quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O nascimento de um deus - conto

O nascimento de um deus

 

-conto fantástico de Gabriel Limão Klein-

 

 

   Hiro Yamauchi tinha 23 anos, era formado em direito e acabara de se mudar para um apartamento no centro de São Paulo. Neto de japoneses que vieram ao Brasil por causa da segunda guerra mundial, Hiro nunca se sentiu um estrangeiro, e não gostava de nenhum assunto relacionado com o Japão, pois sua relação com os seus pais, que eram muito apegados aos costumes dos ancestrais, foram péssimas.

  Namorava uma linda menina de nome Tamara, que era índia por parte de mãe, e que tinha se formado junto com ele em direito na faculdade.

Hiro acabara de entregar seus duzentos currículos que imprimiu para conseguir um novo emprego, já que não estava gostando de trabalhar fazendo a contabilidade de uma sórdida empresa que monitorava outras empresas menores.

Estava exausto e tinha parado na frente do prédio em que morava para comer algumas bolachas e tomar um refrigerante de laranja, que era o seu refrigerante favorito desde os cinco anos de idade.

Com olhar perspicaz, ficava olhando tudo o que acontecia na praça. Ali estava o mesmo marginalzinho de sempre que ele via assaltando os transeuntes ignorantes que não eram dali. Observava sempre algumas travestis que faziam programas sexuais andando pela praça, e de vez em quando elas acenavam para ele, deixando sua face rubra como um tomate de vergonha.

 Não que tivesse qualquer homofobia, pelo contrário. Hiro tinha um irmão homossexual assumido e por isso entendia a necessidade de algumas travestis de se prostituirem, já que seus pais não aceitaram muito bem o fato de seu irmão ser gay, e o terem expulsado de casa.

O seu telefone começou a tocar e ele retirou o aparelho do bolso para atender, sempre observando o pequeno delinquente que ficava por ali, e com quem já batera bocas algumas vezes por causa do enorme barulho que estava fazendo na frente do prédio.

 

-Alô! – disse Hiro firmemente.

-Oi, amor, sou eu!

A voz de Tamara sempre fazia o coração de Hiro acelerar. Ele era um jovem tímido e pouco ousado nos assuntos amorosos, e não entendia o que uma menina tão doce e simpática como ela fazia com ele que era um cara tão amargo e turrão de espírito.    

 Fora com ela que ele iniciou os seus primeiros passos para o mundo sexual. Não que ela tivesse sido penetrada. Foi apenas um boquete que ele recebera, e que mesmo assim o deixou fascinado pela boquinha quente e cheia de cuspe de Tamara.

 

-Oi amor – respondeu Hiro aliviado, pois pensou que fosse o seu patrão, já que pediu alguns dias de folga dizendo que estava sentindo dores abdominais terríveis. - Aconteceu alguma coisa?

-Não, não. Eu só liguei para saber onde você está – disse Tamara. – E se você vai sair hoje comigo para comer pizza...

 

-Estou aqui em frente de casa, na pracinha – respondeu Hiro.

 

Ele levantou a cabeça quando algumas travestis começaram a acenar alegremente para ele, mexendo os peitos enormes e siliconados para chamarem sua atenção.

 

-Tem muita gente por ai – disse Tamara. – Aqui tem muita gente.

 

-Onde você está? – perguntou Hiro.

 

-Estou aqui na biblioteca pública, resolvendo umas questões para minha irmã – disse Tamara.

 

- Manda um abraço para ela...

 Hiro ia dizer alguma coisa mais se calou, quando uma travesti muito bonita e negra gritou do outro lado para ele:

“Ei, japinha gostoso, vem cá, vem!”

 

- Amor, eu vou entrar para casa. O vento por aqui está frio – disse Hiro.

 

 Hiro não era muito bom em mentiras. E Tamara sabia muito bem disso.

 

-Tudo bem amor. Vejo você de noite. Te amo.

 

-Eu também te amo – ele respondeu, desligando o telefone e colocando o aparelho no bolso.

 

Hiro se levantou e caminhou em direção para a sua casa. Fez um leve aceno para trás para ver se a travesti negra ainda estava por lá, e ela estava entrando em um carro nesse exato momento.

 Hiro sentiu um prazer ao ver aquela cena. “Poderia ser eu ali, com ela, mais isso significaria que eu ia me meter em uma confusão muito grande”.

  Ele abriu a porta e entrou no prédio, subindo o elevador até o andar onde morava. Colocou a chave na fechadura e entrou no seu apartamento.

 

 Hiro Yamauchi era um jovem cheio de manias e superstições, e mesmo que isso pudesse encher o saco de alguns amigos ou até mesmo da namorada, não conseguia se livrar delas.

 Sempre que entrava em seu apartamento fazia questão de observar se os móveis ainda estavam na mesma posição em que os colocara. Isso poderia ser considerado uma espécie de loucura, para quem não entendesse, mais Hiro já lera todos os livros de Freud e sabia que sua mente matemática precisava disso para não enlouquecer com o cotidiano comum, que ele  sempre detestou.

 “Meu irmão tem uma vida fantástica”, meditava enquanto sentava no sofá e colocava o violão que estava na parede um pouco mais para a direita, “poxa vida, ele saiu de casa e nunca deu explicação para os meus pais. E hoje vive com o companheiro no Rio de Janeiro, e nem sequer manda presente no dia do meu aniversário”.

 

Hiro gostava muito de lembrar-se de seu irmão. Ele era o seu irmão mais velho, e embora carregasse na identidade o sobrenome Yamauchi, há muito era chamado de Gali, e não de Yamauchi.

“Meu irmão é um ator, um dos melhores do país. Já fez mais de quinze novelas. Recebe bem, vive uma vida movimentada. E eu fico preso o dia inteiro atolado em papéis que não significam nada para mim”.

 

Hiro não tinha a mesma coragem do irmão para desafiar os pais. O irmão optou por viver sua orientação sexual a qual nascera, optou por realizar seu sonho. Só que ele não podia fazer isso. Seu pai quis que ele se formasse em direito, e com isso iria dar de presente ao filho “leal” um apartamento. Os pais não se agradavam de Tamara, não gostavam de ter uma nora estrangeira na família, mais mesmo assim a tratavam com muito amor e carinho (ou falsidade, como ele pensava).

 

“Será que eles sabem que o Gali está fudendo com um descendente de espanhol?”, ele riu enquanto ligava a televisão para assistir os noticiários.

 

  A barriga de Hiro começou a doer. Ele sentiu uma leve tontura na cabeça, nada de grave, já que desde pequeno sentia esses giros internos dentro do cérebro. Como as bolachas não foram suficientes para tirarem a fome do estomago, Hiro se levantou e caminho até a geladeira de onde retirou dois ovos, intencionando fazer uma bela omelete de presunto e queijo.

Ele acendeu o fogo do fogão com o fósforo, e retirou da gaveta da cozinha um belo garfo. Abriu o primeiro ovo com leveza, e a massa amarelada da gema e o branco da clara se fundiu ao óleo que ele já tinha colocado na panela para fritar sua omelete. Quando foi fazer a mesma coisa com o segundo ovo, algo estranho e insólito aconteceu, o que torna difícil descrever o ocorrido pela rapidez da cena.

 

 Um minúsculo ser começou a deslizar para fora onde devia estar à clara e a gema. Uma pequena criatura que parecia um pequeno pintinho, mas com a expressão facial um pouco puxada nos olhos, um belo traço oriental quase um chinês. Era muito pequeno, cabendo talvez na palma da mão de Hiro, e o que ele parecia era um mini lutador de sumo, gordinho e com penas.

A pequena criatura se segurou no pulso de Hiro, e abriu a boca (que parecia um imenso bico), e uma voz fininha ecoou:

-Meu jovem, você não está pensando em me fritar nessa frigideira, está? – disse a criatura.

-Não! Eu queria fritar o conteúdo do ovo –respondeu Hiro um pouco empático. – Não estava pretendendo encontrar alguém que falasse português e se comunicasse comigo. Pelo menos não hoje.    

 

A pequena criatura ainda estava no pulso de Hiro, deu um salto e ficou em pé no chão.

 Hiro achou engraçada a acrobacia que a pequena criatura tinha feito. Decidiu não rir, e conseguiu apenas rir mentalmente. Ele sempre conseguia isso porque era um costume dos seus pais não rirem na frente dos mais velhos. E infelizmente ele também conseguia essa técnica.

 

-Posso me sentar no sofá? – a pequena criatura perguntou. – Estou um pouco cansado. Dormi por mil anos dentro dessa casca de ovo, e agora preciso esticar um pouco as pernas.

 

-Você tem mil anos da idade? – Hiro perguntou surpreso. – Nossa, eu pensei que a minha avó fosse a pessoa mais velha do mundo.

 

O pequeno ser achou graça e começou a rir.

- Quantos anos tem sua avó? – disse a criatura.

-Ela tem cem anos de idade – respondeu Hiro um pouco ríspido. – E quer alcançar até trezentos...

 

-Ah vocês humanos continuam me fazendo rir.

 

-Você já teve contato com os seres humanos antes? – perguntou Hiro.

 

-Claro. A minha raça foi...

 

-Espere ai – interrompeu Hiro. – Você é só mais um? Existem outros como você?

 

-Claro rapaz. Eu sou um deus. Digamos assim, quase um deus. Eu já fui chamado de semideus por alguns da sua espécie.

 

  Hiro fitou a criaturinha com ligeiro interesse. Sempre foi desconfiado do sobrenatural. Mesmo assim, depois de ler sobre bombas atômicas sendo atiradas em Hiroshima, de onde vieram seus ancestrais, ele não desacreditava de mais nada.

 

-Eu me chamo Hiro.

 

-Eu sei como você se chama – a criatura olhou fundo nos olhos de Hiro, que sentiu certo constrangimento. – A minha raça consegue ler o nome das pessoas em suas testas.

 

Hiro levantou a mão até a testa.

 

-Bom então isso é um pouco embaraçoso. Você sabe o meu nome e eu não sei o seu. Aliás, nós humanos não conseguimos ler nomes nas testas das criaturas que são chocadas dos ovos de galinhas.

 

 O pequeno ser se sentiu extremamente ofendido, mas decidiu em consideração própria a não demonstrar.

 

-Eu me chamo Pyngpong.

 

Hiro sentiu vontade de rir da criatura quando ouviu esse nome, já que ele era mestre em jogar ping-pong na escola desde os cinco anos de idade.

 

- Senhor Pyngpong, gostaria de fazer uma pergunta, se não for indelicadeza da minha parte.

 

-Pode fazê-la rapaz. Eu gosto de ouvir as coisas profundas e idiotas que todos da sua espécie gostam de falar comigo.

 

-Bom – Hiro passou a mão sobre os cabelos. – O que você fazia dentro desse ovo? E se não for nenhum incomodo, por que justamente na minha casa você veio aparecer?

 

-São duas perguntas, meu caro Hiro, e respondo-as depois que você me buscar ali na esquina uma coca-cola. Puxa vida, ficar dentro de um ovo por tanto tempo dá uma sede danada. Você nem imagina.

 

Hiro pegou a carteira que estava no seu quarto e saiu novamente para a rua.

“Será que estou sonhando?”, pensou para si mesmo, “e não existe nenhuma criaturinha chamada Pyngpong em minha casa”.

 Algumas outras travestis começaram a acenar para ele enquanto ele entrava no bar para pedir uma coca-cola de lata para o homem barbudo com cara de árabe no balcão.

 

-O que foi rapaz – perguntou o homem do balcão. – Você está com uma cara de assustado. Aconteceu alguma coisa?

 

Hiro sorriu gentilmente.

 

-Se eu te contasse você não iria acreditar.

 

Deixou o dinheiro no balcão e seguiu de volta para a sua casa.

“Deve ser apenas uma alucinação da minha cabeça. Estou com sede e vim comprar coca-cola para mim mesmo. Acho que o meu cérebro criou essa fantasia só pra passar o tempo”.

 

Hiro pensou essas coisas, mais quando abriu a porta do apartamento e acabando de entrar, viu Pyngpong sentado no sofá com as pernas cruzadas, como se fosse um mini-buda meditando.

 

-Trouxe a minha coca-cola? – perguntou Pyngpong com um sorriso.

 

-Puxa vida, você é realmente um deus que gosta de tomar coca-cola? Pensei que tudo isso fosse uma alucinação mental. Que nada fosse real.

 

-Tudo é real meu jovem. E eu não me esqueci da sua pergunta. Na verdade das suas duas perguntas: bom, o que eu fazia nesse ovo é o seguinte, não existe melhor lugar no mundo para tirarmos sonecas a não ser dentro de ovos. Infelizmente eu devia ter ficado em algum ovo de avestruz, mais foi esse daí que eu encontrei lá na Judéia, e como os ovos estavam raros resolvi descansar por ali mesmo. Bom, vim parar na sua casa por causa de alguma galinha que não podia chocar ovos e resolveu trazer-me enfiado no rabo para ser chocado. Bom, e eu vim parar aqui. Satisfeito com a resposta?

 

-Nem um pouco – respondeu Hiro. – Não entendo nada. Acabei de presenciar o nascimento de um deus aqui na minha frente. E você até agora só pediu coca-cola. Não tem poderes nenhum?

 

-Hiro, Hiro. Você anda assistindo muitos filmes da Marvel. Isso não faz bem para a cabeça de ninguém. Que poderes você acha que eu tenho? Posso até não morrer, mais isso não é poder. É apenas um imenso enfado, ver gerações e gerações aparecendo. Outra, não pense que vou ficar anos fora de um ovo. Vou voltar a dormir de novo e ninguém mais vai se lembrar de mim. Só você pode guardar essa recordação.

 

-Quer dizer que você vai voltar a dormir de novo?

 

-Não agora. Se for isso o que te preocupa. Vou zanzar por aqui, ver algumas coisas, quem sabe comer umas putas, ouvi dizer que tá três garotas de programas por 100 reais agora ali no centro da cidade.

 

-Você faz sexo?

 

-E quem não faz?

 

 Hiro sentou na outra poltrona e ficou olhando Pyngpong com curiosidade.

Pyngpong tomou até o fim a coca-cola, deu um leve arroto, e olhou para cima do relógio.

 

-Hiro, acho que já está na hora do seu encontro com a sua namorada Tamara. Eu não vou atrapalhar você mais. Foi um prazer te conhecer.

Hiro se levantou e ficou olhando a estranha criaturinha abrir a porta e desaparecer. Ele esfregou os olhos antes de pegar a jaqueta de frio para sair.

 

 Ao sentar-se à mesa e pegar um pedaço de pizza de queijo, Tamara perguntou:

 

-Aconteceu alguma coisa hoje, amor?

-Não amor. Tudo normal.

 

Fim

 

 

 

O autor

Gabriel Limão Klein é escritor e comediante brasileiro. Mora em Campinas, São Paulo, onde divulga seu trabalho de stand-up comedy em alguns bares.

 

Contacto: gabrielkzty@gmail.con

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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