domingo, 7 de maio de 2017

Recitação para o público com os olhos cheios d' água

(com pequenos fragmentos surrealistas, pressentimentos de paixões avassaladoras, sonhos, imaginações, lembranças, visões proféticas, só)




- abre-se as cortinas com os primeiros personagens -

(..)

Sombra: Esse sorriso de noite se reflete em mim?

Claridade: Não, não. Sim, sim.

Sombra: Por quê dormes sem mar ou colher?

Claridade: Não vês o amor da raiz secreta da nuvem?

(...)

Noite: Sombra que vai, sombra que vem.

Dia: Claridade que arde. Dor que não tem.

Noite: Amém.

Dia: Meus braços de fogo, minha alma de tocha.

Noite: Seus cabelos me tocam.

Dia: Não vês as nuvens que choram?

Noite: Não há poente mais belo do que teus olhos.

Dia: E quem decifrou aquele mistério?

Noite: Mistério!

(..)

Mar: Subiremos por onde? Andaremos para onde? Peregrinaremos aonde? Amaremos a quem? Pediremos a quem? Beijaremos a quem?
Seremos o quê? Nadaremos no que? Passaremos? Passaremos?

Terra: Valsas que vão, valsas que vem. Sonhos que são sonhos que sem... Beijo de amor, beijo de dor. Deus, a vida te pertence. A Videira da Vida também.

Mar:  Subiremos por onde? Andaremos para onde? Peregrinaremos aonde? Amaremos a quem? Pediremos a quem? Beijaremos a quem?
Seremos o quê? Nadaremos no que? Passaremos? Passaremos?

Terra: Já colheram os frutos caídos no chão. Pronto. Pegaram com as mãos. As formigas picaram seus pés. A luz do candelabro já soou. A luz do sofar tocou. Agora são outras horas. E agora não teremos mais nada.

Mar: Posso pedir algo?

Terra: Peças!

Mar: Posso ser mais espuma e menos água?

Terra: Peças!

Mar: Posso ser menos terror e mais amor?

Terra: Peças!

Mar: Posso engolir a areia com minha boca de sal e minha língua de ondas?

Terra: Peças!

Mar: Posso amar os seres que se deságuam em mim?

Terra: Peças!

Mar: Posso morrer sem fim?

(...)


Pelicano: Voo pelo verão.

Aves: Que bom que sabes.

Pelicano: O outono não quer.

Aves: Que achas daquela montanha?

Pelicano: O amor rima sempre com dor?

Aves: Quem irá bicar aquele peixe no mar?

Pelicano: Delírio, escolhas, sonhos, algo?

Aves: Diremos que nada restou. Será dilemas.

Pelicano: Mas nada.

Aves: Mas nada, nada.

(..)

Metáfora: Quem me deixou entrar nas palavras?

Singelo: Cala-te!

Metáfora: Os bois no campo serão mortos.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Serei um sino no meio do dia.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Eu também morrerei no pó da terra.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Sofrimentos são véus encobertos de mariposas.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Frondosa moça de olhos azuis. Peito de azeitona. Nádegas de bambus.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Outono cristão.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Ofício de amor.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Inverno muçulmano.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Ofício de amor.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Flor asiática. Formosa oriental.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Negra noite nos cabelos da negra negra.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Sinagogas judaicas de portas de ouro.

Singelo: Cala-te.

Metáfora: Morrerei com todos os seres da terra.

Singelo: Que serás?

Metáfora: Uma estrela.

Singelo: Um enigma.

Metáfora: Só.

Singelo: Só.

(...)

Homem: Tu me amas?

Mulher: Sim, sim.

Homem: Tu me queres?

Mulher: Não, não.

Homem: Aquela flor.

Mulher: Aquele cheiro.

Homem: O orvalho da manhã.

Mulher: Nossos beijos sem luares.

Homem: Saudade?

Mulher: Nem fragmentos.

(..)

Morte: Quem irá colher os restos que ficar?

Vida: Tudo recomeça quando tudo se acabar.

(...)

Sonho: Não durmas nesse momento.

Lembrança: Por que não queres minhas lágrimas?

Sonho: Não tens que carregar todos nos braços?

Lembrança: Aquela menina me cravou um punhal.

Sonho: Punhal de ouro, punhal de prata.

Lembrança: Não tenho medo de saber quem é que me mata.

Sonho: Carregas algo de cigano em ti?

Lembrança: Ela era uma cigana. Tinha os olhos puxados, tinha a pele escura, tinha a voz manchada de arco-íris e mel.

Sonho: Nenhuma vírgula pode ser decifrada em teu coração.

Lembrança: Não creio. Porque interrogo as coisas quando canto.

Sonho: Não te querem como eu te quero.

Lembrança: Não me querem nem a claridade...

Sonho: ...nem a sombra.

(..)

Amor: Silêncio, a chuva dialoga.

Dor: Nenhuma saudade pode resistir o amor.

Amor: Qualquer um que me queira...

Dor: ...Qualquer um...

(...)

Sereno: Nada mais que um pouco de pó no caminho da estrada.

Serena: Nada mais que um beijo de mariposa numa flor sem perfume.

Serena: Nada mais que um insuportável cheiro agreste de felicidade.

Sereno: Nada mais que um cigano beijando uma linda cigana camponesa.

Sereno: Nada mais que o orgulho e a orgulhosa agulha agulhando o céu.

Serena: Nada mais que as doces parábolas de Cristo sendo ensinadas para nós.

Serena: Nada mais que as Escrituras da Bíblia sendo lidas em nossos olhos.

Sereno: Nada mais que todos os livros escritos por nossas mãos cansadas.

Sereno: Nada mais do que as fadigas da esperança esperada no por-do-sol.

Serena: Nada mais...

Sereno: Nada mais...

(..) 

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