quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Cena do sargento, do cabo, conversando com o cigano


(com tema belíssimo de Federico Garcia Lorca).

sargento
Eu sou o grande sargento da polícia militar.

cabo
Sim.

sargento
E ninguém pode me contestar.

cabo
Não.

sargento
Posso ter o sol e a lua em minhas mãos.

cabo
Sim.

sargento
Posso julgar as almas que os outros matarão.

cabo
Não.

(vozes ao lado, sons de bofetes, uma lua suspensa
e um sol. entra um cigano).

sargento
Que se passa?

cabo
Um cigano.

sargento
O que é isso?

cabo
Não sei. Vou buscá-lo, prendê-lo, algemá-lo, maltrata-lo e já respondo.

sargento
Não faças nada disso.

cabo
Não.

sargento
Traga-o aqui.

o cigano entra com olhos lacrimejados

sargento
Que se passa?

cigano
Vim buscar o sol de tuas mãos.

sargento
Não podes me contestar. Sou o grande sargento da polícia militar.

cigano
Não te contesto.

cabo
Cala-te.

cigano
Eu não rezo.

cabo
Cala-te.

cigano
Eu sangro.
cabo
Cala-te.

cigano
Eu só peço...

sargento
Não sabes com quem falas? Sou o grande sargento da polícia militar.

cigano
Quem deu o direito da vida?

cabo
Sim.

cigano
Quem deu o direito da morte?

sargento
Cala-te. Cigano. Eu sou o grande sargento da polícia militar.

cigano
Quem interrogará Deus por tanto sangue?
cabo
Não.

cigano
Quem colocará a corda no pescoço do diabo?

cabo
Sim.

cigano
Quem me deixará viver em paz, cantando dentro de um rio,
de um poço.

cabo
Não.

cigano
Quem deu aos ricos o direito de maltratarem os pobres?

sargento
Chega, cigano. Você não sabe quem eu sou? Sou o grande sargento da polícia militar.

cigano
Não quero morrer.

cabo
Cala-te.

cigano
Não quero viver.

cabo
Cala-te.

(alguns rouxinóis cantam.
o cigano deita-se e dorme.
o grande sargento da policia militar
se levanta e fecha a janela, bate as mãos.
o cabo ergue uma estrela e um sol e chora.
ninguém vê a bíblia aberta ao lado da janela aberta).

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