A APAIXONANTE CARREIRA
Na estrada de barro vermelho
Eu vi meu destino passar
Era um cavalo com asas de vento
Me chamando pra não parar
Na praça o menino vendia
Seu sonho de ver o luar
E o mundo corria depressa
Com sede de se apaixonar
Ah, minha carreira é de pó e de estrela
De samba na beira da estrada
De beijo que voa na curva da esquina
De chuva que beija a calçada
Eu corro, eu voo, eu tropeço
No amor que me quer devagar
Mas o vento, meu amigo sem preço
Diz: “Vai, que o frio vai passar”
TROPICAL TROPICAL É ANAL
No calor da esquina, um cheiro de dendê
Lá na feira o povo dança até o dia nascer
Mas o vento vem do sul, frio de arrepiar
E no corpo tropical, a alma quer se esquentar
Tropical, tropical, é anal
No sentido que é profundo e total
Da raiz do pé até o carnaval
Do amor que é doce, mas também é sal
Na beira da praia, um beijo sem moral
Mistura de mar e sertão no quintal
O mundo é grande, o Brasil é plural
E o frio, coitado, perde no final
VULTO NEGRO
Entre a neblina da serra
Um vulto negro passou
Tinha nos olhos a noite
Tinha na boca o sabor do amor
O vento frio cortava
As ruas de pedra da capital
E eu seguia seus passos
Como quem segue um sinal
Vulto negro, me leva contigo
Pra onde o mundo não quer nos achar
Entre o Brasil e um abrigo
Entre o perigo e o mar
E quando o dia clareia
Eu sei que o vulto é real
É o abraço que aquece no frio
É meu porto tropical
A AFRICA É O BRASIL
O tambor fala primeiro
Antes da palavra, antes do beijo
O pé bate no chão como quem chama chuva
E a chuva vem como suor de mil rostos negros
No cais de Salvador, no batuque do Rio
No silêncio do sertão que também é Atlântico
A África é o Brasil
Não é metáfora, é espelho
No dendê que frita o peixe
No canto que sopra as folhas
Na ginga que salva o corpo da navalha
E no frio que vem do sul,
um sopro de vento lembra que somos muitos
E que a história, com sua língua de ferro,
não apagará o rastro de sangue e flor
A África é o Brasil
Quando a Bahia dança
Quando São Paulo chora
Quando o mundo nos olha sem entender
Que o nosso rosto é todos os rostos
A HAITIANA ME DISSE NÃO
No mercado de frutas, ela pesava mangas
O lenço colorido guardava segredos de mares
O francês dela era doce
O português meu era torto
Ela me olhou —
E o mundo inteiro parou para ouvir um “não”
Era um “não” que não era só para mim
Era para o navio negreiro e para o navio de cruzeiro
Era para o dólar e para o real
Era para o homem que acha que a mulher é sua
Era para o país que acha que o outro é quintal
A haitiana me disse não
E o vento da tarde, cúmplice, repetiu nas esquinas:
Non, non, non.
E eu voltei para casa mais pobre e mais livre
O SOL QUE BATE VOLTARÁ MAIS TARDE
Hoje o sol não quis sair cedo
Mandou dizer que acordou cansado
Que há guerras demais para iluminar
Que a América Latina pede luz demais e paga de menos
O vento frio varreu as ruas
E eu pensei no amor como quem pensa no pão
Faz falta, alimenta, mas sempre chega atrasado
O sol que bate voltará mais tarde
Porque o mundo é lento para quem tem fome
E rápido para quem tem medo
Eu espero.
Nós esperamos.
E quando ele vier, talvez não queime,
Mas acaricie como mão de mãe
SOU MAIAKÓVSKY AMIGO
Sou Maiakóvsky, amigo,
quando ando de madrugada pelas ruas
e falo alto com o vento gelado da Paulista
O neon é meu comício
O poste é minha tribuna
O poema é minha arma
Mas também sou o menino de chinelo
que corre atrás da bola na praia
e não sabe que está citando revolução
quando grita “é gol!”
Sou Maiakóvsky, amigo,
e também sou o silêncio da tarde na Bahia
O barulho da feira
O cheiro de goiaba
O beijo no escuro do cinema
E, no fundo,
sou só alguém que escreve para não desaparecer
VIOLÊNCIA NÃO
Vi um homem bater em outro
Vi uma mulher esconder o rosto
Vi a polícia bater porta e alma
Vi a criança aprender cedo a não chorar
Violência não
Não é palavra de missa
É palavra de rua, de grito, de mão levantada
O frio vem, o vento vem
E eu sei que o amor é mais quente
Mas o amor também é arma
Se for de verdade
Violência não
Mas coragem, sim
MARXISTA SÓ DE NOME
Me chamam de marxista
Eu sorrio
Meu Marx está na estante
E também na feira, na conversa com a vizinha
No preço do feijão
No aumento da passagem
Marxista só de nome?
Talvez.
Mas sei que o mundo é mais que lucro
E que a poesia não se vende em leilão
O frio e o vento me lembram
que a história é feita de sopros
e que cada sopro pode virar tempestade
APENAS VOU, VOLTO COMO PÁSSARO
Apenas vou
Sem mala, sem passaporte
O vento é minha companhia
O frio é minha capa
Volto como pássaro
Trazendo no bico uma palavra nova
Para cada boca seca
Para cada coração cansado
O mundo é grande demais para não ser visto
E pequeno demais para não ser amado
Apenas vou
E o voo é também um abraço
A AMÉRICA LATINA NÃO É QUINTAL DE AMERICANO
Não é.
Não é.
Não é.
Não é quintal — é floresta
É cordilheira
É sertão
É favela que canta
É cidade que não dorme
A América Latina é pássaro migratório
que sobrevive a cada inverno
comendo o pão que o diabo amassou
e cantando como se fosse carnaval
O vento frio dos Andes beija a cara quente da Bahia
O sol de Havana aquece o mate de Buenos Aires
E nenhum general estrangeiro
vai entender o gosto de uma goiaba madura na boca
A América Latina não é quintal de americano
Porque quintal tem cerca
E aqui a cerca é de vento, de amor, de guerra
E vento não se prende

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