domingo, 9 de junho de 2024

contos

 

O silêncio tenebroso

Lembro a primeira vez em que entrei dentro daquele ônibus deserto. O motorista me olhou, eu disse boa-noite, e ele me respondeu com um leve aceno de cabeça; eu coloquei meus fones de ouvidos e comecei a ouvir as músicas dos beatles que eu tinha em meu celular, comecei pela música "back in the u.s.s.r", e tirei um leve cochilo, e nem escutei a hora em que o ônibus começou a rodar. Quando abri os olhos, percebi que ainda devia ser pelo menos meia-noite. O motorista já estava totalmente dissecado. Seus ossos agora conduziam o ônibus com uma velocidade terrível. "Motorista, eu disse, você poderia diminuir um pouco a velocidade?". Claro, me respondeu a caveira. E então eu me sentei de novo do lado esquerdo onde eu estava. Reparei que havia uma menina, de pelo menos dezoito anos, sentada do lado oposto ao meu. Ela me observou com uma curiosidade no rosto, quando percebeu que eu a olhava também de volta, ela deu um leve esboço de um sorriso, ergueu seu celular iphone última geração e fingiu estar digitando alguma mensagem. Será que ela me conhece? Seu rosto me é totalmente familiar. Ela era asiática, claro, e deveria estar indo para o litoral, talvez voltando de férias, ou indo encontrar os pais. O motorista estava fumando, e a fumaça vinha diretamente aos meus olhos, e eu comecei a ver a paisagem da janela com um esboçamento digno de um quadro impressionista.
"Acho que vai chover", disse o motorista. Eu não sabia se ele falava comigo, por isso me mantive em silêncio de monge budista. "É, está na previsão", eu ouvi a voz da moça respondendo. O motorista fez uma curva, e parou o ônibus com uma leve derrapada. "Só instante, tenho que ver se as corujas já chegaram". Ele desligou o ônibus e saiu. Estava tudo escuro, eu não conseguia ver nada e não podia saber para onde ele havia ido. Me mantive em um silêncio tenebroso.
- Você não é muito educado, é?
Olhei para a menina um pouco espantado. 
- Por que você diz isso?
- Você não respondeu o motorista.
-Eu não sabia se ele estava falando comigo. Como poderia responder? Ele poderia estar falando consigo mesmo em voz alta.
-Só estamos nós três no ônibus. É claro que ele estava falando com nós dois. Isso é lógico, isso é matemático. Você não deve ser muito bom em matemática, certo?
-Certo.
-E o que você faz da vida?
-Eu sou pintor. Mas ganho a vida escrevendo em um jornal de São Paulo. Parece que eu me lembro de você. A gente se conhece?
-Fizemos um curso de inglês, lá na Associação dos Jovens.
- Eu me lembro mesmo. Você era a namorada do Tanaka.
-Isso mesmo.
-E ele está bem?
-Deve estar. Terminamos a cinco anos.
-Puxa vida. Faz bastante tempo.
Ela riu um pouco sem graça da minha tentativa de fazer piada de um término. Voltei a ficar em silêncio. O motorista retornou, dessa vez reparei que já não era mais uma caveira que nos conduzia, e sim uma coruja com corpo de homem.
-É o mesmo motorista?
-Claro que é. Por que não seria?
- Não me lembro do seu nome. É... Yumi, não é?
-Isso mesmo. Você tem uma boa memória Manuel.
Fiquei com os olhos abertos quando ela disse o meu nome. Como ela poderia se lembrar dele, se eu nem sequer me recordava de ter dito para ela.
- Foi o Tanaka que me contou qual era o seu nome - ela disse, talvez percebendo que eu ficara um pouco perplexo e assustado pelo mistério do meu nome ser solvido com tanta rapidez. - Assim como você perguntou o meu a ele eu também perguntei o seu e ele me disse qual era. Não precisa ficar assustado. Eu não sou uma yokai, não vou fazer nenhum mal para você nesse ônibus.
-E para onde você está indo?
Ela ficou um pouco receosa, olhou para o lado, fechou os olhos e disse:
-Estou indo visitar a tumba do Tanaka.
Apertei o botão que solicitava a parada do ônibus. O motorista piu bem alto. Yumi levava nas mãos algumas flores. E uma pequena lágrima desceu de seus olhos. Fiquei parado no ponto vendo o ônibus se afastando, como se fosse um filme poético italiano, dos antigos com legendas. Então, me virei e abri a porta de casa. 


OBSERVANDO O GATO
O gato branco da vizinha estava em cima do muro de casa. Eu tinha acabado de chegar do trabalho, estava cansado e peguei o jornal que estava no chão. O gato me observou com uma atenção curiosa.
- O que foi? - perguntei - Não posso pegar o jornal que eu pago todo dia para ler?
A dona do gato era uma mulher muito bonita, atraente, dos tipos que deveria aparecer em capas de revistas. Não faço ideia do porquê do gato ficar todo santo dia em cima do muro de casa, como se ele esperasse a minha chegada. Ela não era modelo, embora eu supus que fosse. Raramente conversamos. Descobri, nessas conversas tímidas de vizinhos que não se conhecem, que ela trabalhava como secretária de um agiota rico que tinha chegado da Tailândia há pelo menos uns dez anos atrás, e que não falava português corretamente. Perguntei certa vez se o gato tinha sido um presente desse homem. Ela riu e disse que não, ela ganhara de um namorado dela, chamado Antônio, ele foi quem dera o gato de presente para ela. Meus relacionamentos com mulheres nunca deram muito certo. Namorei uns cinco anos com uma menina que nunca quis fazer sexo comigo. Ela acabou me deixando para namorar um lutador bem mais rico do que eu, e eu decidi procurar algumas travestis para diversificar as minhas aventuras sexuais na noite. Eu já estava cansado dessa vida sexual diferenciada quando a vizinha e o gato começaram a me captar a atenção. O gato sempre ficava em cima do muro. Era branco, e seus olhos eram leitosos, como se desse uma aparência de que fosse cego, embora ele não o fosse. De vez em quando eu pensava que ele estava rindo da minha cara, principalmente quando eu deixei a cerveja cair em cima da minha calça de manhã, outras eu percebia um olhar mais enigmático e inquisidor, como se o gato verificasse o meu cotidiano para obter informações para repassar para a CIA ou a KGB. Por fim, ele foi atropelado por um vizinho que voltava de uma balada bêbado. A vizinha se mudou para outra cidade. Restou a lembrança dela e do gato em meu coração.

   

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