Talvez Ane não notara que a voz dele naquele exato momento, estava de um jeito diferente para com ela; por isso, abaixei os olhos e suspirei pra mim mesmo: "Coitada". Ane não dissera nada, apenas ouvia as explicações dele, as perguntas sobre o que eu fazia lá e porque ela não o avisará que eu estaria lá.
Ane tinha olhos azuis, lindos, e parecia uma menina russa de uns dezessete anos de idade. Sorria a qualquer instante, era muito tímida (tão tímida quanto eu), gostava de usar o cabelo solto, embora o marido preferisse seus cabelos presos. E escrevia poesia... quero dizer: não uma poesia pequena, sem graça, quase sem vida, Ane era uma poeta, uma das maiores que já li e pude presenciar vezes inúmeras o seu faro poético de escrita. Sentava-se, os cabelos soltos escorrendo pela costa bem endireitada, a caneta na mão (pôs escrever poesia com lápis é um negócio danado de ruim para mim", dizia-me). Quando eu estava lá, pedia-me que fosse comprar coca-cola, um lanche com mussarela e presunto e todo o resto, e uma água. Achei estranho tudo isso, embora eu confiasse no faro de Ane para escrever poesia (porque suas poesias se comparariam as do universo).
O marido dela, o homem de beleza insuportável (para mim, que o invejava-o por ter se casado com ela), era bonito para os padrões físico dos anos 90, os anos nos quais os feios hippies sem dinheiro ou cabelos já não eram mais comparados a semi-deuses do mundo ou coisa assim. Eramos amigos íntimos, inter-ligados como ventilador e tomada. Ele escrevia prosa, e eu odiava prosa. Eu era um poeta triste e solitário quando o conheci. Mesmo assim ele me apresentou pra todo o grupo poético que fazia parte (Deus do céu, ele escrevia prosa com uma rapidez invejável, jamais escrevia a mão, muito menos usava os diabólicos computadores). Ane me foi apresentada com muito cuidado por ele: "ESSA É ANE, MINHA AMADA, 'MINHA VIDA, MEU MUNDO". "You World is Anne", ironizei em meu inglês de boticário, e ele sorriu: "Ja!", completou em alemão para me destroçar. Fiz amizades por ali com muito afinco e me deu muito bem com Anne e com ele.
Jamais chegamos a brigar, nunca me deixou de considerar como um amigo dos mais íntimos e confiável, e de minha parte era a mesma (garanto com ironia, já que ele era meu migo mais intimo) coisa.
Eu escrevia coisas horríveis no grupo de poesia que me apresentaram. Mesmo assim consegui botar medo, mais medo sentia com cada estalo que fazia a caneta de Ane ao escrever cada um dos seus mais doces e líricos versos. Nunca gostei do lirismo derramado, e no entanto algo brotava das mãos de Ane, da face dela, do rosto, do seu modo de sorrir, de me pedir para ir comprar sua coca-cola (um vicio assumidíssimo por ela), ou quando me ligava para esperar com ela a chegada dele, e me fazia perguntar controladoras e horríveis de se responder.
Juro por mim mesmo que não sei onde ele está; ela me cercava, se você souber você precisa me contar, eu tenho que saber o que ele faz, a onde faz, e se ele está com... com... Engasgava e se punha a chorar nos meus braços... O A... mor que eu sentia pro ela também se engasgava em minha garganta, e eu não podia desabafa-lo e soletra-lo para ela com todas as letras do alfabeto latino que aprendi na escola.
Eu não poderia chama-lo de cretino, embora eu o chamava por detrás de inúmeras coisas que ele nem se quer imagina que eu o chamava. Talvez Roberto tivesse contando algo pra ele, e pro isso ele começou a me evitar e a virar a cara de vez em quando, talvez babando raiva, inveja, ou algo que seu exterior não lhe deixava mostrar. Mais na frente dele eu o amava, eu a amava, eu os amava, e por isso as dúvidas me consumiam cruelmente como traças... e me roíam como ratos, por dentro, ossos, vísceras e quada parte
de meu corpo.
Eu não podia nunca terminar isso: foi ele que me mostrou o caminho das oficinas de poesia, me apresentando para editores, críticos e fora ele que elogiará meu primeiro livro (medíocre, mal-escrito e super-surreal) que foi despedaçado por todos os críticos invejosos de minha geração. Mais ele insistiu e conseguiu que me dessem um prémio literário e minha fama aumentou. E meu Deus, eu a amava, e por isso dizia essas coisas, eu o idolatrava, era meu amigo o mais próximo, o meu herói e salvador. Meu pai morrerá em um acidente de avião, e ele era um caminhoneiro que gostava muito de fumar cigarros a meia-noite em ponto; estava indo lutar na guerra, e nunca mais o revi. Mamãe me levará para viver com meus avós e sumirá três anos depois, em um misterioso sumiço que até hoje me consome. Fui abandonado pelo destino, e quando a memória me fazia roer por lembranças selvagens desses fatos, eu chorava e lá estava ele, me consolando, colocando em seu aparelho de rádio The beatles, me animando com Bach, me dizendo de cor versos de Camões, sugerindo viagens para Holanda ou Espanha, ditando-me seus sofrimentos pessoas: A morte de seu avó que presenciará com os assassinos, a morte da galinha Josilda, sua galinha de estimação, que criará com todo afinco e que acabará no fim de sua vida sendo devorada por ele que talvez era a pessoa que mais a amava e também a trágica morte de sua primeira namorada, envenenada por pura inveja na cidade do Cabo, por uma socialite rica. A vida não é um sofrimento apenas para nós, e nem sequer a suportamos vive-la de verdade: fugimos dela. Mais dela eu não fugia, eu a amava!
Talvez Ane não notara que a voz dele naquele exato momento estava de um jeito diferente, embora eu tivesse plena consciência de ter reparado isso (eu sempre fui muito observador, desde criança, quando andava pelado por entre as bananeiros do quintal de casa, junto de minha avó, que me batia levemente com a mão na bunda, e ria de mim "Sabe-se-lá por que de rir de mim"). Fique um pouco conosco, eu estava ali conversando com um amigo e por isso demorei. Ane não notara que a voz dele naquele exato momento estava de um jeito diferente. Me levantei e me despedi: eu amava, mais por um triz da chegada dele não confessei isso a ela.
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