domingo, 24 de agosto de 2025

Picasso e a Abstração

Picasso nunca se entregou ao vazio.

Nunca deixou a tela perder o corpo,

o osso, a veia azulada da realidade.

Seus touros, linha após linha,

perdiam peso, músculos, chifres,

até restar apenas um traço —

mas sempre um traço de touro,

a lembrança insistente do animal.

Chamam-no precursor da abstração,

mas ele ria disso:

a abstração pura era para ele

apenas uma decoração,

um ornamento de parede sem cheiro,

sem sangue, sem a indelével marca

de um corpo que já viveu.

No Cubismo, chegou mais perto,

fragmentando rostos,

quebrando garrafas em planos,

inventando um espaço

onde a mesa se dobrava

e a guitarra surgia em pedaços de cor.

Mas ainda ali,

no estilhaço do mundo,

o mundo permanecia.

Picasso admitia:

um objeto pode ser simplificado

até quase não ser reconhecível.

Quase.

Nunca além do quase.

Como se houvesse uma linha invisível

que não devia ser cruzada.

E assim sua arte se tornou ponte:

nem pura ilusão,

nem puro silêncio,

mas um gesto que ainda segurava

a sombra de uma maçã,

a curva do ombro,

o peso do touro.

O real —

mesmo na borda da dissolução —

ainda respirava em sua mão.



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