segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Judeu de casa não faz milagre - conto

 JUDEU DE CASA NÃO FAZ MILAGRE


Sempre fui um bom russo. Nunca dei trabalho na escola, jamais faltei ao trabalho. Papai e mamãe nunca se queixaram de uma palavra rústica de xingamentos que saíssem da minha boca (mesmo no dia em que martelei o dedo, ao invés de dizer precauções contra o Céus de Deus, simplesmente agradeci pela martelada que me rachou a unha em duas partes).
 Conciliei meu trabalho de montador em uma estatal de Petrogrado com o prazer de escrever poesias.
Não eram poemas bons como os de Pushkin. Confesso que eu tentava copiar o estilo enfadonho daquele americano dublê de Tolstói chamado Walt Whitman. Acho que por causa disso, os jornais comessaram a querer me publicar, mesmo sem me pagarem um centavo.
  Eram poemas soltos, imensos, que falavam de coisas desinteressantes. Até que me casei com uma linda chinesa que estava de passeio por Moscou. Por causa disso meus Versos passaram a falar de "seios belos, asiáticos", "bucetinha raspadinha de ninfeta oriental", "lábios carnudos de onde o sol nasce".
Não sei se por causa disso fiz o fantasma de Stalin se revirar na tumba, só sei que os Censores dos tempos perigosos da União Soviética me viram como um decadente burguês ocidental (meu Pai era um homem nascido na Ucrânia), e me deram uma Dacha em um campo frio, bem distante, numa província pacata e silenciosa chamada Oblast Autônomo Judaico.
Passei a desgostar da poesia, e comecei a me aventurar na Prosa. Tentei ser um novo Dostoiévski, só que a zombaria dos jornais de Moscou foi muito grande contra meu primeiro romance, no qual dei o título de "A revolução inrevolucionavel". 
Me chamaram de "Kafka doido, imbuído de birutices". Eu, que sempre simpatizei com os doidos varridos da minha adolescência, me senti honrado por esses ataques, só não consegui receber um centavo da editora pela publicação do livro.
Entrei em uma espécie de meditação taciturna. De vez em quando, depois de tomar um copo cheio e açucarado de café com leite, eu acendia o cachimbo que fora de meu bisavô e ficava meditando diante da natureza. Deixei a barba crescer até o ponto de chegar aos meus joelhos. Confesso que fiquei parecendo a cara de Walt Whitman, o que mais agradava meus inimigos literários.
Trai minha pequena chinesinha com uma linda italiana que veio me consultar sobre assuntos poéticos. Perdi os "belos e asiáticos seios", no entanto, ganhei a "nádega dura, e o cuzinho macio da Itália".
Em Birobdjan quando a chuva fria e fina começa a cair do céu azul-escuro fôrma na cidade e no campo uma atmosfera de magia no entorno das árvores e das pedras. Isso porque está apenas informando a chegada de uma tempestade pesada e forte, cheia de raios seguidos por imensos trovões.
Avistei no céu algo que poderíamos descrever como um ovni. Relatei para a italiana o acontecido, e ela apenas me disse (depois de uma boa trepada, em que acabei gozando na boca dela), que ao invés de um ovni, eu poderia muito bem ter visto as asas de um anjo.
Defensor que sempre fui das mulheres, respondi:
— Anjo? Por que não uma anja? Os anjos não tem sexo, certo?
— Certo!

Fique bastante tempo pensando nesse acontecimento. Resolvi escrever uma história sobre isso. Foi quando "ele" apareceu.
Não que eu me importasse com a sua presença, poderia muito bem ter ficado quieto, esperando a chuva passar para mandar "ele" embora.
Chovia muito forte, e os trovões assustavam muito. A velha cadeira de balanço estava na frente de casa, ao lado da janela verde que se mantinha aberta mesmo com o vento forte que açoitava as árvores sem compaixão.
 Peguei na gaveta onde deixava meus escritos o velho cachimbo de herança, coloquei minhas botas, acendi o cachimbo e enchi um bom copo com café com leite. Depois disso, sentei na cadeira de balanço para apreciar o espetáculo da chuvarada. O vento espetacular me féria o rosto, e, a cada trovoada, o frio entrava por sobre meu casaco grosso, arrepiando meu corpo. Foi quando eu o vi!

Estava bem a minha frente, entre encolhido e escondido em uma moita perto do portão da Dacha.
Para quêm não consegue dissernir um gnomo de um duende, pensaria que estava vendo um duende muito encurvado, velho, abaixado, tentando se esconder da chuva na moita que parecia ser uma cabana medieval.
 A barba comprida e cinzenta dava um ar elegante e sábio. O nariz era aduncado, muito parecido com o de uma águia. Trazia belas madeixas ao lado da orelha, como dois rabinhos, dois chifrinhos em direção pra baixo.
 O chapéu era fedora, preto. Os olhos dele era de um verde inescrutável. 

O Judeu me lançou um olhar de cima abaixo, como se medisse minha fisionomia para tentar fazer um bom negócio. Não disse uma palavra, apenas me mirou, e fiquei fascinado com aquele olhar messiânico de séculos.
Seria ele um ancestral direto de Nosso Senhor Jesus Cristo?

Raios e mais raios se sucedida. E, como fiquei com medo de o Judeu levar uma carga elétrica e morrer, levantei da cadeira e disse:
— Pode entrar para se aquecer aqui em casa. Tem boa comida, tem uma lareira quente e o chá é às cinco horas da tarde.

E então, entrei, achando que o Judeu nem sequer dera ouvido a mim.

Só que no dia seguinte percebi que ele estava dormindo no sofá. Suspirei aliviado. "É um sinal de boa sorte ter um Judeu dentro de casa", pensei, lembrando um ditado arcaico dos poloneses que conheci em uma viagem para Varsóvia.

Continuava chovendo com uma fúria enorme das cargas elétricas que se sucedidam caindo próxima do quinta entre as árvores. Comecei a ficar preocupado, tentando começar meu livro de memórias. Por causa do temporal resolvi escrever alguns poemas meditativos sobre a tempestade que caia. De vez ou outra eu me levantava para ver se o Judeu dava sinais de ter acordado. Ele dormia em sono profundo.

— Será que ele morreu! - perguntei para a italianinha.
— Claro que não - ela respondeu. - Ele deve ter ficado dias e dias lendo o talmude. Por isso agora está cansado. Pode deixar que uma hora ele vai levantar.
— E essa tempestade que não passa? Estou ficando assustado com ela Giovanna.
— Vamos fazer uma promessa para o menino Jesus de Praga. Quem sabe ele não resolve a situação?

O Judeu deve ter escutado a nossa conversa, pois um riso abafado saiu de sua boquinha. Até eu senti vontade de rir. A italianinha era católica, embora meus pais tivessem me criado como um bom russo ortodoxo.

No dia seguinte a tempestade tinha ido embora. Abri a porta e vi o estrago que ela havia trazido por toda Dacha.
— Giovanna! Giovanna, vem aqui.

Ao ouvir meus gritos a italianinha veio.
— O que foi, aconteceu alguma coisa?
— Você fez aquela promessa para o tal menino Jesus?
— Sim, fiz sim. Porque?
— De onde ele era mesmo?
— É o menino Jesus de Praga.
— Só podia ser menino mesmo. Olha a praga que ele deixou aqui a Dacha!

O Judeu riu uma risada sonora e alegre. E então eu pensei "quem sabe ele consiga fazer alguns milagres?"