quarta-feira, 13 de agosto de 2025

letra apenas

 


A APAIXONANTE CARREIRA

Na estrada de barro vermelho

Eu vi meu destino passar

Era um cavalo com asas de vento

Me chamando pra não parar

Na praça o menino vendia

Seu sonho de ver o luar

E o mundo corria depressa

Com sede de se apaixonar


Ah, minha carreira é de pó e de estrela

De samba na beira da estrada

De beijo que voa na curva da esquina

De chuva que beija a calçada

Eu corro, eu voo, eu tropeço

No amor que me quer devagar

Mas o vento, meu amigo sem preço

Diz: “Vai, que o frio vai passar”




 TROPICAL TROPICAL É ANAL

No calor da esquina, um cheiro de dendê

Lá na feira o povo dança até o dia nascer

Mas o vento vem do sul, frio de arrepiar

E no corpo tropical, a alma quer se esquentar


Tropical, tropical, é anal

No sentido que é profundo e total

Da raiz do pé até o carnaval

Do amor que é doce, mas também é sal

Na beira da praia, um beijo sem moral

Mistura de mar e sertão no quintal

O mundo é grande, o Brasil é plural

E o frio, coitado, perde no final



 VULTO NEGRO

Entre a neblina da serra

Um vulto negro passou

Tinha nos olhos a noite

Tinha na boca o sabor do amor

O vento frio cortava

As ruas de pedra da capital

E eu seguia seus passos

Como quem segue um sinal

Vulto negro, me leva contigo

Pra onde o mundo não quer nos achar

Entre o Brasil e um abrigo

Entre o perigo e o mar

E quando o dia clareia

Eu sei que o vulto é real

É o abraço que aquece no frio

É meu porto tropical



A AFRICA É O BRASIL

O tambor fala primeiro

Antes da palavra, antes do beijo

O pé bate no chão como quem chama chuva

E a chuva vem como suor de mil rostos negros

No cais de Salvador, no batuque do Rio

No silêncio do sertão que também é Atlântico

A África é o Brasil

Não é metáfora, é espelho

No dendê que frita o peixe

No canto que sopra as folhas

Na ginga que salva o corpo da navalha

E no frio que vem do sul,

um sopro de vento lembra que somos muitos

E que a história, com sua língua de ferro,

não apagará o rastro de sangue e flor

A África é o Brasil

Quando a Bahia dança

Quando São Paulo chora

Quando o mundo nos olha sem entender

Que o nosso rosto é todos os rostos



A HAITIANA ME DISSE NÃO

No mercado de frutas, ela pesava mangas

O lenço colorido guardava segredos de mares

O francês dela era doce

O português meu era torto

Ela me olhou —

E o mundo inteiro parou para ouvir um “não”

Era um “não” que não era só para mim

Era para o navio negreiro e para o navio de cruzeiro

Era para o dólar e para o real

Era para o homem que acha que a mulher é sua

Era para o país que acha que o outro é quintal

A haitiana me disse não

E o vento da tarde, cúmplice, repetiu nas esquinas:

Non, non, non.

E eu voltei para casa mais pobre e mais livre




O SOL QUE BATE VOLTARÁ MAIS TARDE

Hoje o sol não quis sair cedo

Mandou dizer que acordou cansado

Que há guerras demais para iluminar

Que a América Latina pede luz demais e paga de menos


O vento frio varreu as ruas

E eu pensei no amor como quem pensa no pão

Faz falta, alimenta, mas sempre chega atrasado


O sol que bate voltará mais tarde

Porque o mundo é lento para quem tem fome

E rápido para quem tem medo


Eu espero.

Nós esperamos.

E quando ele vier, talvez não queime,

Mas acaricie como mão de mãe



SOU MAIAKÓVSKY AMIGO

Sou Maiakóvsky, amigo,

quando ando de madrugada pelas ruas

e falo alto com o vento gelado da Paulista

O neon é meu comício

O poste é minha tribuna

O poema é minha arma


Mas também sou o menino de chinelo

que corre atrás da bola na praia

e não sabe que está citando revolução

quando grita “é gol!”


Sou Maiakóvsky, amigo,

e também sou o silêncio da tarde na Bahia

O barulho da feira

O cheiro de goiaba

O beijo no escuro do cinema


E, no fundo,

sou só alguém que escreve para não desaparecer




VIOLÊNCIA NÃO

Vi um homem bater em outro

Vi uma mulher esconder o rosto

Vi a polícia bater porta e alma

Vi a criança aprender cedo a não chorar


Violência não

Não é palavra de missa

É palavra de rua, de grito, de mão levantada


O frio vem, o vento vem

E eu sei que o amor é mais quente

Mas o amor também é arma

Se for de verdade


Violência não

Mas coragem, sim




MARXISTA SÓ DE NOME

Me chamam de marxista

Eu sorrio

Meu Marx está na estante

E também na feira, na conversa com a vizinha

No preço do feijão

No aumento da passagem


Marxista só de nome?

Talvez.

Mas sei que o mundo é mais que lucro

E que a poesia não se vende em leilão


O frio e o vento me lembram

que a história é feita de sopros

e que cada sopro pode virar tempestade




APENAS VOU, VOLTO COMO PÁSSARO

Apenas vou

Sem mala, sem passaporte

O vento é minha companhia

O frio é minha capa


Volto como pássaro

Trazendo no bico uma palavra nova

Para cada boca seca

Para cada coração cansado


O mundo é grande demais para não ser visto

E pequeno demais para não ser amado


Apenas vou

E o voo é também um abraço





A AMÉRICA LATINA NÃO É QUINTAL DE AMERICANO

Não é.

Não é.

Não é.


Não é quintal — é floresta

É cordilheira

É sertão

É favela que canta

É cidade que não dorme


A América Latina é pássaro migratório

que sobrevive a cada inverno

comendo o pão que o diabo amassou

e cantando como se fosse carnaval


O vento frio dos Andes beija a cara quente da Bahia

O sol de Havana aquece o mate de Buenos Aires

E nenhum general estrangeiro

vai entender o gosto de uma goiaba madura na boca


A América Latina não é quintal de americano

Porque quintal tem cerca

E aqui a cerca é de vento, de amor, de guerra

E vento não se prende



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