domingo, 27 de dezembro de 2020

A VENDEDORA DE MAGIA - conto

 

A VENDEDORA DE MAGIA

 

      O mercado de peixe local era muito requisitado internacionalmente. Os pescadores ganhavam muito bem por cada peixe que vendiam para o exterior. Miguel gostava muito de passear pelo mercado de peixe, não sentia enjoo como seu irmão Santiago, que não só não podia sentir o odor dos peixes, como não podia nem sequer prova-los.

- És um grande fresco Santiago, disse Miguel irritado com o irmão. - Não existe coisa melhor do que peixe para se comer. É o símbolo cristão por excelência.

- Pois o símbolo dos cristãos deveria ser um porco, disse Santiago que não era religioso como o irmão, e odiava ir para as missas. - Ai sim eu ficaria contente. Afinal é o que eu mais gosto de comer. Porco!

Que não te ouça os judeus que compram as carnes dos tubarões de duas cabeças no mercado de peixes, disse Miguel.

          Alguns ciganos chegaram pela cidade carregando bandeiras com vários símbolos diferentes. Santiago observava as ciganas com olhares de sedução. Nenhuma lhe prestava atenção, pois os ciganos tinham os seus próprios assuntos para cuidarem.  Levantaram a tenda do lado direito da cidade, o lado da sorte, onde as pessoas mais pobres viviam.

 

- Que há que você está vendo? – perguntou Miguel segurando um peixe vivo de dois olhos no seu relógio de pulso. – São os ciganos? Fiquei sabendo que já chegaram pela cidade. Espero que eles paguem o imposto devido aqui... Não é justo apenas nós pagarmos os impostos.

 

- Deixe de dizer asneiras, Miguel – disse Santiago. – Os ciganos têm suas próprias regras sociais.

- Você está observando as ciganas bonitas, não está? – Miguel sentia muito prazer em encher o irmão com perguntas.

- Como posso estar observando as ciganas, se estou aqui conversando com você, seu idiota? – disse Santiago.

 

- Tenho que ir ao Mercadão – disse Miguel. – Vou comprar algumas coisas para nós comermos.

 

- Que não seja peixe – disse Santiago.

 

- Não será peixe!

 

      O Mercadão era conhecido pela variedade de produtos que os comerciantes ali vendiam em inúmeras barracas enfileiradas uma atrás da outra, como grandes árvores em um bosque. Miguel gostava de andar no meio das pessoas, porque ali no Mercadão encontrava inúmeras pessoas, todas das mais variadas formas e aspectos.  Havia uma mulher com corpo de aranha, que estava sentada no meio de um pequeno palco, onde um verde e alegre duende de dois olhos na barriga tocava flauta e agradecia as tímidas moedas que os transeuntes ofereciam para ele, arremessando-as no ar até o pequeno barril que ele colocara a frente para receber seus trocados. Havia grupos de centauros que discutiam herméticas fórmulas com homens velhos de barbas muito cumpridas que chegavam até o chão. Havia minotauros sem camisetas que pousavam com suas cabeças bovinas para os pintores em forma de baratas que com ágeis mãos (ou patas) faziam ótimas pinturas e esculturas realistas.  Havia tímidas flores que levantavam as cabeças para cantar canções chinesas quando o vendedor chinês chegava até o pote onde elas estavam deitadas e pronunciava algumas palavras nunca ouvidas nesse lado do mundo.  Havia mulheres muito altas com traços romanos no rosto, semelhantes às modelos das passarelas, porém assustavam quaisquer homens que ali passavam, pois não tinham pudor algum em mostrar os seios grandes e esverdeados para quem quer que fosse, ou alguma parte das nádegas muito brancas que se assemelhavam a girassóis ardentes como fogo. Essas eram  as ninfas, musas dos bosques que estavam ali como meras representantes sexuais dos faunos, que sentados ficavam como bons comerciantes esnobes sem esboçar nenhuma reação quando algum turista oferecia pouco dinheiro para se deitar com alguma ninfa de rosto asiático e seio azul.

 

  Miguel ficava encantado com tudo isso, pois além do mercado de peixe, sua única diversão era ir visitar o Mercadão e comprar alguma coisa diferente para o jantar. O pouco dinheiro que herdada de seu pai, um ilustre capitão de navio que foi engolido pelo mar, dava para sustentar ele e seu irmão. A mãe havia se casado novamente e partira para uma terra muito distante, pelo qual os dois irmãos apenas mencionavam para qualquer um que perguntassem por sua mãe que se chamava Terra do Bomfim.

        Ao passar pelo meio do Mercadão, Miguel observou em um canto quieta e silenciosa uma linda mulher de vinte e cinco anos e vinte e cinco séculos que estava sentada em uma cadeira feita de cauda de pássaros muito antigos.

- O que vendes? – perguntou Miguel interessado na beleza diferenciada da mulher.

- Sou uma vendedora de magia – respondeu a mulher sem nenhum orgulho. – Gostaria de comprar uma magia?

 

- Gostaria primeiro de saber o seu nome – disse Miguel. – Você é uma moça muito linda!

 

- Não sou moça – disse a vendedora de magia ríspida. – Me chamo Shelda. Não é um nome muito comum para as pessoas dessa cidade.

 

- Não, não é – disse Miguel. – E o que viria ser magia?

 

- Não sabes o que é uma magia? – perguntou Shelda.

 

- Não sei o que é – respondeu Miguel um pouco envergonhado. – Nunca aprendi isso no seminário que frequentei.

- Isso não tem nada haver com seminários – disse Shelda.

 

- E tem haver com o que? – perguntou Miguel.

 

- Tem haver com encantamentos, bruxarias, ocultismos.

 

 Miguel encarou os olhos de Shelda com interesse. Percebeu que no fundo dos olhos dela estavam milhões de estrelas e planetas bailando num cosmo profundo e denso.

 

- Você é cigana? – perguntou Miguel.

 

- Você faz muitas perguntas, Miguel, disse Shelda. Nunca vi um homem com essa tendência antes. Você precisa usar mais o ponto de exclamação!

 

Você sabe o meu nome, disse Miguel surpreso. De onde nos conhecemos?

 

Vou responder a sua primeira pergunta. Depois eu respondo à segunda, disse Shelda.  Sou cigana, filha de Nabuco e Sarai. Meus pais vieram da Romênia, há muito tempo. Eu te conheço por causa da marca que você tem no seu braço esquerdo. Essa cruz ai, essa cicatriz.

 

Sim, eu tenho uma cicatriz em forma de cruz, e ela está aqui e é bem visível, disse Miguel. Só não estou recordando de você ou de ter te contado sobre minha cicatriz.

Miguel, eu peguei você e Santiago nos braços, disse Shelda.  Eu fui amiga da sua mãe. Há muito tempo eu passei por essa cidade. Vocês eram pequenos, e seu pai era vivo. E nessa época eu já vendia magia.

 

         Miguel ficou extremamente maravilhado com o que disse a cigana. Convidou ela para ir até a sua casa para jantar, o que ela aceitou. Não sem antes fazer Miguel jurar que iria comprar uma magia das mãos dela, antes que os ciganos fossem embora para a próxima cidade.

 

- Eu juro – disse Miguel.

 

 

      Às sete da noite Shelda estava sentada na mesa com os irmãos Miguel e Santiago. Havia pão e queijo na mesa, vinho e bolos de sementes de chocolate. Um pequeno javali assado completava a refeição, que saciou tanto a cigana quanto os dois irmãos.

 

- Miguel disse que a senhorita vende magias – disse Santiago. – O que vem ser isso?

 

- Magia são coisas que os outros não podem ter. Por isso as vendo por um preço bom e barato. E quando essas pessoas tem a magia nas mãos se sentem bem e maravilhadas.

 

- Que coisas seriam? – perguntou Santiago.

 

- Você já quis fazer ventar, não é? Eu vendo magias que podem fazer ventar, chover, crescer árvores, nascer ouro no nariz, afastar lobisomens.

 

- Você vende utilidades, então! – disse Miguel.

 

- Não são utilidades – disse Shelda indignada. – São magias, já o disse.

 

- E você conheceu a minha mãe e meu pai? – perguntou Santiago. – Eles nunca disseram que eram amigos de uma cigana.

 

- Sua mãe nunca me mencionou para vocês porque eu pedi, disse Shelda. Eu sei que ela está na Terra do Bomfim. Passamos por lá, vocês sabem, a caravana de ciganos que eu faço parte. Sua mãe mandou lembranças. Foi uma coincidência fortuita ter encontrado Miguel no grande Mercadão. Vi que seu cabelo loiro é semelhante aos cabelos de sua mãe, mais o rosto puxado em forma de tubarão é semelhante ao vosso pai, sem duvida.

 

- Que bom que você conheceu a nossa mãe! – disse Miguel.

 

   A caravana dos ciganos estava deixando a cidade quando as primeiras estrelas do céu estavam brilhando bem longe. O velho cigano que ia à frente de todos levava um pandeiro e alegre tocava ele com as mãos.

 

  Miguel havia dado uma moeda de ouro para Shelda, antes de se despedir dela. Entregue a magia para Santiago, disse Miguel, ele saberá fazer o melhor com ela.

 

          

            Quando os ciganos já estavam sumindo pelo horizonte, Santiago levantou a magia que Miguel havia comprado de Shelda, a cigana, e arremessou a magia para o céu, que se tornou negro como uma rajada de ventanias frias.

 

 

       Vários peixes prateados começaram a cair de cima das nuvens, batendo sobre as casas e sobre as árvores, derrubando as pessoas desatentas que escorregavam nas barbatanas que se espatifavam no chão.

 

Fim

 

 

 

 

   

 

 

 

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