O silêncio era uma droga pior que o álcool, e eu conhecia as duas. Já fazia dezoito meses que não escrevia uma linha, não passava nem um bilhete para o entregador de gás, quanto mais uma crônica, um conto. A máquina de escrever, uma Olivetti Lexicon 80 verde-oliva, ficava coberta por um lençol branco na sala, parecendo um caixão de bebê. Eu a via todos os dias. Ela me cobrava, me julgava. Não era a máquina, claro. Era o vazio que a Liz tinha deixado. Um vazio sem cheiro, mas com peso, o peso de um corpo que não se mexe, não fala, não ri, não faz sexo. Só fica.
A vida virou um armário. Tudo guardado, etiquetado. Acordar, café, jornal, almoço, mais café, uísque, dormir. Nenhuma surpresa. Nenhuma emoção. As pessoas na rua tinham pressa, pareciam vivas. Eu era um espectro. O editor me ligava a cada três meses, sempre a mesma história: "E aí, Mário? Alguma coisa no forno? O público sente falta." Eu respondia com um monossílabo, "Não", ou desligava antes. Eu não sentia falta de nada. A literatura, antes um vício, virou uma lembrança suja, como a ressaca depois de uma noitada inútil.
Lembro da última vez que ela leu algo meu. Um conto sobre um motorista de táxi que matava os passageiros que davam gorjeta baixa. Ela achou violento, mas riu, com aquela gargalhada dela, curta e rouca, de fumante. "Você escreve muito bem sobre a maldade, Mário. É o seu dom. Mas por que tanta raiva?" Eu não tinha raiva. Eu tinha medo. Medo de ser como todo mundo, de ter uma vida previsível, uma morte sem nota de rodapé. E agora, ela estava morta, e a vida dela era a nota de rodapé da minha.
Eu andava pela cidade, o Rio de Janeiro, que antes me dava personagens, me dava tramas, agora só me dava suor, poluição e barulho desnecessário. Eu via a miséria, a opulência, a beleza, a feiura. Mas nada me tocava. Era como se eu tivesse um vidro, um para-brisa sujo entre mim e o mundo. Eu precisava de um choque. Um soco na cara. A morte dela tinha sido isso, mas a dor não gerou arte. Só apatia. A dor era estéril, uma puta velha e magra que não paria nada.
Foi a faxineira, dona Nilda, que deu o soco. Ela tirou o lençol da Olivetti. Simples assim. Estava cansada de desviar daquele "fantasma" na sala. Eu reclamei, gritei que ela não devia mexer nas minhas coisas. Ela me olhou, os olhos cansados de quem viu a vida inteira passar sem folia, e disse: "O corpo dela já tá enterrado, seu Mário. O que tá aí é só um pó. Vai trabalhar." A honestidade dela, a brutalidade sem verniz, me atingiu mais que qualquer crítica literária.
Naquela noite, bebi menos. Sentei-me na frente da máquina. As teclas, frias. O papel, amarelo. O cigarro queimando no cinzeiro. Eu não tinha o que dizer. Pensei em Liz. Pensei em como a conheci, na fila do cinema, discutindo um filme ruim de Godard. Pensei na última briga, banal, sobre a conta de luz. E então, comecei a digitar. Não sobre ela, não sobre a morte. Sobre um policial aposentado, em São Paulo, que cuidava de pombos e colecionava facas. Uma besteira, mas era a faísca.
A máquina voltou a ser barulhenta. O som das teclas era o som de eu voltando à vida, o som de eu vomitando o silêncio que tinha me entupido. Escrevi por quatro dias seguidos, só parando para fumar e mijar. O texto era seco, rápido, sem adjetivos desnecessários. A Liz não estava mais lá para dizer que era violento. E a falta dela, o buraco que ela deixou, era a única coisa que me dava a urgência. A morte tinha me roubado tudo, e eu ia roubar dela uma história.
Terminei. Um conto de setenta e duas páginas, sem nome. O policial, o velho e os pombos. Mandei para o editor, sem uma palavra, só o arquivo anexado ao e-mail. Duas horas depois, o telefone tocou. Era ele, a voz rouca, quase chorando. "Mário... isso é... é a sua melhor coisa. Brutal. Genial. Você voltou." Eu não estava genial. Eu estava desesperado. A diferença era pouca, mas estava no papel.
Seis meses depois, veio a notícia. O conto, batizado de O Pássaro e a Faca, tinha ganhado o Prêmio Machado de Assis de Contos. O mais importante do país. A festa foi no Theatro Municipal. Eu odiei. Terno apertado, gente falsa, discursos vazios. Subi no palco, peguei o cheque e o troféu de metal frio. Falei três frases: "Obrigado. A literatura não salva, mas distrai. Boa noite." Desci e fui direto para a rua. Não era pelo prêmio, era pela dívida. O silêncio tinha perdido.
Com o dinheiro, decidi sumir. O Rio era a Liz. Cada esquina, cada bar, era um fantasma. Eu precisava de um lugar sem memória, um lugar neutro. Abri um mapa de São Paulo. Não a capital, o interior. Algum lugar com menos ruído, menos ambição. Escolhi São Bento do Sapucaí. Nome de santo, cidade pequena. Montanha e ar frio. Perfeito para um escritor que não queria ser incomodado.
Comprei uma casa de madeira antiga, com varanda e vista para
Nenhum comentário:
Postar um comentário