mesmo quando a cidade não dança.
Há beleza em tua boca,
em tua voz que não pede licença,
em tuas mãos que constroem
um amanhã improvável.
O Brasil, que não sabe ver,
passa adiante,
mas tu ficas,
como estátua de carne,
como poema de sangue.
Travesti negra,
quando caminhas,
é a África que respira em ti,
é a memória que se recusa a morrer,
é a poesia que se veste de corpo
e segue.
Nova Trans
Nova Trans!
Peitossóis, dois globos elétricos,
raios de leite-luz,
astrofêmea, astrotravessia!
Linhas do corpo —
curvas-cósmicas,
cintura-máquina,
ombros-nave.
Transnova,
translinda,
transviva!
Beijoluzes em tua boca,
voz de motor-coração,
pele de bronze-aurora.
Oh, grande seio-semente,
dupla estrela em órbita,
peitos-planetas
giram, giram, giram!
E o amor —
futuramor,
transamor,
explode em ti,
nova mulher,
nova máquina,
nova chama!
Nova Trans,
teu corpo é o amanhã,
teu riso é o motor do futuro.
És travessia,
és poesia,
és o relâmpago erótico
da humanidade por vir!
Arrebento a porta —
não para entrar,
mas para abrir
o vazio do ar!
Abstração,
tua madeira não range,
tua maçaneta não fecha:
és porta que explode
sem parede nenhuma!
Vejo cores cuspindo ferrugem,
linhas rasgando o céu,
retângulos voando como pássaros
embriagados de geometria.
Explosão!
Não há chave,
não há fechadura.
A porta abre-se em mil pedaços,
cada pedaço — um universo.
Abstração!
Grito que não precisa boca,
forma que não precisa corpo,
porta que não leva a lugar algum
porque o lugar
é a própria explosão.
Eu, poeta,
entro de peito aberto
nesse nada radiante.
E grito:
— Vida!
até o silêncio
cair de joelhos
diante da cor!
Verde
Verde,
verde que arde na Andaluzia,
nos olhos dos ciganos,
nas facas escondidas sob o vento.
Verde das oliveiras
e dos corpos dançando no pó,
verde das saias que giram,
dos cavalos selvagens,
dos beijos proibidos nas esquinas.
Verde,
verde das brasileiras,
sol solto na pele,
riso como fruta madura,
verde que não teme a noite
porque carrega no ventre
o verão inteiro.
Verde,
verde dos homossexuais,
verde secreto dos lábios que tremem,
verde da esperança e da ferida,
verde de um amor que não pede licença
e arde como pólvora
sob as mãos fechadas do mundo.
Verde, verde quero-te verde,
não cor de calma,
mas de tempestade.
Verde que canta, que fere, que salva.
Verde que é sangue,
verde que é chama,
verde que é verdade.
Elias,
trouxeste no sangue o fogo dos exílios,
um sol espanhol perdido nas ruas de Rustchuk,
um sal de judeu errante,
um mar que não sossega.
Na tua boca cresceu o alemão,
duro, cortante,
mas em tuas veias corria
a música antiga dos sefardins,
a melodia de um povo sem fronteiras.
O mundo te olhou com olhos de ferro,
as guerras ergueram muralhas de fogo,
mas tua palavra foi chama paciente,
tua palavra foi vigília,
tua palavra foi multidão.
Canetti,
no teu rosto vivia a memória dos que fogem,
no teu livro,
os homens e seus poderes se revelaram nus,
como animais à beira do abismo.
És sefardim e és alemão,
mas és mais do que pátria,
mais do que língua,
és voz que atravessa a noite
para nos dizer:
o homem é rebanho,
o homem é chama,
o homem é silêncio.
E hoje,
quando leio teu nome,
sinto que carrego um peso antigo,
um peso que não é pedra,
mas estrela:
o peso do exílio,
o peso da dignidade,
o peso do homem.
Sonhos nebulosos
Sonhos nebulosos passam por mim
como nuvens que não têm destino certo.
Não são meus,
não são de ninguém,
mas me atravessam como um vento frio
que às vezes me faz parar,
outras vezes apenas seguir em frente.
Ser vil?
Talvez seja isso:
ser como a terra pisada,
que suporta o peso de todos,
e mesmo assim continua sendo terra.
A terra não se envergonha
de ser o que é.
Não pergunta se merece.
É chão, é pó,
e porque é chão e pó,
é tudo.
Ser próprio?
É não querer ser mais do que sou.
É não inventar uma alma que não tenho,
nem vestir palavras que não cabem em mim.
É olhar as árvores,
e perceber que nenhuma delas sonha
em ser mais do que árvore.
O carvalho não inveja a roseira,
a roseira não inveja o musgo,
o musgo não inveja a pedra.
E todos, juntos, fazem o campo.
Os sonhos nebulosos,
esses sim, às vezes me enganam.
Dizem-me que sou outra coisa,
que serei melhor amanhã,
que serei maior do que sou.
Mas ao acordar,
sou apenas eu,
com o corpo cansado,
com o olhar igual ao de ontem,
com a vida que não se importa
com o que sonhei.
Ser vil e ser próprio
é o mesmo que ser real.
É aceitar que não há grandeza em mim
além da de existir,
como a pedra existe,
como o rio corre,
como o cão abana o rabo.
Os homens falam de virtudes,
de purezas, de ideais,
como quem escreve no nevoeiro
um nome que logo desaparece.
Eu prefiro olhar para o chão,
onde o pó se junta em silêncio,
onde os insetos fazem seu trabalho,
onde a humildade é a única lei.
Não quero ser santo nem sábio,
não quero ser herói nem mestre.
Quero ser apenas este pedaço de carne,
esta respiração,
este olhar que se abre à luz
e se fecha à noite.
E se alguém disser que isso é pouco,
eu direi que é o bastante.
Porque a vida não pede mais,
a vida não exige mais,
a vida é apenas o que é,
e ser vil e próprio
é a única forma de estar inteiro nela.
Os sonhos nebulosos continuarão vindo.
Deixarei que passem por mim
como nuvens que não me pertencem.
E permanecerei de pé,
sem querer agarrar o que foge,
sem querer ser mais do que sou,
apenas respirando,
apenas vivendo,
apenas eu.
Três moços na paisagem
Três moços caminham na paisagem.
Um veste o silêncio,
outro veste a sombra,
o terceiro veste a esperança.
Eles não sabem de onde vieram,
nem para onde vão.
Mas o vento lhes sopra segredos,
e as árvores se inclinam como quem reza.
O primeiro olha para o céu
e vê estrelas que ainda não nasceram.
O segundo escuta a terra
e ouve vozes de mortos antigos.
O terceiro toca a água do rio
e sua mão se enche de luz.
A paisagem não é paisagem:
é um véu de mistério
que se abre e se fecha,
como olhos que sonham.
Os moços seguem,
e cada passo é uma prece.
Os pássaros pousam sobre seus ombros,
os peixes saltam para saudá-los,
o horizonte se curva em arco
como se fosse um templo invisível.
Talvez não sejam moços,
mas ecos.
Talvez não sejam passos,
mas lembranças.
Talvez não seja uma paisagem,
mas o coração de quem os vê.
E enquanto caminham,
tudo se transforma:
o tempo se dissolve em bruma,
a vida se torna canto,
o mundo é apenas
a travessia dos três moços
na paisagem infinita.







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