minha pintura não começa com cores comuns,
mas com hesitações, linhas que tremem
como se o papel respirasse junto comigo.
há azul, mas não é azul do céu,
é azul do silêncio antes da tempestade,
do lago que guarda árvores sem refletir
ou apenas reflete a memória delas.
há formas que não querem se definir,
como nuvens que se recostam
sobre a linha firme da montanha.
uma curva aqui, um ângulo ali,
como se o mundo insistisse em me contar
segredos que eu não deveria ouvir.
a tinta seca devagar,
revela camadas que eu mesma esqueci,
manchas que se tornaram intenções
sem jamais deixar de ser acidentes.
o verde brota da sombra
como se a luz tivesse hesitado
antes de tocar o papel.
há uma figura, quase humana,
mas não é inteira, não é inteira nunca;
um braço se perde no espaço,
uma perna se transforma em rastro de pincel,
os olhos, se houver, olham para dentro
ou para fora, dependendo de quem observa.
minha pintura é feita de olhares demorados
sobre objetos simples:
uma xícara rachada, uma cadeira esquecida,
um vaso com flores imaginárias,
uma porta que não leva a lugar nenhum
ou talvez leve a todos os lugares.
os tons se misturam como notas musicais,
cada mancha é um acorde,
cada traço, uma pausa,
cada detalhe, uma insistência
em provar que a vida
não cabe na realidade exata.
há contraste, mas não confronto;
o real se curva diante do abstrato,
o abstrato se aquece com a carne do real.
uma árvore é árvore e é também pensamento,
uma sombra é sombra e também memória,
e a tinta seca como se soubesse
que o tempo é aliado, não inimigo.
meu pincel dança, hesita, corrige,
como quem conversa com o próprio silêncio.
o espaço não está vazio:
há expectativa, há desejo, há surpresa.
até a borda do papel é território
onde o possível e o impossível se encontram
para brincar de serem iguais.
quando olho minha pintura de longe,
vejo uma cidade inventada,
ou um corpo que respira,
ou um sonho que decidiu se tornar tangível.
cada espectador encontra sua própria chave
porque a obra não é só minha,
é de quem se deixa olhar.
e ainda assim, em cada linha,
em cada respingo de cor,
há uma assinatura minha:
uma marca silenciosa, firme, discreta,
que diz: aqui estive,
aqui sonhei,
aqui tentei tocar o mundo
com a ponta de um pincel
e o coração inteiro.
minha pintura é promessa e recordação,
desordem e disciplina,
abraço e distância,
realidade e delírio.
e, no centro de tudo,
há a paciência de olhar para o que é
e para o que poderia ter sido,
ao mesmo tempo.
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