O Último Canto de Thion
“Este é o relato que chegou a nós pelas vozes dos cantores das florestas e pelos ecos das montanhas do norte.
Aqui se guarda a memória do rei Thion, chamado Rocha Silenciosa, que se levantou contra o dragão Gorthan, o Devorador de Estrelas.
Não foi para conquista ou coroa que partiu, mas por amor à elfa Awelymar, cujo semblante era claridade nas trevas.
Pois mesmo os reis mais duros, forjados em pedra e sangue, não escapam ao chamado do coração,
e por esse chamado Thion desceu à morte.
Assim se iniciou o lamento, que não pertence a um só povo, mas a todos que recordam,
porque o amor, embora frágil, resiste mais que ferro e mais que fogo.”
¹No alvorecer das eras, quando ainda a memória dos povos era jovem e os rios não haviam esculpido seus vales por completo, reinava Thion, cujo nome significava Rocha Silenciosa. Ele era senhor de terras vastas e frias, cercadas por montanhas que tocavam as nuvens e por florestas que sussurravam histórias mais antigas do que qualquer rei. Embora fosse firme em sua autoridade e austero em sua palavra, havia nele uma chama secreta, guardada como brasa no âmago do coração, que nenhum conselho de guerra e nenhum ouro da coroa podiam apagar.
²Essa chama despertou quando Thion contemplou, pela primeira vez, a elfa Awelymar, filha das florestas eternas. Sua beleza não se media em adornos, mas em silêncio e claridade, como a estrela solitária que paira sobre mares escuros. Sua voz era branda, mas carregava em si a lembrança das árvores imortais e da música que os homens não sabiam mais entoar. Thion a amou com devoção ardente, e nela viu não apenas a promessa de companhia, mas o espelho de tudo o que sua própria alma buscava sem saber.
³Por muitos dias e noites, o rei percorreu os bosques para ouvir-lhe a voz e aprender sua linguagem. Sentava-se diante dela como aprendiz diante de um mestre, e Awelymar sorria diante de sua humildade, pois não é próprio dos reis curvar-se, e menos ainda diante daquilo que não podem possuir. Contudo, ela conheceu em Thion um coração honesto, e entre ambos nasceu um vínculo que não era apenas desejo, mas uma ligação profunda, como raiz em solo fértil.
⁴Mas não tardou que a inveja e a desolação se erguessem contra esse amor. Nas montanhas do norte despertou o dragão Gorthan, chamado o Devorador de Estrelas, cuja fome não era apenas de ouro e carne, mas de esperança e luz. Seus olhos ardiam como fornalhas, e sua asa lançava sombra sobre dez léguas de terra. Ele soube do afeto entre Thion e Awelymar, e, inflamado pelo rancor de eras, desceu com chamas e ferro para arrancar a elfa de sua morada.
⁵Awelymar foi levada em correntes negras até a gruta de Gorthan, e os lamentos de seu canto ecoaram pelas florestas como se as próprias árvores chorassem. Ao ouvir tal notícia, Thion ergueu-se de seu trono sem uma palavra, e seus conselheiros se calaram diante de seu olhar. Pois em seus olhos não havia dúvida nem cálculo, mas apenas a decisão firme e terrível de um homem que sabe que caminha para a morte, ainda que não a tema.
⁶O rei partiu sozinho, sem exército, sem bandeiras, levando apenas sua espada, chamada Míriel, que reluzia como prata sob luar. Atravessou vales cobertos de névoa, e sobre seus ombros pesava não o fardo de sua coroa, mas a promessa feita em silêncio ao coração da elfa. “Se eu cair,” disse a si mesmo, “que minha queda seja ponte para sua liberdade.” Assim andou durante sete noites, guiado pelo rumor distante das asas do dragão.
⁷Ao chegar às montanhas do norte, encontrou a terra queimada e o céu enegrecido pelo fumo. As rochas, que antes eram morada de águias, estavam agora cobertas pela poeira de ossos. Thion ergueu sua espada, e sua voz retumbou contra as fendas: “Gorthan! Saia de tua cova, pois vim buscar aquilo que roubaste, e não partirei sem ela, mesmo que eu mesmo seja despedaçado.” Um riso como trovão respondeu-lhe, e o dragão surgiu, trazendo em sua garra a frágil figura de Awelymar.
⁸O combate foi terrível. O fogo de Gorthan desceu como rios flamejantes, e as pedras se partiram sob o peso de seu corpo imenso. Thion golpeou com fúria, sua espada brilhando como raio contra as escamas do monstro. Awelymar clamava por ele, mas o vento de asas e o rugido do dragão sufocavam sua voz. Ainda assim, Thion avançava, movido não por força de músculos, mas por aquela chama secreta que nele ardia desde o princípio.
⁹Por três vezes, Míriel penetrou entre as placas da besta, e Gorthan uivou de dor, derramando sangue negro que fumegava sobre o solo. Mas a força do dragão era antiga, e sua astúcia, cruel. Com uma guinada repentina, lançou a elfa contra as pedras, e no instante em que Thion correu para ampará-la, a cauda de Gorthan o atingiu no peito, quebrando-lhe o corpo como árvore sob tempestade.
¹⁰Ainda caído, Thion ergueu os olhos para Awelymar, que se arrastava até ele, chorando. “Meu rei,” disse ela, “por ti não há salvação, e eu preferiria morrer contigo.” Mas Thion, com o último sopro de sua vida, respondeu: “Não chores minha queda, pois meu amor não morre. Vive tu, e leva adiante aquilo que começou em nós. Pois até na derrota, há vitória, se o amor permanecer.” Então deixou cair sua espada, e a chama de sua vida se apagou.
¹¹Gorthan, ferido mortalmente, fugiu mancando para o fundo de sua caverna, e dele não se ouviu mais por muitas eras. Awelymar tomou a espada do rei e a cravou na terra diante de sua tumba, e ali jurou que sua memória não se apagaria enquanto houvesse canto nas florestas e estrela nos céus. Os povos ergueram então um canto em honra de Thion, que preferiu a morte ao abandono de sua amada, e assim sua história se tornou semente entre gerações.
¹²E dizem que, quando as noites são claras e o vento sopra dos montes do norte, pode-se ouvir a voz de Thion misturada ao canto de Awelymar, como se rei e elfa ainda caminhassem juntos além do alcance do tempo. Pois assim como a rocha sustenta o rio, e a estrela sustenta a noite, também o amor sustenta a memória. E ainda que reis morram e dragões se levantem, o eco de Thion e Awelymar jamais será silenciado, enquanto houver quem conte suas histórias à beira do fogo.
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