domingo, 14 de dezembro de 2025

Dois one-liners

 






o amor que dura

 


Passarito - piada de suruba

 








O IDIOMA BRASILEIRO

 

O IDIOMA BRASILEIRO

...Lusámérica Latim em Pó...
...

Ó Língua Brasileira, que em fulgor de luz noviça 

Vibra no vasto sul da Pátria amada,

 Não és a voz de Portugal cansada, 

Mas alma nova em nova e forte liça!


Em ti não há a dor da velha justiça,

 Nem o rumor da história já findada; 

És NA América o verbo, renovado, 

Um sol que a lusitânia revitaliza!


Tu és o Brado, o sotaque que arrebata, 

A gíria que na esquina se dilata, 

O neologismo ardente e tropical!

Com o vigor da mata e do sertão profundo,

 És o idioma maior do Novo Mundo, 

Mais rico em corpo e menos ancestral!

A Escassez e os Ossos da Memória

 O calor pegava de jeito, um bafo de fim de tarde sem a pressa habitual da ventilação forçada. Desde as duas, o silêncio era uma chaga sonora na Paulista, só o buzinar irritado e distante, sem semáforo. O pequeno homem, Mário, estava sentado no peitoril da janela do terceiro andar, o corpo franzino pendido para dentro, quase uma dobra de pergaminho gasto, as mãos cruzadas sobre os joelhos finos. A cidade, lá embaixo, respirava um ar pesado, de estafa e desarranjo.

"É o fim, Mário. O fim," ele cochichou para o ar imóvel, mais um ruído dentro do estômago que uma palavra de fato.

A falta de luz não era nova, mas esta… esta durava, vinha com ares de permanência, de promessa descumprida. Sentia a irritação crescer nos músculos, o suor fino escorrendo na têmpora. Irritação com o óbvio: a fragilidade de tudo. A eletricidade, os fios, o cimento, o gás, o motor, a vida que era feita desses enganos sólidos.

Aí veio o pensamento, rápido, como um estalo de vela acesa: e se não voltar? Se for só o primeiro sinal?

Fechou os olhos. A escuridão interna era mais fresca. Viu então, no olho da mente, não o caos do asfalto, mas a vastidão silenciosa do nada. O mundo dobrando-se sobre si mesmo, não em fogo e trovão, mas numa lentidão de poeira, de tijolo que volta a ser argila e areia. A cidade, a sua São Paulo, reduzida a um monturo de ferros retorcidos e sombras longas. E ele ali, Mário, o pequeno homem, o último vestígio, talvez, de uma linhagem que já vira o mundo acabar e recomeçar tantas vezes.

Lembrou da avó. Dona Clara. O cheiro de azeite e alecrim. A voz, uma toada arrastada, meio portuguesa, meio castelhana, que ele nunca soube decifrar por completo.

"Vovó," ele murmurou, a língua sentindo o gosto da palavra antiga. "Você lembrava, não lembrava? Do que é preciso para o escuro não ser o fim."

A avó Clara, sentada na cadeira de balanço no quintal, sob a mangueira do Brooklin. O avô Elias, judeu espanhol, de Málaga ou de Sevilha, que ele nunca soubera ao certo, só a história da travessia. Eram a diáspora em pessoa.

"O sol se põe, Mário. E a gente acende o que tem. Um candeeiro. A brasa. A memória."

A voz da avó era agora viva dentro dele, uma agulha a costurar o tempo.

"Mas aqui, vovó," ele respondeu, agora em voz alta, a garganta apertada pela seca, "aqui não temos candeeiro. Só o disjuntor. E ele está morto. Nós somos gente do disjuntor. Gente fraca."

O avô Elias, nos seus ternos velhos, o rosto de um mapa de rugas profundas, os olhos muito escuros, fixando um ponto invisível no horizonte do quintal.

"Vê, Mário," o avô dizia, a voz grave, cansada de mundo. "A terra é redonda e muito vasta. O Brasil é vasto, mas não é a nossa terra. A nossa terra… a nossa terra é feita de ossos. Dos ossos que deixamos na Espanha e dos que vamos deixar aqui. O os de onde a gente vem e o os de onde a gente não volta mais."

Mário sentiu um arrepio. A falta de energia era isso. A fragilidade do não-lugar. Eles tinham chegado com pouco, com a pele, com a língua, com a memória e a crença de que o novo país aguentaria. Mas São Paulo, com seus milhões de luzes apagadas, parecia desmentir os avós.

Ele abriu os olhos. O cheiro de esgoto subia da rua, misturado ao calor do asfalto. A cidade era um monstro deitado, sonhando um pesadelo sem eletricidade.

"Não," ele disse, balançando a cabeça de leve, quase uma negação involuntária. "Os ossos são os meus. E os seus, avó. Não a luz."

Ele se levantou, cambaleando levemente, o pequeno homem procurando a caixa de fósforos na penumbra do apartamento. A vela estava em cima da mesinha de centro, um toco gasto. Se o mundo estivesse mesmo acabando, seria com um calor abafado e o cheiro de parafina barata. E a certeza incômoda de que a força, a verdadeira força, nunca estivera nos fios.

"Acende o que tem," ele repetiu a frase da avó. E riscou o palito, a pequena faísca rasgando a escuridão com um som seco, familiar.

OITO PÁSSARINHOS



1. Abro a janela

Abro a janela do dia como quem aprende a respirar.

 O mundo entra sem pedir licença — 

poeira, pássaros, notícias. Fico.

 Entre o barulho e o gesto simples de existir.

2. Inventário da Manhã

Um copo d’água, um nome esquecido, a luz caindo no chão. Tudo cabe na manhã se eu couber também. O resto é pressa.

3. Geografia Íntima

Há ruas dentro do peito, becos de medo,

 avenidas de vontade. 

Caminho por mim sem mapa,

 errando certo.

4. Manual de Sobrevivência

Guarde silêncio para a noite. 

Use palavras como abrigo. 

Não discuta com a chuva.

 Aprenda a cair sem quebrar o céu.


5. Carta ao Tempo

Tempo, não me apresse. Ainda estou aprendendo 

a perder com elegância e a ganhar sem ruído.

 Deixe-me aqui mais um pouco.

6. Corpo em Trânsito

Meu corpo atravessa o dia como um ônibus cheio. Leva sonhos em pé, saudades sentadas, um futuro cochilando. Chego inteiro por insistência.

7. Breve Teologia

Não creio em respostas. Creio em tentativas. 

Se há um deus, que seja intervalo: uma pausa

 onde a vida respira.

8. Fecho

Quando a noite fecha o livro, fico entre páginas. 

Não terminei. Amanhã continuo — com outra luz,

 outra voz.

CORAÇÃO DE PALAVRAS


Não escrevo pra viver.

Pra mim, viver basta —

feito água que segue sem perguntar ao chão.

Escrevo porque a mão coça de mundo

e o peito quer dizer sem saber.


Escrevo e não uso isso

pra sonhar.

Sonho é bicho que corre solto,

não cabe em papel sem se ferir.


Lá fora o mundo é barra pesada,

pedra com dente,

estrada que morde.

Ficar escondidinho no quarto

é terrível —

sei, covardia miúda,

mas às vezes a coragem

também se recolhe pra não morrer cedo.


O mundo lá fora tem armas,

olhos duros, pressas afiadas.

Eu não tenho aço nem pólvora,

nem escudo que aguente a brutalidade do dia.


A única coisa que tenho

é um coração

feito de palavras.


Coração falante,

meio torto, meio bicho-do-mato,

que sangra letra quando aperta

e aprende a bater

no compasso do indizível.


Com ele enfrento o caminho,

sem vencer, sem perder —

indo.

Porque palavra, quando é viva,

também anda.


ONDE ESTÃO OS PASSARINHOS?


Onde estão os passarinhos?
Perguntou o silêncio
com um cisco de tarde no olho.

Talvez estejam
desaprendendo o voo
em algum galho distraído,
ou brincando de invisível
no bolso do vento.

Vi um passarinho
cabendo inteiro
dentro de um suspiro.
Outro morava
num verbo torto
que não sabia cantar.

Os passarinhos gostam
do que é pequeno:
uma poça pensando céu,
um prego enferrujado
sonhando árvore.

Onde estão os passarinhos?
Estão no quase,
no nada que respira,
no intervalo entre
um assobio
e a vontade de voar.

Se você não vê,
é porque eles aprenderam
a ser poesia.

Voltar a Ser Escritor



O silêncio era uma droga pior que o álcool, e eu conhecia as duas. Já fazia dezoito meses que não escrevia uma linha, não passava nem um bilhete para o entregador de gás, quanto mais uma crônica, um conto. A máquina de escrever, uma Olivetti Lexicon 80 verde-oliva, ficava coberta por um lençol branco na sala, parecendo um caixão de bebê. Eu a via todos os dias. Ela me cobrava, me julgava. Não era a máquina, claro. Era o vazio que a Liz tinha deixado. Um vazio sem cheiro, mas com peso, o peso de um corpo que não se mexe, não fala, não ri, não faz sexo. Só fica.



A vida virou um armário. Tudo guardado, etiquetado. Acordar, café, jornal, almoço, mais café, uísque, dormir. Nenhuma surpresa. Nenhuma emoção. As pessoas na rua tinham pressa, pareciam vivas. Eu era um espectro. O editor me ligava a cada três meses, sempre a mesma história: "E aí, Mário? Alguma coisa no forno? O público sente falta." Eu respondia com um monossílabo, "Não", ou desligava antes. Eu não sentia falta de nada. A literatura, antes um vício, virou uma lembrança suja, como a ressaca depois de uma noitada inútil.



Lembro da última vez que ela leu algo meu. Um conto sobre um motorista de táxi que matava os passageiros que davam gorjeta baixa. Ela achou violento, mas riu, com aquela gargalhada dela, curta e rouca, de fumante. "Você escreve muito bem sobre a maldade, Mário. É o seu dom. Mas por que tanta raiva?" Eu não tinha raiva. Eu tinha medo. Medo de ser como todo mundo, de ter uma vida previsível, uma morte sem nota de rodapé. E agora, ela estava morta, e a vida dela era a nota de rodapé da minha.



Eu andava pela cidade, o Rio de Janeiro, que antes me dava personagens, me dava tramas, agora só me dava suor, poluição e barulho desnecessário. Eu via a miséria, a opulência, a beleza, a feiura. Mas nada me tocava. Era como se eu tivesse um vidro, um para-brisa sujo entre mim e o mundo. Eu precisava de um choque. Um soco na cara. A morte dela tinha sido isso, mas a dor não gerou arte. Só apatia. A dor era estéril, uma puta velha e magra que não paria nada.



Foi a faxineira, dona Nilda, que deu o soco. Ela tirou o lençol da Olivetti. Simples assim. Estava cansada de desviar daquele "fantasma" na sala. Eu reclamei, gritei que ela não devia mexer nas minhas coisas. Ela me olhou, os olhos cansados de quem viu a vida inteira passar sem folia, e disse: "O corpo dela já tá enterrado, seu Mário. O que tá aí é só um pó. Vai trabalhar." A honestidade dela, a brutalidade sem verniz, me atingiu mais que qualquer crítica literária.



Naquela noite, bebi menos. Sentei-me na frente da máquina. As teclas, frias. O papel, amarelo. O cigarro queimando no cinzeiro. Eu não tinha o que dizer. Pensei em Liz. Pensei em como a conheci, na fila do cinema, discutindo um filme ruim de Godard. Pensei na última briga, banal, sobre a conta de luz. E então, comecei a digitar. Não sobre ela, não sobre a morte. Sobre um policial aposentado, em São Paulo, que cuidava de pombos e colecionava facas. Uma besteira, mas era a faísca.



A máquina voltou a ser barulhenta. O som das teclas era o som de eu voltando à vida, o som de eu vomitando o silêncio que tinha me entupido. Escrevi por quatro dias seguidos, só parando para fumar e mijar. O texto era seco, rápido, sem adjetivos desnecessários. A Liz não estava mais lá para dizer que era violento. E a falta dela, o buraco que ela deixou, era a única coisa que me dava a urgência. A morte tinha me roubado tudo, e eu ia roubar dela uma história.



Terminei. Um conto de setenta e duas páginas, sem nome. O policial, o velho e os pombos. Mandei para o editor, sem uma palavra, só o arquivo anexado ao e-mail. Duas horas depois, o telefone tocou. Era ele, a voz rouca, quase chorando. "Mário... isso é... é a sua melhor coisa. Brutal. Genial. Você voltou." Eu não estava genial. Eu estava desesperado. A diferença era pouca, mas estava no papel.



Seis meses depois, veio a notícia. O conto, batizado de O Pássaro e a Faca, tinha ganhado o Prêmio Machado de Assis de Contos. O mais importante do país. A festa foi no Theatro Municipal. Eu odiei. Terno apertado, gente falsa, discursos vazios. Subi no palco, peguei o cheque e o troféu de metal frio. Falei três frases: "Obrigado. A literatura não salva, mas distrai. Boa noite." Desci e fui direto para a rua. Não era pelo prêmio, era pela dívida. O silêncio tinha perdido.



Com o dinheiro, decidi sumir. O Rio era a Liz. Cada esquina, cada bar, era um fantasma. Eu precisava de um lugar sem memória, um lugar neutro. Abri um mapa de São Paulo. Não a capital, o interior. Algum lugar com menos ruído, menos ambição. Escolhi São Bento do Sapucaí. Nome de santo, cidade pequena. Montanha e ar frio. Perfeito para um escritor que não queria ser incomodado.



Comprei uma casa de madeira antiga, com varanda e vista para

escrever é um dom que existe para se opor à morte!

Escrever é um dom que existe para se opor à morte! — penso isso enquanto observo a tarde descer lenta sobre o rio, trazendo consigo o cheiro de folhas úmidas e lembranças que insistem em não envelhecer. A morte, aqui, não chega de repente; ela se anuncia em pequenas perdas: uma casa vendida, uma voz que se cala, um rosto que a memória começa a borrar. Escrever é uma forma de atraso, um gesto mínimo contra o desaparecimento. Aprendi cedo que as palavras guardam o que o tempo tenta roubar. Na infância, ouvi histórias que hoje sei serem maiores do que a própria vida de quem as contou. Não importava a exatidão dos fatos, mas o modo como eles eram narrados, com pausas, silêncios e repetições, como se a fala precisasse de fôlego para resistir. Quando alguém morria, ficava a história — e, às vezes, era isso que nos permitia continuar. Escrever não salva ninguém, eu sei. Não devolve o corpo, não recompõe o rosto perdido, não impede a erosão da saudade. Mas cria uma margem. Um lugar onde os ausentes ainda respiram, ainda caminham pelas ruas antigas, ainda discutem à mesa, ainda olham o rio como se o amanhã fosse certo. Nesse espaço frágil, a morte encontra resistência, ainda que provisória. Talvez por isso a escrita seja feita de retornos. Volta-se sempre aos mesmos lugares, às mesmas cenas, como quem revisita uma casa abandonada para confirmar que ela ainda existe, mesmo em ruínas. Cada frase é uma tentativa de nomear o que já não está, de oferecer forma ao que insiste em desaparecer. Escrever é, no fundo, um gesto de fidelidade. Às pessoas, às cidades, às vozes que nos formaram. Enquanto houver quem escreva, algo permanece de pé. E se a morte insiste — porque sempre insiste —, a palavra responde com sua teimosia silenciosa, prolongando a vida por mais um parágrafo.


A Última Moeda do Tio Saul

 

Morrer sem dinheiro, essa era a maior preocupação do meu Tio Saul, um judeu persa que morava em São Paulo junto do meu pai. Não era uma preocupação vulgar, movida pela ganância ou pela ostentação, mas um terror metafísico, um medo atávico de que a falta de recursos materiais na hora final pudesse significar, de alguma forma inarticulada, uma falência moral, uma prova incontestável da sua passagem inútil pela Terra.

Tio Saul não era pobre. Tinha o suficiente e um pouco mais, fruto de um comércio miúdo de tecidos que ele mantinha no Bom Retiro, mas que tratava com a mesma gravidade com que um banqueiro maneja milhões. Cada nota, cada moeda, era examinada com o fervor de um estudioso de Talmud, não pelo valor intrínseco, mas pelo que representava: a barreira tênue e movediça entre a decência e a miséria.

Meu pai, mais brasileiro, mais resignado com a incerteza tropical, tentava amenizar o drama com um pragmatismo quase zombeteiro. "Saul," dizia ele, com aquele jeito que só um irmão pode ter, "quem morre não se preocupa com a conta. O problema é de quem fica para pagar o caixão." Mas a ironia paterna esbarrava na muralha da obsessão do Tio.

Para Tio Saul, a morte era uma viagem para a qual se devia estar preparado com provisões. E a única provisão confiável neste mundo profano, onde até Deus parecia hesitar em intervir, era o dinheiro. Não o ouro dos reis, mas o papel-moeda que garantia um enterro digno, sem a vergonha de um favor ou a humilhação de uma dívida póstuma.

Lembro-me das conversas noturnas na sala. O cheiro de café forte misturado ao cheiro adocicado de incenso que ele teimava em queimar. Ele se sentava, as costas retas na cadeira de jacarandá, e discorria sobre a fragilidade dos impérios e a solidez, ainda que ilusória, de uma conta bancária.

Ele nos contava histórias de sua infância no Irã, dos deslocamentos, da necessidade de fugir com o que cabia nas mãos, e de como o dinheiro, aquele vil metal, era o único passaporte capaz de atravessar fronteiras e calar a boca dos burocratas e dos opressores. Para ele, o dinheiro era, antes de tudo, liberdade.

E, ironicamente, a sua vida em São Paulo era marcada por uma economia quase monástica. Recusava-se a comprar um carro novo. Vestia-se com a mesma sobriedade de sempre. Seu único luxo era o silêncio e o tempo dedicado a reler os clássicos persas e as páginas em hebraico. Viver o presente com parcimônia era, para ele, um ato de respeito ao futuro desconhecido.

A preocupação com a falta não era, portanto, uma antecipação da pobreza em vida, mas o terror da pobreza no último instante, o medo de ser apanhado de surpresa, descalço na passagem. Como se a ausência de dinheiro na hora derradeira pudesse reverter toda uma vida de honestidade e trabalho.

Essa neurose econômica, no entanto, tinha o efeito curioso de torná-lo profundamente generoso, mas de forma calculada. Ele ajudava a comunidade, distribuía esmolas, mas sempre com a discrição e a certeza de que aquele ato era um investimento, uma espécie de apólice de seguro contra a sua própria ruína final.

E o fim veio, como sempre vem, inesperado e brutal. Ele estava no Bom Retiro, conferindo uma remessa de veludo azul-escuro, quando o coração falhou, rápido, sem aviso. Não houve tempo para despedidas, nem para a última conferência da caderneta de poupança.

Quando meu pai e eu fomos ao banco resolver os trâmites, descobrimos que Tio Saul tinha, de fato, muito mais do que imaginávamos. Havia uma soma considerável, suficiente para viver com tranquilidade por muitos anos. A sua preocupação era infundada, mas real.

E então, ao fechar a conta e guardar o talão de cheques, meu pai sussurrou, com os olhos marejados: "Ele conseguiu, Paula. Ele não morreu sem dinheiro." E naquele momento, entendi que a vitória de Tio Saul não estava na quantia deixada, mas na paz que ele finalmente alcançou, livre do medo de ter sido, no último minuto, um indigente perante o Eterno.

São Paulo e a Sombra do Silêncio

 


Cenário: Uma varanda estreita em São Paulo, final de tarde, o barulho constante e abafado do trânsito. Saulo e Paula, irmãos já na meia-idade, observam o cinza da cidade.

PAULA: (Com a voz um pouco áspera, segurando uma xícara de café frio) Saulo, esse vento frio de São Paulo me enferruja a alma. Não é o vento da nossa casa.

SAULO: (Olhando para o céu que mal se distingue entre os prédios) O vento de lá traz o cheiro do rio, Paula. E o calor... O calor de Manaus grudava na pele, mas era um calor de vida, não essa frieza úmida que aqui só serve para te fazer vestir mais uma blusa.

PAULA: É isso que me mata. A gente se acostumou com o asfalto, com essa pressa que não leva a lugar nenhum. Quantos anos, Saulo? Desde que papai se foi?

SAULO: Desde o dilúvio, parece. Eu penso no Tarumã, no cheiro de açaí fresco no Mercado. Penso naqueles fins de tarde na Ponta Negra, quando o sol parecia queimar a água só para a gente ver. Lembro de mãe nos dizendo que a única coisa que não se deve esquecer é a luz do lugar onde se nasce.

PAULA: Mas você fica aqui. Eu fico aqui. Criamos raízes falsas nesse chão que não é nosso. Nossos filhos só conhecem prédio e fumaça. Digo a eles que a casa da avó era de madeira e tinha uma mangueira que dava manga o ano inteiro. Eles acham que estou inventando um conto de fadas.

SAULO: (Um sorriso triste) E talvez estejamos. Ou inventamos para nós mesmos a desculpa de ter ficado. Você tem seus filhos, Paula. A escola, a vida deles está aqui.

PAULA: E você? Você fica por quê, Saulo? A gente prometeu que voltaria. Montaria uma vendinha no Japiim, qualquer coisa... O sol nos curaria.

SAULO: (Se virando para ela, a voz mais baixa, quase um segredo) A verdade é que a gente não pode voltar, Paula. Aquele lugar... Ele só existe na memória, feito um livro que a gente não tem coragem de abrir de novo, porque sabe que o final já passou.


(O tempo avança. Meses depois, em Campinas. Paula está sozinha em seu pequeno quintal, dobrando roupas. As crianças estão na escola. O telefone toca. É uma voz distante, formal. Saulo, na véspera, fora levado por um mal súbito, um silêncio repentino. Paula desliga, os olhos secos.)


PAULA: (Para si mesma, olhando o sol pálido de Campinas) Saulo. Você não vai ver mais o rio. Não vai sentir o calor de lá.

(Ela se senta. Por um momento, a ideia de ir embora, de desfazer tudo, de pegar os meninos e a pouca herança e tentar a sorte em Manaus é uma chama viva. A chama do juramento, do calor que ele buscou a vida toda.)

(Olha ao redor: as plantas que ela cultivou, os cadernos dos filhos sobre a mesa da cozinha. A rotina pesada, mas familiar.)

PAULA: (Respirando fundo, sentindo o cheiro do amaciante nas roupas limpas) Ele morreu buscando a luz de lá. Eu... eu não posso deixar as crianças sem a minha luz aqui. Não vou.


(Ela se levanta, as mãos firmes. Manaus continua sendo um sonho de madeira e água, mas Campinas, agora, é o solo duro e real onde ela precisa enterrar o seu luto e garantir que a vida de seus filhos não seja apenas uma sombra da saudade que a consumiu. Ela decide ficar. O rio agora corria para dentro dela, silencioso e profundo.)

A Praça

 O sol já passava do meio-dia quando cheguei à praça. Era uma daquelas praças que ainda conservam a gentileza de antigamente, com árvores frondosas que estendiam seus galhos como braços acolhedores, bancos de madeira escura polidos pelo tempo e pelo corpo de incontáveis solitários e amantes, e um chafariz no centro, cuja água, ora vigorosa, ora suave, murmurava uma canção constante. Não havia pressa em mim, nem compromisso. Apenas a vontade de sentir o tempo escoar de uma forma diferente, longe do ritmo frenético dos relógios e das telas.

Escolhi um banco sob a copa de uma figueira imponente. Ali, a sombra era farta e fresca, e o vento, quando passava, trazia consigo o cheiro de terra molhada e flores de jasmim que eu nem sabia de onde vinham. Tirei o livro da mochila, mas as palavras demoraram a se fixar. Meus olhos se perdiam nas miudezas da vida da praça. Vi um casal de idosos de mãos dadas, caminhando lentamente, como se cada passo fosse uma celebração da longevidade partilhada. Um grupo de crianças brincava de pega-pega, suas risadas agudas cortando o ar, um som que me fez lembrar de um tempo distante onde a maior preocupação era fugir do "pegador". Havia também um homem de terno, sentado em outro banco, com um ar grave, folheando um jornal com uma concentração quase dolorosa. Que segredos ou preocupações estariam escondidos entre aquelas páginas ou em sua mente?

A tarde avançava sem que eu percebesse. A luz do sol começou a mudar, os dourados se intensificando, as sombras se alongando, desenhando figuras fantásticas no chão de terra batida. O burburinho da praça se alterou. As crianças foram sendo recolhidas por mães e avós, os idosos já não estavam lá, e o homem do jornal tinha desaparecido. Agora, era o tempo dos jovens casais, que se aninhavam nos bancos, sussurrando segredos e trocando carinhos, e de alguns poucos corredores, que passavam apressados, com fones de ouvido e rostos focados.

Eu me permiti ser um observador silencioso, um fantasma que absorvia cada detalhe. O ar ficou mais frio, um presságio da noite que se aproximava. O chafariz continuava sua canção, mas agora parecia mais melancólico, mais introspectivo. As primeiras luzes dos postes se acenderam, pontinhos amarelos que competiam timidamente com o último alento do crepúsculo. O livro, esquecido, repousava ao meu lado. Não importava. A praça havia me contado histórias muito mais interessantes do que qualquer ficção.

Quando a noite finalmente engoliu os últimos resquícios de luz, e as estrelas começaram a surgir, pálidas no céu ainda um pouco tingido de azul-escuro, levantei-me do banco. Senti um leve formigamento nas pernas, mas uma agradável sensação de leveza na alma. A praça, agora quase deserta, era um convite à contemplação, um oásis de quietude em meio ao caos da cidade.

Caminhei de volta para casa, meus passos ecoando no silêncio da rua. As luzes das casas já estavam acesas, janelas que revelavam breves cenas de vidas alheias. Não era mais o mesmo homem que havia saído de manhã. Havia algo de novo em mim, algo que a praça me dera: a percepção aguda da beleza no ordinário, a efemeridade do tempo, e a persistência da vida em suas múltiplas formas. E, ao entrar em casa, a lembrança do cheiro do jasmim e do murmúrio do chafariz ainda pairava no ar, uma suave promessa de que a praça estaria lá, esperando por mim, amanhã ou em outro dia qualquer.

Aforismos de Guerra e Massa

 

A guerra é o único espetáculo onde a Massa tem permissão oficial para se desfazer e, paradoxalmente, se reafirmar na mais abjeta uniformidade da morte. É o impulso primitivo travestido de decreto.


O que se vê no campo de batalha é apenas a crosta. Por baixo, o que pulsa é o medonho e estranho desejo de que o outro seja aniquilado, uma descarga que o indivíduo sozinho jamais ousaria manifestar, mas que a multidão torna obrigatória. 


A guerra não é uma falha da razão; é a razão que falha perante a demanda ancestral e irresistível do impulso primitivo. A civilização é apenas uma fina camada de gelo sobre um poço de sangue.


Quem fala em "necessidade de guerra" está apenas tentando dar nome a uma urgência medonha e estranha que não tem nome, apenas o som oco da destruição em massa. É a destruição do espírito.


Cada soldado é uma célula que se desliga do corpo pensante para se reintegrar ao corpo primário da agressão. E a estranheza maior é que ele aceita essa regressão.

A Crueldade e a Inelutável Sombra da Guerra

 


   A premissa da desnecessidade da guerra, postulada com veemência quase pueril, confronta-se com a fria e implacável realidade da condição humana. É, de fato, um óbvio que o motor por trás de tamanha destruição reside numa "grande maldade incalculavelmente insana, desumana, irracional". Esta "maldade" não é um mero conceito abstrato, mas a manifestação de pulsões primárias, profundamente arraigadas no inconsciente do Homo sapiens, que o levam à "destruição ao invés da construção da paz e da harmonia".

O adjetivo "animalesca" aqui é revelador, mas talvez impreciso. O animal, em sua natureza, age por instinto de sobrevivência, por territorialidade, por fome. Sua agressão é, em geral, funcional. No homem, contudo, a agressão transcende essa funcionalidade. Ela se torna sádica, gratuita, uma descarga de energia libidinal desviada e pervertida. A pulsão de morte, o Todestrieb, atua de maneira implacável, buscando reduzir a vida ao seu estado inorgânico, ao nada. A guerra, nesse sentido, é a mais grandiosa e devastadora sublimação fracassada dessa pulsão, onde a energia destrutiva é direcionada para o exterior em uma escala coletiva.

A "raça piolhenta em cima desse planeta a que nomeamos terra" é uma metáfora poderosa para a autoimagem depreciativa do homem, que, apesar de suas pretensões de racionalidade e civilidade, permanece um ser atormentado por conflitos internos e externos. O "animal perplexo e burro" a que se refere o observador revela a frustração diante da incapacidade do ser humano de transcender suas próprias sombras.

Enquanto essa estrutura psíquica fundamental persistir, enquanto o ego não conseguir mediar eficazmente as demandas do id (com suas pulsões agressivas e destrutivas) e as exigências do superego (que, paradoxalmente, pode justificar a guerra em nome de ideais morais ou éticos distorcidos), "a guerra será algo comum a qualquer um, mesmo a quem a ela se opunha". A oposição consciente à guerra, por mais louvável que seja, muitas vezes se choca com os estratos mais profundos do psiquismo humano, onde a agressão e a rivalidade encontram terreno fértil. A paz, sob essa ótica, é um estado precário, um breve armistício entre as incessantes batalhas internas e as inevitáveis projeções dessas batalhas no cenário mundial. 

  A guerra, então, não é apenas um evento histórico ou político; é uma manifestação trágica e cíclica da própria estrutura da alma humana.

Composições

MULHER NUA



ESTUDO:
três NUs



Um rosto em agonia



Mulher nua 


Eu segurando minha obra





Pablo Picasso: em imaginação




Figuras Africanas


Casal: homem e mulher



Travesti e mulher antes
de fazerem sexo

 

O Canto do Refúgio

 


Por trilhas rochosas e vales de mágoa,

 Eu vi seu espírito, curvado pela água. 

Seu manto, esfarrapado pelo espinho e pela névoa, 

Sua alma, marcada pelo antigo medo.

Você cruzou pontes, 

enfrentou sombras, carregou um peso 

pesado sozinho.

Noite após noite, a vigília do destino 

Pousou sobre você, um fardo sem tino.

 Mas agora a jornada, por um instante, se finda, 

Sob o céu azul, onde a paz nos inunda.

Descanse aqui, viajante. Sente-se perto da fogueira, sinta o calor.

Deixe que o fogo que dança, em chamas douradas,

 Queime o cansaço das eras passadas.

 Pois aqui, onde os rios cantam a sabedoria, 

O tempo flui suave, sem pressa ou agonia.

Batidas  suaves, música relaxante, Sons medievais pacíficos te cercam.

Não temas a escuridão que a brisa murmura

; São os ecos da floresta que cura. 

A música da água, a harpa que nos chama, É o bálsamo élfico que a alma reclama.

Solte o que o prende, o fardo que o dobra, 

Pois a paz que buscava, aqui se desdobra.

 Durma, pois o amanhã trará um novo alvorecer, 

E um coração renovado para o que há de vir.

O Refúgio Sob o Monte

 

em lembrança de Tolkien, o sábio da terra-média!


A lareira crepita, a turfa queima lenta,

 Enquanto o vento sopra, gélida tormenta.

 Atrás da porta forte, de carvalho e bronze, 

O mundo se retorce, a noite se esconde.


Descanse... É apenas a chuva e ela não dura para sempre.


Ouve-se o tamborilar na janela de vidro,

 Um choro do céu cinza, um som decidido. 

Não é orc ou dragão, nem mal que se anuncie, 

Mas a melodia aquosa que o telhado conduz.


Descanse... É apenas a chuva e ela não dura para sempre.


Pois toda inundação, por mais forte que caia, 

A Grama-do-Pântano bebe e a terra a engole e irradia.

 Em breve, a manhã virá, com luz em seu véu, 

E o verde estará mais vivo sob o céu.


Descanse... É apenas a chuva e ela não dura para sempre.


O Mago partiu, , ele se foi, 

Mas no Coração há paz, sob o arco-íris depois.

 Então, tire as botas, sente-se perto do fogo, 

Pois mesmo a tempestade é só um breve jogo.


Descanse... É apenas a chuva e ela não dura para sempre.


E quando o último pingo silenciar seu lamento, 

Haverá chá e bolinhos, e um novo firmamento!

Algumas desenhadas

Menina da Ria




Moça 

Menina da Bahia



A vaca



 

PISA NO OURO, PISA NA PRATA


Pisa no ouro, pisa na prata,

só não pisa em mim, não,

nem no meu amor, não,

que a vida é feita de calma e de mão.


Pisa no brilho, pisa na glória,

mas no coração não,

que é coisa rara, é minha história,

não vem rasgar, não, não, não.


Pisa no chão que eu sei que é forte,

mas não pisa no meu sonho, não,

que meu amor é quem me trouxe

pra viver sem medo, em plena canção.


O ouro e a prata vão brilhar,

mas o que é de alma, não se pode tocar,

se pisa no amor, se pisa na dor,

a gente perde o que tem de melhor.


Apócrifo de Dorival Caymmi

....diante do mar de Salvador, a beleza da morena é a Bahia do meu amor!


...BEIJO DE MARÉ TARDE...


aqui começa a bossa nova: 

Antes que o mar chegue e me arraste,

ô meu bem, deixa eu ficar,

deixa a areia guardar meus passos

como quem não quer lembrar.


Antes que você me esqueça, sim,

antes da noite cair,

vou deixar na praia um beijo tarde,

desses que sabem partir.


Vou beijar seus lábios carmesim

com gosto de sal e sol,

beijo manso, beijo lento,

feito rede em caracol.


O mar vem vindo, eu sei,

vem cantando devagar,

leva nome, leva promessa,

mas não sabe o que é amar.


Se amanhã só restar espuma

no lugar do nosso chão,

fica o beijo na beira d’água

batendo feito canção.


/Arquitetura Brasileira!




 

A vaca no pasto

 


Mulher nervosa no meio da fila


 

Composições simples


Menina andando na 
cidade de Campinas



O Espanhol é feliz


O repouso na praia



Modelo Cubista







 


Composições Construtivistas

 

chuva fina no meio do caminho



Paisagem de SÃO PAULO



A ESCULTURA 



Figura na praia 


Casal na praia 









sábado, 13 de dezembro de 2025

Adamantina, Bossa Nova do Oeste


Quarteto I

Adamantina, tua brisa é mansa, sem pressa, 

Um violão de Jobim tocando à beira-sol. 

O céu do Oeste Paulista tem a promessa 

De um fim de tarde em tom de azul e de arrebol.


Quarteto II

A jóia incrustada no sertão que floresce, 

Com o cheiro do café e a calma da fazenda. 

Teu nome é a pedra rara que a memória tece, 

Uma melodia simples que a alma compreenda.


Terceto I

Aqui, o asfalto encontra o verde, suavemente,

 E a vida é uma varanda, um banco sob a mangueira. 

O tempo corre lento, quase transparente.


Terceto II

Tu és a Bossa Nova, a pausa verdadeira, 

No mapa agitado, és a nota que se aguenta,

 Adamantina, doce e sincera, 

a vida inteira.

Sol, Amor e Ser

 Quarteto I  A cobra se acende, um raio renascido,

No chão de luz do sol, verde e amarelo forte.

O tempo-espaço-cálice é o destino querido,

Onde o afeto nasce e a saudade não tem porte.

Quarteto II  A mulher é a força, o cosmos em canção,

Seu ventre, a raiz da terra, o fruto que se expande.

No ritmo que pulsa, no meu peito-coração,

Desfaz a geometria que o pensar me comanda.

Terceto I   O amor é a teia que me prende e me liberta,

É a fruta madura, a dança feita do ar.

Terceto II  E o sol é o axé que toda a vida desperta,

De onde o meu ser de cobra pode enfim bailar.

Livre no Paço (Poema/Canção)

 

Sou livre e rico, vou existir no paço.

 Não é de mármore o chão, nem é de ouro o traço, 

Mas a existência é o solar, a morada, o espaço. Sou o

 luxo que caminha sem disfarce e sem cansaço.

O universo é vasto, eu sei, a imposição do vago.

 Parece frio, distante, um infinito afago Que de tão

 grande, de tão nu, se torna um fardo. Sim, o universo,

  esse infinito, é pobre e exato.

Mas veja, meu amor, a curva que o instante faz: Aqui, 

onde o ar é doce, onde a gente é capaz De um riso 

solto, um banho de chuva, a paz Que se inventa 

e se desfaz por entre os cais.

O cosmo é a tela cinza, a tela deslavada. Ma

s a vida é 

show de rock, é a batida acelerada! É o grave que 

treme a alma, a guitarra prateada, É a cor vibrante que irrompe, a voz desgovernada!

Eu me faço presente, um acorde dissonante e belo. 

Eu sou a tropicália que acende o candelabro. 

Não preciso de estrelas, de tronos, de castelo, Se sou o próprio ritmo, o eterno novelo.

Sou livre e rico, vou existir no paço. 

O universo é pobre, mas a vida é show de rock.

SHOW NO PAÇO


Sou livre e rico,
rico de um jeito torto,
rico de ar, de ideia, de desejo
que não cabe no bolso
nem pede permissão.

Vou existir no paço,
mas descalço,
com a coroa meio torta
e o coração elétrico.
Palácio também é estado de espírito
quando a alma não se curva.

O universo é pobre —
tão imenso e tão vazio —
cheio de estrelas que não sabem dançar,
de leis frias,
de silêncios matemáticos.

Mas a vida…
a vida é show de rock.

É guitarra rangendo na carne,
é voz que falha e mesmo assim insiste,
é luz estourando no escuro
no exato segundo em que tudo faz sentido
sem explicar nada.

Sou livre e rico
porque ainda posso cantar,
misturar o sagrado com o profano,
o luxo com o lixo,
o amor com o susto.

Que o cosmos continue econômico,
contido, distante.
Aqui embaixo,
no palco improvisado do agora,
a vida explode —
e eu danço.

BRASIL A DENTRO - samba


Vou sair,
vou Brasil adentro,
na França da América do Sul
— perfume de café com sonho europeu
no calor do trópico sem pudor.

Vou zulu,
andar nu de mapa e de medo,
pé na estrada,
corpo em canto,
alma em batuque antigo
que o tempo não ensinou a esquecer.

Vou para a Bahia
viver de gado,
de sol lento,
de prosa comprida na sombra do dia,
onde a vida mastiga a pressa
e devolve sorriso.

Vou cantar com o vento,
vou plantar meu nome no chão,
vou aprender com o silêncio
o que o barulho não diz.

Mas eu vou ficar em São Paulo, amor.
Ficar porque o caos também chama,
porque o concreto pulsa,
porque teu olhar atravessa avenidas
e me ancora.

Entre o ir e o ficar
sou estrada aberta:
Brasil que anda,
Brasil que dança,
Brasil que ama
sem pedir tradução.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

BRASIL E ESTADOS UNIDOS: O SONHO DA DIFERENÇA DIANTE DA RIQUEZA DO NORTE E A POBREZA IRÔNICA DO SUL


Pensar a divergência entre Brasil e Estados Unidos exige hipóteses ao mesmo tempo rigorosas e imaginativas para responder a dois problemas centrais da história econômica brasileira: por que acabamos nos tornando um país relativamente pobre, com renda per capita baixa; e por que somos tão desiguais. A comparação com os Estados Unidos não é exercício retórico, mas um instrumento analítico poderoso para iluminar escolhas institucionais, trajetórias históricas e seus efeitos persistentes.

Uma hipótese decisiva é a de que o Brasil, ao longo de quase cinco séculos, transformou-se numa máquina de produzir gente “barata”. Trabalhadores em número abundante, pouco qualificados e de baixo custo foram o eixo de funcionamento da economia. Esse processo começou com a importação forçada de africanos escravizados, mas não terminou com a abolição. Ele foi continuamente reproduzido por arranjos políticos e institucionais que moldaram incentivos e restringiram alternativas.

No século XIX, a limitação ao acesso à terra e, mais tarde, o incentivo à imigração de trabalhadores europeus com baixa escolaridade reforçaram o mesmo mecanismo. Sem a possibilidade de adquirir facilmente um pequeno pedaço de terra e produzir de forma independente, os trabalhadores — recém-chegados ou já residentes — tiveram poucas opções além de vender barato a sua força de trabalho. O resultado foi uma economia com salários estruturalmente baixos, renda per capita comprimida e desigualdade elevada.

Esse caminho contrasta radicalmente com a experiência norte-americana. Nos Estados Unidos, a abundância de terras e seu baixo custo permitiram que imigrantes tivessem alternativas reais ao trabalho assalariado. Em um contexto de capital abundante — terras e maquinário — e trabalho relativamente escasso, os salários precisavam ser altos. Donos de terras e industriais só conseguiam contratar oferecendo rendas ao menos equivalentes ao que a mão de obra poderia obter por conta própria na agricultura. Produziu-se, assim, o inverso do caso brasileiro: gente relativamente “cara”, com maior poder de barganha e renda média mais elevada.

Durante muito tempo, buscou-se explicar o “atraso” brasileiro principalmente a partir de suas relações externas, em especial nas trocas comerciais com a Europa que teriam beneficiado a metrópole em detrimento dos proprietários locais. Essa interpretação tem mérito, mas é incompleta. Ela perde de vista os problemas internos da economia brasileira e, sobretudo, as decisões da elite política que sustentaram um modelo de baixos salários, baixa renda per capita e alta desigualdade ao longo do tempo.

A ironia do Sul, diante da riqueza do Norte, não reside em uma incapacidade abstrata ou em um destino inevitável, mas em escolhas concretas. Instituições que baratearam o trabalho e encareceram as oportunidades moldaram uma trajetória difícil de reverter. Entender essa diferença não é apenas um exercício histórico: é condição necessária para pensar políticas que alterem os incentivos, ampliem o acesso a ativos — como educação e terra — e permitam que o Brasil deixe de produzir gente barata para produzir prosperidade compartilhada.

POESIA E ECONOMIA, EM MÃOS DUPLAS


Dedicado a Paul Singer, com gratidão!


Costuma-se definir a economia como a ciência que consiste na análise da produção, distribuição e consumo de bens e serviços. A definição é correta, mas insuficiente. Ela descreve o objeto, não o sentido. A economia, antes de ser um conjunto de modelos e estatísticas, é uma prática social, um esforço coletivo para organizar a vida material de modo que a sobrevivência não seja privilégio de poucos. Nesse ponto, ela começa a tocar um território inesperado: o da poesia.

A poesia, por sua vez, costuma ser apresentada como arte de compor através de versos, como um modo de expressão artística caracterizado pelo uso de regras, de sons ou de estruturas sintáticas. Também aqui a definição é correta, mas incompleta. A poesia não é apenas forma: é tentativa de dar sentido à experiência humana, de nomear aquilo que escapa à contabilidade fria do mundo.

Quando observamos com atenção, percebemos que economia e poesia trabalham com a mesma matéria-prima: a vida em comum. A economia pergunta como produzimos, como repartimos, quem consome e quem fica de fora. A poesia pergunta como sentimos isso, como sofremos, como sonhamos e resistimos dentro dessas mesmas condições. Uma calcula, a outra canta — mas ambas falam da mesma realidade.

Num mundo marcado por desigualdades profundas, a economia não pode se limitar à eficiência, assim como a poesia não pode se fechar na estética. Produção sem justiça gera abundância para poucos e escassez para muitos. Verso sem compromisso humano vira ornamento vazio. É nesse ponto que as duas se encontram em mãos duplas: a economia precisa da sensibilidade da poesia para não perder o humano; a poesia precisa da consciência econômica para não ignorar as estruturas que moldam o sofrimento e a esperança.

A economia solidária, por exemplo, nasce exatamente dessa convergência. Ela é cálculo, mas também é imaginação. É regra, mas também invenção coletiva. Cooperativas, associações, redes de troca não surgem apenas da necessidade material, mas de uma visão poética do possível: a ideia de que outro modo de produzir e distribuir pode existir.

Assim, pensar economia é também um ato criativo. E fazer poesia, quando enraizada na vida social, é um gesto profundamente econômico no sentido mais amplo do termo: um esforço para reorganizar valores, redefinir prioridades e redistribuir sentidos. Em mãos duplas, poesia e economia nos lembram que nenhuma sociedade se sustenta apenas com números — nem apenas com versos —, mas com a difícil e necessária combinação de ambos.

Meditação sobre a Ordem Econômica no Tempo Presente



Eis que no nosso tempo o mundo se move com rapidez nunca antes vista, e aquilo que outrora era sólido como muralha hoje se transforma como areia levada pelo vento. Convém, portanto, meditar não apenas sobre os números e as leis, mas sobre o espírito que as anima. Pois a economia, ainda que vestida de técnica, é sempre um reflexo da alma humana em sua busca por segurança, poder e continuidade.

Supervisionou-se a implementação de mudanças regulatórias significativas, e muitos viram nisso apenas um rearranjo de normas. Contudo, quem observa com atenção percebe algo mais profundo: abriram-se as portas para novos participantes no setor de serviços financeiros, como outrora se abriram os portões das cidades para mercadores vindos de longe. Onde havia monopólio e rigidez, passou a haver trânsito, disputa e movimento. E o movimento, quando ordenado, é sinal de vida.

Essas mudanças impulsionaram a inovação e a digitalização, que não são fins em si mesmas, mas instrumentos. Assim como a balança e a moeda foram, em seu tempo, tecnologias que reorganizaram o comércio, hoje os códigos invisíveis e os algoritmos cumprem função semelhante. Eles aproximam o distante, aceleram a troca e multiplicam as possibilidades. Mas toda aceleração exige prudência, pois o que cresce sem medida pode também desabar sem aviso.

O florescimento das empresas fintech é, nesse sentido, um sinal ambíguo e instrutivo. Por um lado, fomentam o crescimento, ampliam o acesso e desafiam estruturas envelhecidas. Por outro, lembram-nos de que a confiança — fundamento último de qualquer sistema financeiro — não reside na novidade, mas na justiça, na transparência e na responsabilidade. Sem esses pilares, a inovação converte-se em vaidade, e a digitalização em ilusão.

Ainda assim, não se pode negar que tais transformações fortaleceram o setor financeiro, ao torná-lo mais plural, mais competitivo e, potencialmente, mais resiliente. A força verdadeira, porém, não está apenas no capital acumulado, mas na capacidade de servir ao bem comum sem sufocar a liberdade individual. Um sistema financeiro que exclui corrói a si mesmo; um que se abre sem discernimento perde sua alma.

Assim, ao contemplar a economia do mundo atual, aprendemos que regular não é dominar, e inovar não é destruir. É ordenar o novo sem esquecer o antigo, permitir o crescimento sem abandonar a ética. Pois, como em todas as eras, também agora a prosperidade só se sustenta quando caminha lado a lado com a sabedoria.

Implementação, Incentivos e Resiliência: Uma Perspectiva Econômica


Implementar programas apoiados pelo FMI para enfrentar uma série de desafios exige, antes de tudo, clareza quanto aos incentivos que tais programas criam. Políticas econômicas não operam no vácuo moral ou técnico; elas moldam comportamentos. Quando bem desenhadas, reforçam a responsabilidade fiscal, reduzem distorções de preços e ampliam a liberdade de escolha dos agentes econômicos. Quando mal concebidas, produzem dependência, rigidez institucional e desperdício de recursos escassos.

A experiência mostra que programas do FMI são mais eficazes quando funcionam como âncoras de credibilidade, e não como substitutos da decisão doméstica. O objetivo central deve ser criar condições para que os mercados operem com previsibilidade, permitindo que o setor privado — e não o Estado — lidere o crescimento sustentável. A estabilidade macroeconômica não é um fim em si mesma, mas um meio indispensável para a prosperidade de longo prazo.

Nesse contexto, o diálogo político da região sobre mudanças climáticas passou a ocupar papel relevante. É correto reconhecer que desafios climáticos impõem custos econômicos reais. Contudo, a resposta eficiente a esses custos não reside em controles extensivos ou planejamento centralizado, mas na correta precificação de riscos, no fortalecimento de instituições e na utilização de mecanismos de mercado. Quando o debate climático é incorporado à política econômica com base em incentivos corretos, ele deixa de ser um obstáculo ao crescimento e passa a ser parte de sua solução.

Foi essa evolução do debate que levou à criação da primeira Facilidade de Resiliência e Sustentabilidade do FMI. A relevância dessa iniciativa não está em sua retórica, mas em sua capacidade de alinhar disciplina fiscal, estabilidade financeira e adaptação estrutural. Resiliência, nesse sentido, não significa expansão permanente do gasto público, mas a habilidade de uma economia absorver choques sem comprometer sua liberdade econômica.

Em última análise, o sucesso de qualquer programa — seja voltado à estabilização macroeconômica ou à sustentabilidade climática — dependerá menos da boa intenção de organismos internacionais e mais do compromisso interno com regras claras, mercados abertos e responsabilidade individual. A história econômica é inequívoca: sociedades prosperam quando confiam mais na liberdade do que na coerção, mais nos incentivos do que nas intenções.