sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
discurso em noite fria (RATO)
1- Chegamos duas horas atrasadas; pois sabíamos que não adiantaria nada chegarmos adiantados. Não podemos controlar o relógio, falei assim que ela me disse que eramos talvez os últimos convidados a entrar na casa.
2- Eu tinha cerca de dezessete anos, e ela tinha pelo menos uns dezenove ou vinte, pois não perguntei sua idade. Não era comum naquela época se perguntar a idade da moça que se pede para sair e ir avistar o luar, embora ela tivesse feito a pergunta na primeira ocasião em que estávamos sozinhos no meio da praça escura e solitária: qual sua idade? Tenho dezessete anos!
3- Ela era filha de um general bastardo, que ajudara durante a guerra secreta da "Operação Condor" no Brasil. Tinha me dito isso, pois fuçava os arquivos do pai desde pequenina, e gostava muito de política, embora ela me afirmasse com total destreza e simpatia: não se preocupe, não sou de direita e nem de esquerda.
4- Sou anarquista de alma e corpo! Isso seria uma boa frase de algum pastor español a dizer para um grupo de índios maias recém convertidos ao catolicismo queimante. Ela não era católica, sua família era, pois sua mãe era sobrinha de um famoso arcebispo de Portugal. Cabelos loiros, galega não tenha dúvida, me disse Mathias assim que revelei que estava interessado nela.
5- Não era uma moça sem forma. De família militar, pós-escrita, bem culta e seus estudos iam além do português, que ela achava enjoativo. É a única língua que sei, além do francês e do japonês.
6- Perdoe realmente minha anti-patia por sua família militar, pois quinze dias numa prisão por culpa de um baseado de maconha e livros de Karl Marx não deveria ser esquecido tão facilmente por um galã metido a intelectual. E minha feiúra não ajudava nada em minhas conquistas. Ela era uma poetisa.
7- Leu para mim dois dos seus poemas anarquistas, segundo ela, e logo vi a influência de Valery em suas linhas. Mostrei os meus, e ela começou a rir. Ia além da minha compreensão poética, embora de fato e fosse e sempre fui um poeta mediocre e sem talento algum. Não pense que a falta de estruturas me faz soar um falso, eu leio e gosto muito de você. Sua mãe fora uma professora-opressora do ensino estadual, embora não fosse mais permitido castigar os alunos com varetas de ferro enferrujados ou fazê-los sentar em cima de grãos de milho ou de arro, a senhorita Nascimento podia muito bem fofocar aos ouvidos do marido às armações que os terríveis estudantes-comunistas estavam planejando para tomar toda a América do Sul e entrega-la aos russos. Infelizmente eu não fui um desses contestadores, pois enquanto eles eram presos e enforcados e jogados diante do mar, com a benção salvadora dos bispos católicos e padres sem almas da Santa Amada Igreja Católica, eu estava preso por ter sido pego fumando maconha com um livro comunista, num jardim público.
8- Sua descendência completa: européia.
Tinha uma meia-irmã e uma irmã, e um irmão: Rafael Nascimento, Andressa Nascimento e Thiago T. Nascimento (o sobrenome paterno precisa ser herdado nas famílias importantes da América Latina).
9- A primeira nada tenho a declarar, a não ser que foi exilar-se por vontade própria com sua amiguinha (ou seria amante?) em Nova York. A segundo era uma musa, de tão linda e esbelta, e embora parecesse uma Evita Perón, não tinha nenhum jeito de sedução, e gostava de ouvir e cantar bossa-nova com alguns amiguinhos e fazer compras na Paris do Sul, assim chamávamos Buenos Aires.
10- Thiago T. Nascimento por si só já daria uma biografia imensa. Assassino, brupto, traídor, asmático durante a infância, invejoso durante a vida amorosa, mimado graças ao pai, ensinado a ser cruel e a endeusar os militares assassinadores dos marginais. Gostava daquela piada que dizia que em vez de comida os mendigos estavam comprando boias-salva-vidas já que estavam sendo torturados e jogados em canais públicos, morrendo afogados, para limpar a República do Sul de seus incontáveis perdedores naturais. A medalha no peito estampava a boca e a língua de dedo-duro.
11- Quem sabe secretamente não foi um dos sargentos a comandar a luta contra os guerrilheiros do Paraguay que queriam invadir a Grande República?
12- Sua mãe nunca visitou o México? Nem a Colômbia? Nem nenhum outro país sangrento do nosso continente do sul? A sim, ela foi para Paris, tomar banho de perfume, e críticar como de costume os valores dos vagabundos dos brasileiros e latinos que não trabalham. Culpa do calor não é mesmo?
13- E o que você não tem de igual com esses seus familiares que são uns macacos? De que ordem natural você mesma veio? Herdeira dos russos aristocráticos ou veio realmente com o sobrenome Cabral para o nosso continente? Eu também não tenho pátria, e você sabe muito bem porque. Foram meus pais que me alimentaram e não a minha pátria. E tudo bem para você se eu falar essas coisas agora durante o nosso encontro coletivo com esses colegas vagabundos e comunistas?
14-Não me dói ser chamado de Rato, e você sabe muito bem que estamos atrasados e não tem nenhum problema: ainda não conseguimos controlar o tempo, e esse discurso é uma perda de tempo... É o que dar namorar filha de militar...
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