contos
A DISCÍPULA
OS VIRA-LATAS
ATÉ TU, BRUTOS?
LINHAS CRUZADAS
O CATALÃO
A Discípula
Elias tinha 72 anos e escrevia como um punhal.
As palavras vinham curtas, sujas, cortando pele.
Ele odiava metáforas.
Estava aposentado do mundo, mas ainda escrevia, por inércia ou por ódio. Um conto por semana, publicado em revistas online que pagavam mal. Não precisava do dinheiro, precisava da raiva.
Foi numa dessas revistas que leu um conto de Eliane:
"A navalha entrou no olho esquerdo do açougueiro como se fosse manteiga."
Ele tossiu. Era sua frase, com outras palavras.
Ela o imitava.
E imitava bem.
Mandou um e-mail:
"Você me copia. Vamos conversar?"
Ela respondeu:
"Você me criou. Me ensina a matar sem parecer cópia?"
Foram tomar café em Copacabana. Ele pediu espresso duplo. Ela, chá gelado. Ela tinha 27, dentes pequenos e olhos perigosos.
Falava pouco. Escrevia muito.
Mostrou um caderno.
Contos. Cem páginas. Todos com a cara dele.
Ele leu. Tossiu.
Quis bater nela.
Quis comer ela.
— Você escreve igual a mim.
— Eu sei.
— Isso é um problema.
— Não pra mim.
Ela o levou pro apartamento dela. Botafogo. Quinto andar.
Cheiro de tinta e um gato manco.
Transaram no chão.
Ela mordeu. Ele gemeu.
Depois fumaram.
Ela nua, rascunhando no espelho com batom: "matar não é copiar".
Na semana seguinte ela mandou um conto novo.
Título: “O Sopro e a Estaca”.
Não parecia com nada que ele tivesse escrito.
Era um soco.
Era lírico.
Era sujo e místico.
Era fêmea.
Ele leu três vezes.
Sentiu uma dor no estômago.
Respondeu:
"Você encontrou. Agora me mata."
Ela respondeu com um .pdf.
O conto chamava-se “O Último Mestre”.
No fim, o velho era esfaqueado na cama pela discípula.
Morria com um sorriso.
Ele sorriu também.
E nunca mais escreveu.
Os Vira-Latas
Guto acordava todo dia com os latidos.
Três vira-latas.
Suavam a madrugada inteira rosnando para o vento, para a lua, para o inferno.
O dono dos cães morava ao lado.
Policial.
Nome: Sargento Vilar.
Guto odiava o Vilar.
Mas odiava mais os cães.
Os três eram magros, nervosos, sujos. Um branco, um preto, um malhado.
Pulavam o muro.
Cagavam no jardim.
Derrubaram os vasos da mãe dele duas vezes.
A mãe morreu. Ele quebrou os vasos de volta.
Mandou bilhete.
Mandou áudio.
Chamou o síndico.
O policial riu.
Mandou ele tomar no cu.
Guto começou a pensar em veneno.
Foi na agropecuária da esquina.
— Quero algo que mate rápido e não faça barulho.
O balconista achou que era pra rato.
Vendeu chumbinho.
Guto cozinhou almôndegas e recheou com o pó azul.
À noite, jogou por cima do muro.
Um dos cães latiu. O outro comeu.
O terceiro fugiu.
Duas horas depois, houve um uivo longo e depois silêncio.
No dia seguinte, a campainha tocou.
Era o Vilar.
— Você viu o Bolinha?
— Não sei quem é Bolinha.
— Meu cachorro malhado.
— Nunca reparei.
Vilar olhou fundo nos olhos dele.
Guto sentiu o cu gelar.
— Escuta aqui, poeta de merda — disse o policial — se eu descobrir que foi você, te faço comer a coleira.
Naquela noite, Guto não dormiu.
Nem na outra.
Na terceira noite, ouviu latido.
Um só.
Baixo.
Dentro da parede?
Arrombou o porão.
Nada.
Cheiro estranho.
Na manhã seguinte, o Vilar passeava com dois cães.
O preto e o branco.
O malhado tinha sumido mesmo.
Mas agora os dois latem mais.
Mais roucos.
Mais fortes.
Guto compra mais chumbinho.
Mais almôndegas.
Mas não tem coragem.
Na quarta noite, um dos cães aparece no sonho.
O malhado.
Com um pedaço de língua pendurado.
Rosna e diz, com a voz da mãe:
— Você é pior que bicho, Guto.
Guto acorda tremendo.
Começa a mijar sangue.
Liga pro médico.
Nada nos exames.
Uma semana depois, abre a janela e vê os dois vira-latas cavando no jardim.
Não há plantas.
Só terra fofa.
Um buraco.
E um osso.
Humano.
Ele jura que é humano.
Tranca a casa.
Vende o apartamento.
Muda pro Méier.
No novo prédio, tem um vira-lata no térreo.
Velho. Cego.
Mesmo assim, quando passa por Guto, o bicho rosna.
E Guto sente que os outros dois ainda latem.
Dentro dele.
Até Tu, Brutus
Rubem não era bonito, mas tinha dinheiro.
Trabalhava com exportação de aço.
Fazia musculação três vezes por semana e escrevia contos nos fins de semana.
Tinha um amigo desde a infância: Brutus.
Nome de batismo: Bruno Teixeira.
Chamavam de Brutus por causa do maxilar, do jeito de gladiador, e do que ele fez na oitava série com um professor de educação física.
Amigos inseparáveis.
Sexo, futebol, porrada e literatura.
Rubem conheceu Lígia numa terça-feira.
Chovia.
Ela entrou no bar como se fosse dona da cidade.
Vestido colado, sorriso de veneno.
Prostituta. Classe alta. Três mil a noite.
Ele pagou cinco.
Conversaram depois do gozo.
Ela falava de Nietzsche e Mônica Bellucci.
Ele ficou apaixonado.
Achou que era amor.
Levou flores.
Levou pra Búzios.
Levou pra dentro dos contos dele.
Mostrou pra Brutus.
Brutus riu.
— Você é um poeta virgem.
— Nunca fui tão homem.
— Cuidado, Rubão. Até César levou uma facada.
Ele devia ter escutado.
No terceiro mês, Lígia começou a sumir à noite.
Dizia que era trabalho.
Ele acreditava. Amava.
Até que, num domingo, esqueceu o celular dela no carro dele.
Desbloqueado.
Uma mensagem:
"Tô com saudade daquele teu soco. Entra por trás hoje de novo?"
Remetente: Brutus.
Rubem vomitou.
Depois mijou.
Depois chorou.
No dia seguinte, foi na casa do Brutus.
Levou um conto impresso.
Chamava-se “O Filho da Puta do Meu Amigo”.
Deu pra ele ler.
Brutus riu.
— Vai fazer o quê, me matar com adjetivo?
Rubem tinha trazido um canivete.
Mas não usou.
Só olhou.
E foi embora.
Na segunda-feira, cancelou todas as sessões com Lígia.
Na terça, escreveu um novo conto.
Chamava-se “O Beijo do Traidor”.
No fim, o personagem principal explode o carro do melhor amigo com ele dentro.
Mandou pra uma revista. Publicaram.
Foi sucesso.
Começaram a chamar Rubem de o "novo Fonseca".
A editora ligou. Queria livro.
Na noite do lançamento, Lígia apareceu.
Vestido vermelho.
Sorriso de sempre.
— Foi tudo verdade, Rubem.
— Até o Brutus?
— Principalmente o Brutus.
Ele autografou um exemplar com a dedicatória:
"Para quem me deu a punhalada certa, no momento certo."
Ela sorriu.
Ele também.
E foram cada um pro seu lado.
Mas no fim do livro, na última página, tem um bilhete escondido:
“A próxima história é com você, Brutus.”
Linhas Cruzadas
O nome dele era Mauro.
Cinco letras, três filhos, uma mulher chamada Cláudia e um Honda Civic automático.
Servidor público.
Quarenta e oito anos.
Gordura abdominal e rotina de supermercado.
Conheceu Sara na fila do banco.
Ela usava salto alto, calça justa e um top laranja que dizia “negra, travesti e perigosa”.
Ele olhou.
Ela sorriu.
Na saída, ela perguntou:
— Você é desses que olha e finge que não gosta?
Ele não respondeu.
Só tremeu.
Transaram no carro, embaixo do viaduto.
Ele chorou depois.
Ela acendeu um cigarro.
Começaram a se ver toda quarta-feira.
Depois sábado.
Depois todo dia.
Ela dizia:
— Eu sou Sara. Não sou segredo de ninguém.
— Eu te amo — ele disse, numa noite em que ela estava sem peruca, sem maquiagem e com o pau mole entre as pernas.
Voltou pra casa.
Cláudia estava no sofá, assistindo novela.
— O que foi? — ela perguntou.
— Preciso ir embora.
Deixou a casa, os filhos, a geladeira nova e as fotos da viagem pra Gramado.
Foi morar com Sara num apartamento na Lapa.
Era pequeno, barulhento e tinha infiltração na parede.
Ele estava feliz.
O filho mais velho, Lucas, foi visitá-lo uma vez.
Entrou mudo, saiu calado.
Depois mandou mensagem:
“Você virou bicha?”
Mauro respondeu:
“Virei homem.”
Lucas parou de falar com ele.
Parou de falar com a mãe também.
Passou a fumar maconha todo dia e ouvir discos antigos do pai.
Dormia mal.
Sonhava com Sara o tempo todo.
Às vezes acordava excitado.
Depois se enchia de nojo.
Na véspera de Natal, Mauro mandou mensagem:
“Te amo, filho. Ainda sou seu pai.”
Lucas apagou a mensagem sem abrir.
Foi até a ponte Rio-Niterói.
Ficou olhando a água por vinte minutos.
Pensou no pai.
Na mãe.
Na travesti.
No pau da travesti.
No amor do pai.
Pensou em pular.
Não pulou.
Mas no caminho de volta, escreveu num papel:
“O que é ser homem?”
Guardou na carteira.
Nunca mais respondeu.
O Catalão
Me chamavam de Catalão, mas eu nunca tinha posto os pés na Espanha.
Talvez fosse por causa do meu nome — Daniel Benveniste — ou por causa das histórias da minha avó sobre nossos antepassados que fugiram da Inquisição com um saco de farinha, dois candelabros e um livro de provérbios.
Ela dizia que a gente tinha sangue ibérico.
“Você tem a alma quente”, ela dizia.
Mas ela dizia isso até pro cachorro.
De qualquer forma, aquilo ficou na minha cabeça.
Catalão.
Como se fosse uma coisa que eu pudesse usar pra não ser só judeu.
Ser judeu era um peso em certas conversas.
Mas ser judeu catalão... bom, isso era quase charmoso.
Aos 17, comecei a estudar espanhol por conta própria.
Lia Lorca, lia Cervantes, até lia o tal do Sabato, que nem espanhol era, mas me deixava meio tonto de tão bonito.
Escrevia cartas para a embaixada da Espanha.
Fiz amizade com uma bibliotecária de Girona, só por e-mail, que me chamava de “mi dulzura sefardita”.
Eu achava aquilo o máximo.
Mas, ao mesmo tempo, tinha esse peso todo.
Israel.
Era como um ímã.
Me diziam que eu tinha que ir. Que eu devia ver a terra dos meus.
"Ali está a tua história", dizia meu tio Saul.
Meu pai ficava calado, sempre calado.
Ele só se manifestava quando eu falava da Espanha.
— Espanha é terra de sangue.
— Israel também.
— Israel é terra de sangue nosso. Lá a gente morre, mas morre como gente.
Essa conversa foi num domingo, logo depois do almoço.
No fim daquela semana eu me alistei como voluntário no exército de Israel.
A verdade é que eu estava com medo de ser só um cara que sabia falar "Barcelona" com sotaque.
Em Israel, descobri que tinha um corpo.
Descobri também que o mundo é pequeno e a cabeça de alguém pode virar sopa numa esquina.
Treinamos no deserto, dormíamos mal, fumávamos muito.
Me apaixonei por um soldado de Haifa que falava como se estivesse sempre cantando.
Mas ele nunca soube disso.
Escrevi cartas pra minha avó.
“Estou lutando pelo sangue espanhol que virou areia”, eu disse.
Ela me respondeu com um versículo bíblico e uma foto minha quando bebê, vestido de toureiro.
O ataque aconteceu numa manhã besta.
Estávamos distribuindo água.
Uma explosão, depois duas.
Lembro do cheiro.
Cheiro de metal e leite.
Quando me deram por morto, eu ainda pensava:
“Era pra eu estar em Girona. Ou num café em Cádiz. Ou nem vivo, mas na Espanha.”
Agora escrevo isso do lado de fora do tempo.
E penso que talvez minha alma não fosse quente.
Talvez fosse apenas confusa.
Talvez ser catalão fosse só uma desculpa bonita pra fugir de morrer como judeu.
Mas cá estou.
Enterrado com uma estrela de Davi.
E duas letras em hebraico que dizem “Daniel”.


Nenhum comentário:
Postar um comentário