Picasso nunca se entregou ao vazio.
Nunca deixou a tela perder o corpo,
o osso, a veia azulada da realidade.
Seus touros, linha após linha,
perdiam peso, músculos, chifres,
até restar apenas um traço —
mas sempre um traço de touro,
a lembrança insistente do animal.
Chamam-no precursor da abstração,
mas ele ria disso:
a abstração pura era para ele
apenas uma decoração,
um ornamento de parede sem cheiro,
sem sangue, sem a indelével marca
de um corpo que já viveu.
No Cubismo, chegou mais perto,
fragmentando rostos,
quebrando garrafas em planos,
inventando um espaço
onde a mesa se dobrava
e a guitarra surgia em pedaços de cor.
Mas ainda ali,
no estilhaço do mundo,
o mundo permanecia.
Picasso admitia:
um objeto pode ser simplificado
até quase não ser reconhecível.
Quase.
Nunca além do quase.
Como se houvesse uma linha invisível
que não devia ser cruzada.
E assim sua arte se tornou ponte:
nem pura ilusão,
nem puro silêncio,
mas um gesto que ainda segurava
a sombra de uma maçã,
a curva do ombro,
o peso do touro.
O real —
mesmo na borda da dissolução —
ainda respirava em sua mão.
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