terça-feira, 28 de outubro de 2025

As sombras de Upiter

1. Ester acordou naquela manhã com a sensação de que o mundo estava mais pesado do que de costume. O relógio antigo na sala de estar, herdado de sua avó, marcava horas que pareciam arrastar-se como se o tempo inteiro estivesse preso em mel viscoso. Ela esfregou os olhos e, por um instante, achou ter visto sombras dançando atrás do vidro empoeirado do relógio, sombras que não pertenciam à sua casa nem à sua realidade cotidiana.


2. Foi então que o fauno surgiu. Não entrou pela porta, nem pelo teto; ele saiu de trás do relógio, como se fosse parte de suas engrenagens, com cascos leves que mal tocavam o chão de madeira rangente. Seus olhos eram dourados, luminosos, e sua voz tinha a ressonância de folhas secas e vento noturno. “Ester,” disse ele, “o mundo que conheces está em perigo. Tu deves vir comigo.”


3. Ester sentiu o coração saltar na garganta. Naquele instante, a casa, o relógio, até mesmo a luz pálida que entrava pela janela, parecia ter diminuído diante da presença do fauno. Ele se apresentou como Lyros, guardião das passagens entre os mundos, e falou sobre Upiter, um lugar distante e vasto, governado por um feiticeiro que não conhecia piedade.


4. Pullpol, disse Lyros, era mais do que um feiticeiro. Ele tinha a habilidade de assumir a forma de urso ou dragão, e, em qualquer de suas formas, espalhava terror entre os animais, os faunos e as árvores falantes. As florestas, outrora cheias de risos e murmúrios de magia, agora gritavam de dor e medo.


5. “Por que eu?” perguntou Ester, a voz tremendo. “Sou apenas uma menina.”

   Lyros inclinou a cabeça e sorriu com uma tristeza infinita. “Porque, Ester, tu tens coragem suficiente para carregar o peso que os outros temem. E também, porque o tempo de espera terminou.”


6. Sem aviso, o fauno abriu uma passagem por entre as engrenagens do relógio. Uma luz dourada inundou o cômodo, e Ester sentiu seu corpo ser puxado para dentro de algo maior, algo que era simultaneamente quente e gelado, sólido e fluido, como se o próprio espaço estivesse respirando ao seu redor.


7. Quando aterrissaram, a paisagem diante de Ester era de uma beleza ameaçadora. O céu de Upiter era violeta, carregado de nuvens que pareciam feitas de fumaça e vidro quebrado. Árvores de troncos retorcidos estendiam galhos como braços suplicantes, e faunos escondiam-se à sombra de pedras enormes, olhando com desconfiança e medo.


8. Lyros explicou que Pullpol havia se alimentado da magia do medo. Os animais haviam perdido sua voz, os faunos sua liberdade, e as árvores falantes sussurravam em murmúrios quebrados que ninguém mais podia entender. “Se ele não for detido,” disse Lyros, “Upiter será um reino de trevas eternas.”


9. Ester sentiu a pressão de uma responsabilidade impossível. Cada passo adiante parecia pesar toneladas. Mas havia também algo dentro dela — um fogo estranho e silencioso — que sussurrava coragem. Lyros percebeu e inclinou a cabeça em aprovação.


10. A viagem até a fortaleza de Pullpol foi marcada por encontros estranhos e perigosos. Primeiro, uma manada de lobos de olhos vermelhos, amaldiçoados pelo feiticeiro, cercou-os em silêncio mortal. Ester levantou as mãos instintivamente, e, de algum modo, uma lâmina de luz cristalina surgiu de seus dedos, afastando os lobos sem feri-los. Lyros sorriu com aprovação silenciosa.


11. Mais adiante, encontraram um bosque onde as árvores falantes, enfraquecidas, sussurravam palavras fragmentadas. “A espada… frontal… destino…” Murmuravam sem parar. Ester compreendeu que a espada não seria uma arma comum. Havia um poder ligado à verdade e à coragem, que só poderia ser empunhado por quem não temia enfrentar a própria sombra.


12. Finalmente, chegaram aos portões da fortaleza de Pullpol. Um castelo negro, em forma de dragão empalhado, estendia garras de pedra sobre a terra amaldiçoada. Cada pedra parecia pulsar com magia sombria. Ester sentiu o vento carregado de sussurros e viu os olhos do feiticeiro brilhando no alto das torres, alternando entre a forma de urso e dragão.


13. Pullpol desceu, primeiro em forma de urso, colossal, o chão tremendo sob seus passos. Seus olhos, vermelhos como brasas, fixaram-se em Ester. “Então és tu,” rosnou, a voz reverberando no ar como trovão. “A menina que ousa desafiar minha sombra.”


14. Ester ergueu a espada frontal, que havia surgido ao toque de suas mãos, e sentiu um poder estranho correr por seus braços, firme e pulsante. Ela não sabia de onde vinha, mas sabia que precisava confiar nele.


15. O combate começou. Pullpol atacava com garras que rasgavam a pedra, alternando-se entre urso e dragão, cuspindo fogo e vento. Cada golpe exigia de Ester não apenas força, mas inteligência, paciência e coragem. Lyros observava de longe, murmurando instruções como folhas sopradas pelo vento.


16. A batalha durou horas, e a terra em torno deles parecia chorar. Árvores retorcidas gemiam, e faunos escondidos observavam, temendo mas também esperando. Ester descobriu que cada ataque de Pullpol era previsível se ela conseguisse ouvir o ritmo de sua respiração, o estalo de suas garras e o bater das asas dracônicas.


17. Finalmente, num instante de clareza, Ester conseguiu encontrar o ponto vulnerável. Quando Pullpol se transformou em dragão, levantando-se para cuspir fogo, ela saltou, girando a espada frontal como se fosse uma extensão de seu próprio braço, e cravou a lâmina diretamente no peito do feiticeiro.


18. Um rugido ecoou que parecia atravessar mundos. Pullpol transformou-se em sombras que se espalharam pelo vento antes de desaparecerem por completo. A escuridão que envolvia Upiter começou a se dissipar, como se o sol finalmente tivesse decidido nascer.


19. As árvores suspiraram em alívio, recuperando lentamente a cor e a voz. Os faunos saíram de seus esconderijos, olhando Ester com reverência e admiração silenciosa. Os animais voltaram a caminhar livres, cada um carregando um fragmento de história contada apenas para quem tivesse ouvido seu sussurro verdadeiro.


20. Lyros aproximou-se, olhos dourados brilhando como faróis de luz noturna. “Ester,” disse ele, “tu carregaste não apenas uma espada, mas a esperança de um mundo inteiro. Upiter se curará, mas não se esquecerá de ti.”


21. Ester sentiu o peso da responsabilidade se dissolver, substituído por uma estranha leveza. Ela sorriu, pela primeira vez em muitos dias, e soube que, mesmo sendo apenas uma menina, havia tocado o coração de um mundo inteiro.


22. Lyros a guiou de volta ao relógio, agora tranquilo e silencioso, como se nada tivesse acontecido. “O tempo,” disse ele, “segue, mas algumas histórias são eternas.”


23. Quando Ester atravessou a passagem, sua sala parecia menor, mais comum, mas ainda havia uma lembrança palpável de Upiter, como se o vento das árvores falantes tivesse seguido cada molécula de ar consigo.


24. Ela guardou a espada frontal na caixa de sua avó, onde não seria esquecida, mas também não seria usada sem necessidade. Ela sabia que Pullpol podia ter sido derrotado, mas o mundo guardava perigos que talvez só pudessem ser enfrentados por alguém como ela.


25. Dias depois, as pessoas na vizinhança notaram mudanças sutis: gatos que se comportavam estranhamente inteligentes, árvores que pareciam se inclinar de maneira respeitosa quando Ester passava, e até o velho relógio, que nunca mais perdeu tempo.


26. Ester passou a ouvir sussurros noturnos, mas não de medo. Eram sussurros de agradecimento, de histórias de animais e faunos, contadas apenas para quem podia ouvir sem julgamento.


27. A coragem que ela aprendera em Upiter começou a se manifestar de formas inesperadas: na escola, ao enfrentar injustiças; em casa, ao cuidar de quem precisava; e em sua própria mente, ao sonhar com mundos que não existiam, mas que poderiam, de algum modo, tornar-se reais.


28. Lyros aparecia esporadicamente, sempre do jeito que surgira, silencioso, dourado e enigmático, lembrando-lhe que as portas entre os mundos nunca estavam completamente fechadas.


29. Ester começou a escrever suas próprias histórias sobre Upiter, sobre Pullpol e sobre a espada frontal. Cada palavra carregava a memória do rugido do dragão, do medo e da coragem, de uma menina que se tornou gigante aos olhos de todos os seres que ousaram crer em magia.


30. E embora a vida cotidiana retomasse sua rotina, havia momentos em que a realidade parecia tremer levemente, lembrando-a de que a aventura nunca terminava completamente.


31. Um dia, ao olhar para o relógio, ela percebeu uma sombra se movendo atrás do vidro. Não era medo, era promessa. Upiter estava chamando, e ela, Ester, sabia que atenderia sempre que fosse preciso.


32. Ela aprendeu que coragem não era ausência de medo, mas a capacidade de avançar apesar dele. Que o verdadeiro poder não estava na espada, mas na decisão de empunhá-la quando o mundo dependia disso.


33. E assim, enquanto as folhas das árvores falantes dançavam na brisa, e os faunos sussurravam histórias de esperança, Ester crescia não apenas como menina, mas como guardiã de um mundo que poucos ousariam imaginar.


34. Pullpol podia ter sido derrotado, mas as lições que ele deixara — sobre sombra, medo e ambição — permaneciam, lembrando Ester e todos em Upiter que o equilíbrio entre luz e escuridão é delicado, frágil e constantemente testado.


35. E naquela noite, enquanto o relógio marcava horas que já não pareciam pesadas, Ester sorriu sozinha, sabendo que, em algum lugar, Lyros observava com orgulho, e que ela, a menina que havia atravessado mundos e derrotado dragões, estava pronta para qualquer desafio que a vida — ou a magia — ainda pudesse trazer.




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