quarta-feira, 6 de março de 2013

carta endereçada (conto)

Não, não. Eu não tinha ideia realmente dessas coisas, que elas iriam acontecer desse jeito; Primeiro eu cheguei ensopado pela chuva, e fiquei com medo das trovoadas quando sai do carro, correndo eu tropecei numa poça imensa de lama. Por isso cheguei ensopado, e ainda tive que escutar umas asneiras da sua cara irmã. Um tédio, um total tédio; Fiquei sem livros, fiquei sem televisão (e você sabe o quanto eu odeio a televisão), fiquei sem carro, fiquei sem comunicação alguma. Fiquei primitivo naquele lugar, naquela cidade estranha, eu era um inseto. Virei o coleóptero da metamorfose do Kafka. Ah, sorte minha que uma senhorita estava lendo um livro do Borges, e me emprestou. E como eu me deliciei com a leitura, e como eu senti-me vivo com aqueles labirintos todos. Eu nunca vi um lugar tão sujo, tão estranho, tão latino, e eu sou latino. Eu conversei com um rapazinho, tinha uns doze treze anos, ou talvez menos, só que era alto mesmo grande assim como um como eu posso dizer? Como um rapaz mesmo. Me instigou com um argumento sobre a política externa francesa e americana, e disse que seu pai era judeu. Ele perguntou se eu era judeu, se eu era preconceituoso, se eu tinha algo contra a alguma raça. Nunca tive, nunca tenho. Vomitei um hipopótamo assim que ele me deixou com um livro de poesia nas mãos. Era um menininho tímido, coitado. Gostava de uma menininha loira, lindíssima, que gostava de ler também como ele. O amor é estranho, como você mesma sabe. Eu subi a rua inteira, aquela que dá acesso ao vale magnífico onde mora as prostitutas. Conversei com umas. Devorei uma, é como você sempre disse, é preciso antes de mais nada vivência. Eu escutei algumas pessoas subindo junto comigo, ainda estava cedo, cedinho mesmo, o céu azulado, lindo, parecia que tudo estava bom. Eu tinha esquecido minha carteira no hotel, e não tinha um centavo no bolso. Devo a prostituta. Ela me disse que não se importava, e depois que vomitei um carcará, voltei descendo a rua, meio bêbado, meio cambaleando, e dei de cara com um bêbado, sujo, barbudo, me lembrou muitíssimo meu pai, nos tempos em que ele conversava (depois de beber meia garrafa de cerveja) com a garrafa de água da geladeira. Ele apontou primeiro o céu, me lembrou Machado de Assis, Então discursou como se fosse uma personagem de Shekespeare, e depois apontou para o meu coração, e depois apontou para o seu coração (o seu, não o dele, o  seu mesmo eu juro que vi). O bafo era pior do que o de gasolina, me atingiu em cheio. Não tenho nenhuma esmola para te dar irmão. Siga em paz camarada. Ele deveria ter me respondido isso, assim que revelei que nada tinha, ele desmontou, caiu e dormiu. Um guarda passou e riu de mim e do condenado. Vi pela cara que recebia bem, melhor do que qualquer pessoa de baixo escalão. Deixei o bêbado e caminhei até bar, o dono me conhecia. Naquele dia mesmo um assassinato havia ocorrido horas antes de eu sair do lugar em que eu me hospedava. Quem mataram? Uma linda mulherzinha, loirinha, de Cannes, atriz. Ah, o governo iria vinga-la. Assim que tomei mais um gole de cerveja, me descontrolei e vomitei um pequeno pardalzinho nos pés de um homem alto, moreno, que riu da minha condição de vomitador. Aquilo tudo era uma novidade, embora eu já tinha sido diagnosticado com esse problema de vomitar seres e coisas como você bem sabe. Antes de pegar o dinheiro para pagar a prostituta, tive que subir o meu quarto, e dei de cara com uma linda morena. Ela me perguntou as horas, eu não estava com relógio, então eu pedi para um senhor velhinho me informar as horas. Ele nos informou. Subi um degrau e apanhei a chave e abri a porta.  Os meus manuscritos estavam no mesmo lugar, parados, inanimados. Mais a minha máquina de escrever, e minhas canetas me saudaram com boas-vindas. Eu só podia estar mesmo maluco, e respondi com um saudável aceno de cabeça. Vomitei um tigre, e antes que ele me devorasse, comecei a escrever uma cartinha pra você, coisa que quase nunca faço. Você tinha dito para os seus amigos que eu estava bebendo durante algum tempo, culpa dos meus problemas. Não pense isso de mim, aquele tigre, antes de quase despedaçar meu coração, jogou uma partida de xadrez comigo, mirei seus olhos que pareciam exatamente com os seus e perguntei o que era o amor. Ele rosnou alguma coisa e me deu um xeque-mate perfeito. Meti a mão na carteira, abri e peguei o dinheiro que devia a prostituta. Só fui achá-la bem mais tarde, graças a uma travesti, amiga dela. Conversamos, ela me disse que eu tinha um sério compromisso com a vida. Eu ri. Eu ria. Eu rio. Assim sendo, apertei as mãos dela, e ela me disse: Seja feliz. Assim que descia novamente a rua, um carro negro me atropelou, não me deu nenhuma ajuda. Fiquei em pé, cambaleei mais ainda, graças a droga do atropelamento, e descobri que eu era um alvo fácil para qualquer ladrãozinho que passasse por aquela rua estreita e triste. Chorei junto com o chão, e ele me aconselhou a ir dormir lá para as três horas da manhã, depois de ter escrito algumas coisas para mandar para o jornal onde eu pedi demissão hoje. Aqueles charutos horríveis que você me mandou, espere, acho que foi a Kátia que me mandou aquelas merdas, queimei minha língua com um doce de leite que fiz, e depois disso fui dormir tranquilamente. Sua irmã me deu o recado, você não queria me ver mais, estava amando outro. Assim que consegui vomitar um pequeno gambazinho, coloquei essa carta no correio, e tropecei numa poça bem no meio do caminho.

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