domingo, 4 de fevereiro de 2018

Pouco depois


Lá se vai o dia, poeta, dentro de
tuas barbas brancas, negras, cinzentas, lá se vai o ar noturno,
a celebre canção, a noite noiteira chega chorando suas odes
e crepúsculos verdadeiros,
perdemos tudo o que temos
para a vida e o presente arde
com infinitos instantes,
enquanto beijos são facas
e abraços são foices (não
é assim que nos disseram
os poetas árabes, andaluzes?),
e os campos estão cheios
de flores e mariposas
e o dia está quente
e a água é pouca
e a morte é profunda
enquanto ela me ama.
Lá se vai o dia poeta, meu amigo poeta,
onde encaixo as virgulas corretamente?
Não me achas pessimista onde estás?
Espero que a correspondência chegue
e as crianças não chorem e as luas prateadas
não produzam girassóis tristes.
Lá se vai o dia, e o dia dentro do dia só pode
ser cheio de alegria.
Pode ser que ele retorne mais triste
com a morte dos nossos amigos,
ou mais alegre quando cantamos
canções vazias.
Não erga o copo porque não bebo,
não sorria para mim com sorrisos
de chaleiras, ai, quanto tédio de
morte, enquanto lá se vai o dia.
Não há tumba para o mar,
por enquanto, e já estamos
aqui a mais de dezessete dias,
lendo os poetas antigos, celebrando
a barba velha e boa do nosso querido
walt whitman.
E lá se vai o dia dentro do metal,
dentro do fogo, dos móveis, das carapaças
das tartarugas, nos lampiões, nos vaga-lumes,
lá se vai, chorando, imagino,
ou cantando canções tão lindas
que as estrelas se põem a girar,
girar pelos supermercados dos
burgueses ladrões, girando pelo
giro que fazemos quanto tentamos
ler os manuscritos originais de karl
marx quando lemos os manuscritos
de neruda, ou quando olhamos o
urubu por cima da janela querendo
ser fotografado, e nós percebemos
que o dia se vai, lento como as baleias,
e nos torna como aves de rapinas,
com narizes encurvados, e geometrias
femininas,
e os poços cavados são tapados,
as casas vão com o vento e as folhas
são sorrisos para o chão,
e não existe para o peito
estações, nem choque,
nem lírios, nem dores que
não podemos celebrar com
as palavras de D'us, nosso E'terno
Criador de poesia.
E lá se vai o dia, querendo encurvar
o espaço o tempo os livros os alimentos
e nós quando não temos lágrimas
nos retraímos na barba dos poetas
e cantamos como meninos nas
bacias de prata das tamareiras
e queremos ser levando nas mãos
as bolsas do frio, odes agrestes,
o farfalhar desesperado do vento,
as vozes antigas dos nosso antigos
amores e a saudade que nos tortura
com bosques, com peças de teatro,
com números rotos com quebra-cabeças
enquanto vamos tecendo a luz da manhã
no cantar suave e chato dos mais chatos
dos galos.

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