Morrer sem dinheiro, essa era a maior preocupação do meu Tio Saul, um judeu persa que morava em São Paulo junto do meu pai. Não era uma preocupação vulgar, movida pela ganância ou pela ostentação, mas um terror metafísico, um medo atávico de que a falta de recursos materiais na hora final pudesse significar, de alguma forma inarticulada, uma falência moral, uma prova incontestável da sua passagem inútil pela Terra.
Tio Saul não era pobre. Tinha o suficiente e um pouco mais, fruto de um comércio miúdo de tecidos que ele mantinha no Bom Retiro, mas que tratava com a mesma gravidade com que um banqueiro maneja milhões. Cada nota, cada moeda, era examinada com o fervor de um estudioso de Talmud, não pelo valor intrínseco, mas pelo que representava: a barreira tênue e movediça entre a decência e a miséria.
Meu pai, mais brasileiro, mais resignado com a incerteza tropical, tentava amenizar o drama com um pragmatismo quase zombeteiro. "Saul," dizia ele, com aquele jeito que só um irmão pode ter, "quem morre não se preocupa com a conta. O problema é de quem fica para pagar o caixão." Mas a ironia paterna esbarrava na muralha da obsessão do Tio.
Para Tio Saul, a morte era uma viagem para a qual se devia estar preparado com provisões. E a única provisão confiável neste mundo profano, onde até Deus parecia hesitar em intervir, era o dinheiro. Não o ouro dos reis, mas o papel-moeda que garantia um enterro digno, sem a vergonha de um favor ou a humilhação de uma dívida póstuma.
Lembro-me das conversas noturnas na sala. O cheiro de café forte misturado ao cheiro adocicado de incenso que ele teimava em queimar. Ele se sentava, as costas retas na cadeira de jacarandá, e discorria sobre a fragilidade dos impérios e a solidez, ainda que ilusória, de uma conta bancária.
Ele nos contava histórias de sua infância no Irã, dos deslocamentos, da necessidade de fugir com o que cabia nas mãos, e de como o dinheiro, aquele vil metal, era o único passaporte capaz de atravessar fronteiras e calar a boca dos burocratas e dos opressores. Para ele, o dinheiro era, antes de tudo, liberdade.
E, ironicamente, a sua vida em São Paulo era marcada por uma economia quase monástica. Recusava-se a comprar um carro novo. Vestia-se com a mesma sobriedade de sempre. Seu único luxo era o silêncio e o tempo dedicado a reler os clássicos persas e as páginas em hebraico. Viver o presente com parcimônia era, para ele, um ato de respeito ao futuro desconhecido.
A preocupação com a falta não era, portanto, uma antecipação da pobreza em vida, mas o terror da pobreza no último instante, o medo de ser apanhado de surpresa, descalço na passagem. Como se a ausência de dinheiro na hora derradeira pudesse reverter toda uma vida de honestidade e trabalho.
Essa neurose econômica, no entanto, tinha o efeito curioso de torná-lo profundamente generoso, mas de forma calculada. Ele ajudava a comunidade, distribuía esmolas, mas sempre com a discrição e a certeza de que aquele ato era um investimento, uma espécie de apólice de seguro contra a sua própria ruína final.
E o fim veio, como sempre vem, inesperado e brutal. Ele estava no Bom Retiro, conferindo uma remessa de veludo azul-escuro, quando o coração falhou, rápido, sem aviso. Não houve tempo para despedidas, nem para a última conferência da caderneta de poupança.
Quando meu pai e eu fomos ao banco resolver os trâmites, descobrimos que Tio Saul tinha, de fato, muito mais do que imaginávamos. Havia uma soma considerável, suficiente para viver com tranquilidade por muitos anos. A sua preocupação era infundada, mas real.
E então, ao fechar a conta e guardar o talão de cheques, meu pai sussurrou, com os olhos marejados: "Ele conseguiu, Paula. Ele não morreu sem dinheiro." E naquele momento, entendi que a vitória de Tio Saul não estava na quantia deixada, mas na paz que ele finalmente alcançou, livre do medo de ter sido, no último minuto, um indigente perante o Eterno.
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