quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Balada antiga

     Nos ermos afastados das colinas onde a relva crescia alta e as árvores antigas guardavam silêncios de eras, estendia-se um vale esquecido pelos mapas dos homens e mesmo pelos cantos dos bardos, pois ali habitava um mal antigo, tão envolto em trevas quanto em lendas. Diziam os pastores que se arriscavam até a beira das ravinas que uma sombra esverdeada se movia sob a lua, e que olhos como tochas soterradas brilhavam em meio à neblina. Era Cerbero, o Dragão Verde, cujo nome vinha sendo sussurrado através de gerações, e cuja presença mantinha vilarejos inteiros em temor. Nenhum homem ousara enfrentá-lo, pois mais que fogo e garras, trazia consigo o poder da palavra sedutora, capaz de curvar corações mais facilmente que dentes ou aço. Mas aconteceu que um cavaleiro de terras distantes, Erik Eoghan, vindo não em busca de glória ou riquezas, mas movido pelo rumor de que nenhuma paz reinaria enquanto a fera vivesse, tomou para si a jornada. Erik não possuía brasões vistosos nem cortejos de trombetas, e o cavalo que montava não era mais que um corcel cansado, ainda assim fiel ao peso de seu senhor. A espada que trazia, já gasta de lutas menores, não brilhava com encantos, mas permanecia firme na mão de quem sabia mais rezar do que vangloriar-se. Ao adentrar o vale, a atmosfera mesma pareceu espessar-se, como se o ar se tornasse fumaça verde, e cada passo ecoava como uma intrusão. Então, da gruta cujo arco lembrava a mandíbula de uma fera morta há muito, ergueu-se Cerbero. Suas asas se estendiam como véus de tempestade, e suas escamas reverberavam em mil tons de jade envenenado. A terra tremia sob seu corpo, e contudo, não era o rugido o que mais aterrava, mas a voz, que fluía como corrente sombria no espírito. “Homem frágil,” disse o Dragão, com língua que silvava entre dentes como espadas, “por que vens tu a este lugar onde reis morreram e heróis esqueceram seus nomes? Que esperas alcançar com teu aço enferrujado e tua coragem vazia?”

E Erik respondeu, firme, ainda que seu peito ardesse com receio: “Não trago coroa nem coros, mas trago a fé que me sustém. Não vim buscar ouro, mas silêncio para as crianças que choram nas noites, temendo teu vulto. Vim para que o céu seja mais claro e o solo mais livre. Isso basta.”

O Dragão riu, e seu riso soou como trovão em caverna: “Ingênuo! Tudo o que vês e respiras posso oferecer em dobro! Reinos para teu comando, muralhas de pedra viva, exércitos sem fim. Basta que te curves diante de mim e sejas meu herdeiro. Pois que vale um nome esquecido, quando podes ser senhor do mundo?”

     Mas Erik ergueu a espada, que cintilou como mero aço refletindo luar, e replicou: “Prefiro morrer como servo do Alto do que viver como rei do abismo. Não preciso de muralhas quando a verdade é muralha, nem de exércitos quando a coragem é meu companheiro.” Cerbero avançou, e o chão se quebrou em fendas, e o vento tornou-se um redemoinho pestilento. “Então morrerás!” bramiu, e cuspiu labareda de verde fulgor, que queimava como veneno mais que como fogo. Mas Erik não recuou. Cobriu-se com o escudo gasto, sentindo a madeira arder e partir, e no instante em que a chama se dissipou, lançou-se adiante.

Os dois se encontraram como trovão contra pedra. A garra do Dragão buscou esmagá-lo, mas o cavaleiro rolou sob o peso, e sua espada encontrou a junção de escamas sob a asa, onde até os dragões guardam fraqueza. Cerbero soltou um brado que quebrou galhos e fez aves despencarem do céu, mas Erik não largou a lâmina, e antes que o monstro pudesse cerrar a mandíbula, fincou a ponta ainda mais fundo. “Podes destruir meu corpo,” disse Erik, ofegante, “mas não destruirás a promessa que carrego. O sol nascerá mesmo sobre teu túmulo, ó fera.”

   Cerbero estremeceu, e em sua última fala, ainda tentou seduzir: “Pensa, homem... pensa em tudo o que poderias ter sido...” Mas suas palavras se dissolveram em um sopro pesado, e então o corpo do Dragão tornou-se pó verdejante, espalhando-se pelo vento como se nunca tivesse sido, senão no medo dos homens.    Erik Eoghan permaneceu de pé, embora curvado de cansaço. Não houve multidões aclamando-o, nem trombetas anunciando sua vitória. Apenas a aurora rompeu o horizonte, clara e limpa, e o ar, antes pesado, era agora leve. Ele olhou para o vale, que já não parecia amaldiçoado, e montando seu cavalo cansado, partiu em silêncio. Nenhum nome seu foi cantado nos grandes salões, mas nos corações daqueles que jamais souberam quem lhes devolvera o descanso, a paz foi sua canção, e isso, para Erik, bastava.


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