O calor pegava de jeito, um bafo de fim de tarde sem a pressa habitual da ventilação forçada. Desde as duas, o silêncio era uma chaga sonora na Paulista, só o buzinar irritado e distante, sem semáforo. O pequeno homem, Mário, estava sentado no peitoril da janela do terceiro andar, o corpo franzino pendido para dentro, quase uma dobra de pergaminho gasto, as mãos cruzadas sobre os joelhos finos. A cidade, lá embaixo, respirava um ar pesado, de estafa e desarranjo.
"É o fim, Mário. O fim," ele cochichou para o ar imóvel, mais um ruído dentro do estômago que uma palavra de fato.
A falta de luz não era nova, mas esta… esta durava, vinha com ares de permanência, de promessa descumprida. Sentia a irritação crescer nos músculos, o suor fino escorrendo na têmpora. Irritação com o óbvio: a fragilidade de tudo. A eletricidade, os fios, o cimento, o gás, o motor, a vida que era feita desses enganos sólidos.
Aí veio o pensamento, rápido, como um estalo de vela acesa: e se não voltar? Se for só o primeiro sinal?
Fechou os olhos. A escuridão interna era mais fresca. Viu então, no olho da mente, não o caos do asfalto, mas a vastidão silenciosa do nada. O mundo dobrando-se sobre si mesmo, não em fogo e trovão, mas numa lentidão de poeira, de tijolo que volta a ser argila e areia. A cidade, a sua São Paulo, reduzida a um monturo de ferros retorcidos e sombras longas. E ele ali, Mário, o pequeno homem, o último vestígio, talvez, de uma linhagem que já vira o mundo acabar e recomeçar tantas vezes.
Lembrou da avó. Dona Clara. O cheiro de azeite e alecrim. A voz, uma toada arrastada, meio portuguesa, meio castelhana, que ele nunca soube decifrar por completo.
"Vovó," ele murmurou, a língua sentindo o gosto da palavra antiga. "Você lembrava, não lembrava? Do que é preciso para o escuro não ser o fim."
A avó Clara, sentada na cadeira de balanço no quintal, sob a mangueira do Brooklin. O avô Elias, judeu espanhol, de Málaga ou de Sevilha, que ele nunca soubera ao certo, só a história da travessia. Eram a diáspora em pessoa.
"O sol se põe, Mário. E a gente acende o que tem. Um candeeiro. A brasa. A memória."
A voz da avó era agora viva dentro dele, uma agulha a costurar o tempo.
"Mas aqui, vovó," ele respondeu, agora em voz alta, a garganta apertada pela seca, "aqui não temos candeeiro. Só o disjuntor. E ele está morto. Nós somos gente do disjuntor. Gente fraca."
O avô Elias, nos seus ternos velhos, o rosto de um mapa de rugas profundas, os olhos muito escuros, fixando um ponto invisível no horizonte do quintal.
"Vê, Mário," o avô dizia, a voz grave, cansada de mundo. "A terra é redonda e muito vasta. O Brasil é vasto, mas não é a nossa terra. A nossa terra… a nossa terra é feita de ossos. Dos ossos que deixamos na Espanha e dos que vamos deixar aqui. O os de onde a gente vem e o os de onde a gente não volta mais."
Mário sentiu um arrepio. A falta de energia era isso. A fragilidade do não-lugar. Eles tinham chegado com pouco, com a pele, com a língua, com a memória e a crença de que o novo país aguentaria. Mas São Paulo, com seus milhões de luzes apagadas, parecia desmentir os avós.
Ele abriu os olhos. O cheiro de esgoto subia da rua, misturado ao calor do asfalto. A cidade era um monstro deitado, sonhando um pesadelo sem eletricidade.
"Não," ele disse, balançando a cabeça de leve, quase uma negação involuntária. "Os ossos são os meus. E os seus, avó. Não a luz."
Ele se levantou, cambaleando levemente, o pequeno homem procurando a caixa de fósforos na penumbra do apartamento. A vela estava em cima da mesinha de centro, um toco gasto. Se o mundo estivesse mesmo acabando, seria com um calor abafado e o cheiro de parafina barata. E a certeza incômoda de que a força, a verdadeira força, nunca estivera nos fios.
"Acende o que tem," ele repetiu a frase da avó. E riscou o palito, a pequena faísca rasgando a escuridão com um som seco, familiar.
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