quarta-feira, 13 de agosto de 2025

minha pintura



minha pintura não começa com cores comuns,

mas com hesitações, linhas que tremem

como se o papel respirasse junto comigo.

há azul, mas não é azul do céu,

é azul do silêncio antes da tempestade,

do lago que guarda árvores sem refletir

ou apenas reflete a memória delas.


há formas que não querem se definir,

como nuvens que se recostam

sobre a linha firme da montanha.

uma curva aqui, um ângulo ali,

como se o mundo insistisse em me contar

segredos que eu não deveria ouvir.


a tinta seca devagar,

revela camadas que eu mesma esqueci,

manchas que se tornaram intenções

sem jamais deixar de ser acidentes.

o verde brota da sombra

como se a luz tivesse hesitado

antes de tocar o papel.


há uma figura, quase humana,

mas não é inteira, não é inteira nunca;

um braço se perde no espaço,

uma perna se transforma em rastro de pincel,

os olhos, se houver, olham para dentro

ou para fora, dependendo de quem observa.


minha pintura é feita de olhares demorados

sobre objetos simples:

uma xícara rachada, uma cadeira esquecida,

um vaso com flores imaginárias,

uma porta que não leva a lugar nenhum

ou talvez leve a todos os lugares.


os tons se misturam como notas musicais,

cada mancha é um acorde,

cada traço, uma pausa,

cada detalhe, uma insistência

em provar que a vida

não cabe na realidade exata.


há contraste, mas não confronto;

o real se curva diante do abstrato,

o abstrato se aquece com a carne do real.

uma árvore é árvore e é também pensamento,

uma sombra é sombra e também memória,

e a tinta seca como se soubesse

que o tempo é aliado, não inimigo.


meu pincel dança, hesita, corrige,

como quem conversa com o próprio silêncio.

o espaço não está vazio:

há expectativa, há desejo, há surpresa.

até a borda do papel é território

onde o possível e o impossível se encontram

para brincar de serem iguais.


quando olho minha pintura de longe,

vejo uma cidade inventada,

ou um corpo que respira,

ou um sonho que decidiu se tornar tangível.

cada espectador encontra sua própria chave

porque a obra não é só minha,

é de quem se deixa olhar.


e ainda assim, em cada linha,

em cada respingo de cor,

há uma assinatura minha:

uma marca silenciosa, firme, discreta,

que diz: aqui estive,

aqui sonhei,

aqui tentei tocar o mundo

com a ponta de um pincel

e o coração inteiro.


minha pintura é promessa e recordação,

desordem e disciplina,

abraço e distância,

realidade e delírio.

e, no centro de tudo,

há a paciência de olhar para o que é

e para o que poderia ter sido,

ao mesmo tempo.



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