Diziam que Sara havia nascido numa madrugada tão quente que até os grilos pararam de cantar, e que no exato momento em que ela abriu os olhos para o mundo, uma chuva repentina lavou as ruas poeirentas da aldeia. Não foi uma chuva qualquer — caía mansa, como se cada gota fosse um sussurro de perdão. Desde então, sempre que Sara chorava, o céu chorava com ela. A avó, mulher de olhos duros e mãos feitas de corda, viu logo que aquilo não era apenas um dom — era dinheiro. A aldeia vivia cercada por plantações ressequidas e o povo tinha mais sede do que fé. Assim, durante anos, Sara foi exibida como se fosse uma santa pagã: colocavam-na no meio da praça, contavam-lhe histórias tristes, e ela fazia chover. Mas o dia mais amargo chegou quando um americano de terno engomado e dentes de ouro desceu de um automóvel reluzente, vindo de lugar nenhum e de todos os lugares. Chamava-se Mr. Douglas. Falava um português quebrado, mas sua mala de notas era perfeitamente compreensível. Comprou Sara como quem compra uma máquina milagrosa, entregando à avó um dinheiro suficiente para que ela enchesse a casa de móveis novos e solidão. O homem levou a menina para longe, para um rancho vasto onde o sol queimava até os ossos. Sempre que a terra rachava e as plantações ameaçavam morrer, Mr. Douglas ordenava que a entristecessem: prendiam-na num quarto escuro, tiravam-lhe a comida, contavam-lhe mentiras sobre a morte da mãe. E Sara chorava. E chovia. Com o tempo, porém, a chuva começou a mudar. Não caía mais como bênção, mas como castigo: grossa, suja, cheia de lama, arrastando tudo pelo caminho. As aldeias vizinhas murmuravam que o céu estava enraivecido, e que Sara já não chorava por tristeza, mas por ódio.
A notícia se espalhou mais rápido que o vento: uma menina acorrentada, explorada para que a terra do estrangeiro florescesse. Vieram camponeses, mineiros, pescadores. Vieram com paus, com foices, com pedras. Entraram pelo rancho como um rio enfurecido, quebrando portas e janelas. Mr. Douglas tentou negociar com palavras douradas, mas o povo já não tinha ouvidos para ouro. Foi arrastado para o pátio e, enquanto Sara os observava com olhos como tempestade, uma lâmina breve encerrou sua voz. Naquela noite, Sara caminhou até o centro da aldeia, descalça, com o vestido rasgado e a pele cheirando a chuva. Ninguém se atreveu a se aproximar. Ela ergueu o rosto para o céu e sorriu pela primeira vez desde que fora vendida. Então caiu uma chuva limpa, fresca, como se o mundo inteiro tivesse decidido começar de novo. E dizem que, desde esse dia, Sara não chora mais — mas, quando fecha os olhos, o vento muda de direção, e todos sabem que a menina que fazia chover ainda guarda nas mãos o poder de afogar impérios.
Depois da noite em que o povo libertou suas lágrimas, Sara vagou por estradas e rios como quem não sabe para onde vai, mas carrega o destino nos bolsos. Foi numa feira de cidade pequena que encontrou um homem magro, de barba negra e olhos como fendas de mar: chamava-se Samuel Benjamim, filho de um alfaiate judeu do Recife e de uma pianista que havia aprendido a tocar Chopin ouvindo o vento.
Samuel, diziam, tinha o poder de chamar brisas quando estava feliz e tempestades quando se apaixonava. Não era dom herdado — ele dizia que o vento morava dentro dele desde criança, que às vezes lhe soprava palavras inteiras, e que um dia essas palavras virariam livros.
Quando Sara e Samuel se viram, o mercado inteiro pareceu se inclinar para o encontro. O pano das barracas ondulou, as frutas rolaram, e uma chuva miúda caiu apenas sobre o espaço entre eles. Ele lhe ofereceu um peixe seco embrulhado em jornal; ela sorriu com seus olhinhos de peixe vivo, e soube que não teria outra casa senão aquele vento. Casaram-se na beira do mar, numa vila costeira onde as casas eram tão brancas que ofuscavam o olhar. Sara fez chover sobre as velhas embarcações para que partissem limpas, e Samuel soprou o vento para encher as velas. Lá viveram entre livros e tempestades, e ele se tornou, como prometera, um escritor famoso — daqueles que inventam mundos inteiros e ainda assim têm espaço para guardar o nome da esposa em cada página. Foi numa tarde azulada, quando o vento trazia cheiro de sal e de goiaba, que Sara encontrou o anjo. Ele estava sentado num banco de pedra, como um velho pescador, com asas úmidas e uma rede cheia de conchas. Falou sem olhar para ela:
— Menina, guarde sua chuva. Não a desperdice. O nordeste é seco, o povo tem sede, mas a água vinda de dom é mais perigosa que a vinda do céu. Pode provocar revoltas, dividir irmãos, despertar a fome naqueles que não conhecem seu rosto.
Sara ouviu sem responder. Sentiu que suas mãos, ainda úmidas de antigos dilúvios, tremiam. O anjo ergueu os olhos, que eram tão fundos quanto um poço, e repetiu:
— Chuva é promessa, e promessa demais vira maldição.
Naquela noite, enquanto Samuel escrevia ao som do vento que rodava pela casa, Sara olhou pela janela com seus olhinhos de peixe, vendo o mundo como um imenso aquário frágil. Sabia que a sede dos homens era mais funda que qualquer poço, e que talvez um dia, quando as palavras de Samuel já fossem lidas como orações, ela teria de abrir as comportas do céu de novo — mesmo que o anjo não quisesse.
A seca chegou como chegam as doenças antigas: sem pressa, mas com certeza. Primeiro as folhas ficaram quebradiças como papel, depois os rios se transformaram em caminhos de pedra e lama. O vento de Samuel, que antes brincava nas janelas, passou a trazer apenas poeira. As notícias vinham com o som dos passos dos retirantes. Famílias inteiras, com trouxas nas costas e crianças nos braços, vinham do interior em direção à costa, pedindo água. Alguns reconheciam Sara e se ajoelhavam, chamando-a de “santa da chuva”. Ela não respondia. Lembrava-se do anjo, de suas asas úmidas e de suas palavras afiadas como anzol: promessa demais vira maldição.
Mas havia noites em que Sara acordava com o cheiro de terra seca queimando na garganta. Olhava para Samuel, adormecido sobre um caderno cheio de palavras ainda sem destino, e sentia que o vento dele também pedia água. Foi numa madrugada sem estrelas que ela tomou a decisão. Vestiu o vestido simples de noiva, aquele que ainda guardava o cheiro de maresia do casamento, e foi até o penhasco. Ali, onde o mar rugia contra as rochas, ergueu os braços. Primeiro vieram pingos hesitantes, depois uma cortina espessa de água que caiu sobre campos e povoados, como se o próprio céu tivesse se partido.
A chuva durou três dias. No quarto, as plantações reviveram, os poços se encheram, e os rostos se abriram em sorrisos que ela jamais havia visto. Mas junto com a alegria veio a cobiça: políticos, comerciantes e chefes locais começaram a disputar quem “controlava” a menina. Uns queriam levá-la para Brasília, outros para fábricas no sul. O povo dividiu-se entre protegê-la ou explorá-la. No quinto dia, o anjo voltou. Estava mais velho, com as asas sujas de barro.
— Eu avisei — disse, sem raiva, apenas como quem constata a maré. — Agora eles vão se matar por você.
Sara não respondeu. Apenas olhou para o anjo com seus olhinhos de peixe, como quem vê a água escorrer por entre as próprias nadadeiras. Samuel entrou, trazendo nas mãos um livro novo. Não disse nada: apenas pegou a mão de Sara e a levou para fora, onde o vento e a chuva se encontravam pela última vez.
Naquela noite, eles desapareceram. Uns dizem que fugiram para o interior profundo da Amazônia; outros que partiram numa jangada, seguindo correntes que só o vento e a chuva conhecem. Há quem jure que, em certas madrugadas, no sertão mais seco, uma garoa fina desce junto com uma brisa morna, como se dois amantes estivessem passando pelo céu.
E, quando isso acontece, as crianças perguntam:
— Mamãe, é verdade que ela fazia chover?
E as mães respondem:
— Sim. Mas a chuva dela nunca foi só água.
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