Prefácio ao Conto de Aengus e o Dragão
Caro Leitor,
É com a devida cautela e alguma reverência que apresento a vós esta simples e poderosa saga. Não se deve tomar este relato como uma mera invenção nascida sob o sol pálido da imaginação moderna, mas sim como uma restauração, como se limpa a poeira e o mofo de um vitral esquecido para que a luz original possa, de novo, brilhar através dele.
A origem desta história peculiar, “Aengus e o Dragão Seren”, está ligada não à pena de um único autor, mas sim aos vestígios de uma tradição que jazia oculta sob a superfície de nossa era. O corpo do conto, em sua estrutura e eventos, foi primeiramente discernido através de alguns pergaminhos frágeis, encontrados por minha pessoa nos cantos empoeirados da velha Biblioteca de Adamantina. Estes fragmentos, escritos numa caligrafia formal e arcaica, preservavam as linhas gerais da tragédia e do triunfo de Aengus, o lavrador, mas estavam incompletos, com lacunas que o tempo e a negligência haviam cruelmente infligido.
O que permitiu a união e o florescer destes esqueletos de texto foi, na verdade, a memória e a sabedoria de um homem bom: o saudoso Padre João. Um sacerdote humilde, mas de uma erudição que mal se encontra hoje, ele serviu por muitas décadas na paróquia mais antiga de Adamantina. Durante nossas longas noites de inverno, passadas à luz bruxuleante da lareira e com taças de chá simples, ele pacientemente me narrou as passagens que a tradição oral havia mantido vivas. As nuances sobre o cão Rover, o nome verdadeiro da espada – Verdade e Fúria –, e o tom exato com que o Rei Tudor se dirigiu a Aengus são elementos que devo inteiramente à sua fidelidade à lenda.
É uma fonte de profunda melancolia que o Padre João tenha sido chamado para seu descanso final antes que esta história pudesse ser polida e oferecida à luz da publicação. A sua partida é uma perda não apenas para a fé e para a comunidade, mas para o próprio patrimônio do conto. Teria sido seu grande desejo que esta lenda, um eco da virtude e do espírito heroico dos fundadores de Adamantina, fosse partilhada.
Assim, o que vos apresento é uma piscadela da Antiguidade, uma voz de um passado que insiste em nos lembrar que mesmo nas mais terríveis adversidades, a coragem simples de um homem comum e a lealdade de um companheiro fiel podem, sim, derrubar o maior dos males.
M.ELIAHU MARX.
Primeira Versão
¹Eis que na vasta terra de Adamantina, onde os campos de trigo dourado beijavam o céu azul e os rios de águas límpidas serpenteavam entre colinas suaves, havia um homem de nome Aengus, um lavrador abençoado pela terra e pelo trabalho árduo de suas mãos. Sua morada era um pequeno lar à beira da Floresta Sombria, e seu coração era grande e generoso, dedicado à sua formosa esposa, Elara, cujo sorriso era mais brilhante que a alvorada e cujos cabelos eram como fios de ouro puro. Juntos, viviam em paz e prosperidade modesta, e a alegria era a luz que iluminava seu humilde teto, enquanto os dias se passavam na labuta e no contentamento, sem presságios da calamidade que em breve se abateria sobre suas vidas.
²Mas, nos profundos abismos e nas montanhas de fogo que se elevavam para além das terras cultivadas, despertara um mal antigo e terrível, uma criatura das profundezas, cujo nome era Seren, o cruel e perverso dragão. Suas escamas eram como obsidiana polida, e seus olhos, brasas que ardiam com ódio e cobiça. De sua boca, jorrava fogo que devorava cidades e vilas, transformando campos férteis em cinzas e o lamento dos homens em um eco amargo no vento. Adamantina, a terra dos homens, tremia sob a sombra de suas asas imensas, e o terror se espalhava como uma praga, consumindo a coragem e a esperança nos corações dos mais valentes.
³E veio o dia em que a desgraça bateu à porta de Aengus, pois o pérfido Seren, em seu voo de destruição e rapina, desceu sobre a morada do lavrador. Com um rugido que fez a terra tremer e os animais fugirem em pavor, o dragão agarrou a inocente Elara de seu lar, enquanto a pobre esposa, em desespero e gritos que rasgaram o ar, era levada pelos ares, seu corpo frágil contrastando com a força brutal do monstro. Aengus, testemunha impotente da abominação, sentiu seu coração se transformar em pedra e seu sangue ferver em desespero e uma ira santa, jurando em seu íntimo que não haveria descanso para sua alma até que sua amada fosse resgatada das garras da besta.
⁴Com o coração dilacerado e a mente nublada pela dor, mas a alma inflamada por um propósito inabalável, Aengus deixou sua casa desolada e buscou a corte do Rei Tudor, o soberano de Adamantina, cuja face estava marcada pela preocupação e cujas vestes reais pareciam pesadas sob o fardo de seu povo afligido. Diante do trono, Aengus narrou sua tragédia, sua voz embargada pela emoção, mas sua determinação era clara como a água da montanha. O rei, movido pela bravura e pelo sofrimento do lavrador, reconheceu nele o espírito inquebrável dos homens de sua terra, e assim, tomou uma decisão de grande peso.
⁵"Aengus, filho da terra e senhor de teu próprio destino", disse o Rei Tudor, com sua voz ressoando pela sala do trono, "teu sofrimento é o sofrimento de Adamantina, e tua coragem é a chama que pode acender a esperança em nossos corações. Embora sejas um lavrador, teu propósito é mais nobre que o de muitos cavaleiros. Toma, pois, esta lâmina, forjada nas forjas secretas de meus ancestrais, temperada em rios de lava e encantos antigos, uma espada cujo nome é Verdade e Fúria. Que ela seja tua companheira fiel e tua justiça contra o Dragão Sombrio, e que os deuses de Adamantina te guiem em teu caminho solitário."
⁶E assim, Aengus recebeu a lâmina sagrada, sentindo em suas mãos o peso da responsabilidade e o frio toque do aço que prometia vingança. Não estava, porém, completamente só em sua jornada, pois ao seu lado, sempre vigilante e com um espírito alegre que contrastava com a sombriedade de sua missão, estava Rover, seu fiel cão. Rover não era um animal comum, pois possuía a dádiva da fala e a sabedoria de muitos invernos, e sua voz, embora muitas vezes cheia de brincadeiras e canções, era um bálsamo para a alma atormentada de Aengus, e seus olhos brilhantes pareciam enxergar além do que os olhos humanos podiam ver.
⁷Juntos, homem e cão, partiram para as terras desoladas, onde a fumaça de aldeias queimadas ainda flutuava no ar e o silêncio da morte pairava sobre as ruínas. Rover, com sua agilidade e olfato apurado, guiava Aengus por trilhas ocultas e caminhos perigosos, enquanto suas palavras de encorajamento e seu bom humor inabalável mantinham a chama da esperança acesa no coração do lavrador, que por vezes se via tentado a ceder ao desespero. "Coragem, meu mestre!", latia Rover com seu alegre latido, "Pois o Sol sempre se levanta após a noite mais escura, e a vingança, se justa, sempre encontra seu caminho, e a recompensa, se merecida, nos aguarda!"
⁸Após longas jornadas e incontáveis perigos, eles chegaram à montanha do Dragão, um pico rochoso que se erguia como um dente negro contra o céu, envolto em vapores sulfúricos e um presságio de morte. A entrada da caverna de Seren era uma fenda escura na rocha, de onde emanava um calor infernal e o cheiro acre de fumaça e destruição. Aengus sentiu um calafrio percorrer sua espinha, mas a imagem de Elara, aprisionada nas profundezas daquele abismo, impulsionava-o para frente, sua coragem superando o medo que lhe apertava o peito.
⁹No interior da vasta caverna, onde tesouros de eras passadas se empilhavam em montes cintilantes e o ar era pesado com o hálito pestilento do dragão, Seren repousava sobre sua montanha de ouro e joias, um ser de terror indescritível. Seus olhos vermelhos se abriram, fixando-se no diminuto invasor, e um rosnado profundo, que parecia vir das entranhas da própria terra, ecoou pelas paredes. Aengus, empunhando Verdade e Fúria, sentiu o poder da lâmina em suas mãos, e a ira por Elara o encheu de uma força que não parecia ser de um simples mortal.
¹⁰A batalha que se seguiu foi lendária, uma visão digna dos bardos e das epopeias. O dragão, com sua força bruta e seu fogo devastador, avançou, mas Aengus, com a agilidade de um javali selvagem e a astúcia de uma raposa, esquivava-se dos ataques flamejantes, buscando uma abertura na armadura escamada do monstro. Rover, por sua vez, latia furiosamente, distraindo o dragão e alertando Aengus sobre os ataques vindouros, sua voz estridente ecoando na vasta caverna. Com um grito de fúria e desespero, Aengus lançou-se em um ataque final, cravando Verdade e Fúria no ponto fraco da barriga de Seren, onde as escamas eram mais finas e o coração do dragão batia.
¹¹Um rugido de dor excruciante irrompeu da garganta de Seren, fazendo a montanha inteira tremer. O dragão contorceu-se em agonia, sua vida esvaindo-se como a fumaça, e seu corpo maciço tombou sobre os tesouros que tanto cobiçara, silenciando para sempre a ameaça que pairava sobre Adamantina. Aengus, exausto mas vitorioso, ajoelhou-se ao lado do corpo do monstro, seu peito ofegante, mas seu coração repleto de alívio e uma alegria quase irreal. E lá, em uma fenda da caverna, ele encontrou sua amada Elara, pálida mas ilesa, e o reencontro foi um bálsamo para suas almas, suas lágrimas de alegria lavando a memória do terror.
¹²Com Elara segura ao seu lado e o fiel Rover pulando de contentamento, Aengus, antes um simples lavrador, emergiu da montanha não apenas como um herói, mas como um homem transformado. Não apenas havia resgatado sua esposa e livrado Adamantina de seu flagelo, mas, em seus bolsos, levava punhados de diamantes e joias preciosas, um prêmio inesperado de sua vitória. Assim, retornaram à sua terra, recebidos com festa e louvor pelo Rei Tudor e por todo o povo, e a história de Aengus, o lavrador que matou o dragão, foi contada e recontada por gerações, um testemunho da coragem que reside no coração dos mais simples e da luz que pode surgir mesmo nas mais sombrias adversidades.
Segunda versão
¹ E sucedeu nos dias em que o sol ainda brilhava sobre os telhados de palha de Adamantina, que havia um homem chamado Aengus, lavrador de campos férteis e guardião das vinhas de sua casa. E era ele simples e robusto, de mãos calejadas pela enxada e pelo arado, e tinha por esposa a bela Mairead, cujos olhos reluziam como a aurora sobre os montes. Mas veio sobre a terra o terror de Seren, dragão cruel e perverso, cuja asa cobria o céu e cujo hálito abrasava muralhas, e não havia bastião que pudesse resistir-lhe. E em sua ira, o monstro raptou Mairead, levando-a consigo a gruta sombria nas montanhas ermas, deixando Aengus em pranto e fúria.
² Então Aengus, em sua dor, ergueu-se e buscou o conselho dos anciãos e dos reis, e foi conduzido ao trono do poderoso Tudor, senhor das hostes de Adamantina. E o rei falou: “Aengus, homem de terra e trigo, eu te confiarei a lâmina que foi forjada nos fogos do norte, herança de reis e campeões. Com ela, talvez queiras enfrentar Seren e trazer de volta o que te foi tirado”. Assim, uma espada de luz, cintilante como as estrelas em noite sem nuvens, foi entregue ao lavrador, que a tomou com reverência, pois nela sentiu o peso do destino e da esperança de muitos homens.
³ E não estava Aengus só em sua jornada, pois tinha consigo o cachorro Rover, animal falante e de espírito alegre, cuja língua era solta em ditos e risonhas palavras. E Rover saltitava ao redor de seu dono, dizendo: “Ó Aengus, não temais, pois quem haveria de resistir a ti com esta espada, e a mim, com meu faro e meus dentes, e a ambos com a coragem que nos arde no peito?” Assim seguiram, homem e cão, pelos caminhos ermos, através de bosques densos e rios bramantes, enquanto os ventos traziam o eco dos gritos das vilas que ainda eram queimadas pelo dragão.
⁴ Longos foram os dias, e longas as noites em que Aengus vigiava, com a espada sobre os joelhos e Rover a seu lado, enquanto lembrava-se de Mairead prisioneira nas garras de Seren. O coração do lavrador tornou-se aço, e nele cresceu uma chama que nem o frio da noite, nem o cansaço do corpo podiam apagar. Pois cada passo que dava nas trilhas rochosas era impulsionado pelo amor e pela ira, e a cada suspiro, o nome de sua esposa era murmurado como oração.
⁵ E quando chegaram ao sopé da montanha negra, onde Seren fizera sua morada, ali a terra estava queimada, e os ossos dos que ousaram resistir jaziam espalhados como cinza em campo de batalha. O ar era denso de fumaça e enxofre, e os olhos de Aengus marejaram pela dor do mundo. E Rover, ainda que temesse, disse: “Aqui, amigo, é onde os homens comuns se desfazem, mas tu, sendo comum, tornar-te-ás incomum. Pois os deuses escondem grandes feitos nas mãos simples”. Então o lavrador apertou o punho da espada e avançou.
⁶ Seren ergueu-se das trevas de sua caverna, vasto como montanha e terrível como tempestade. Seus olhos eram chamas vivas, sua voz era trovão, e suas asas sacudiram os penhascos. E ele falou: “Ó pequeno verme, ousaste vir contra mim? Tu, que nada és senão pó e feno?”. Mas Aengus, firme, respondeu: “Não vim por ouro nem por glória, mas pela minha esposa, e por justiça contra tua tirania”. Assim se ergueram homem e dragão, como mundos em choque.
⁷ E o combate foi terrível, pois o fogo de Seren quase reduziu Aengus a cinzas, mas Rover saltava e mordia-lhe as patas, desviando-lhe a atenção, enquanto a espada, brandida pelo braço do lavrador, cintilava em movimentos ágeis e desesperados. Por três vezes Seren o lançou ao chão, e por três vezes Aengus se ergueu, pois em seu coração ecoava o riso e o olhar de Mairead. Finalmente, em fúria, Aengus cravou a lâmina entre as escamas do ventre do monstro, onde nem fogo nem ferro até então haviam tocado.
⁸ Seren rugiu de dor, e sua voz abalou a montanha inteira. O céu escureceu, e sua asa quebrou as pedras em queda, mas Aengus manteve a espada firme até que o dragão, exaurido, desabou, espalhando labaredas moribundas que logo se extinguiram no vento. Rover, arfando e chamuscado, latiu de júbilo: “Caiu o senhor das sombras! Caiu Seren, o terrível!”. E Aengus, suado e exausto, contemplou o corpo vasto da fera e ergueu os olhos ao firmamento, agradecendo aos céus pela vitória concedida.
⁹ Dentro da gruta, nos recônditos do rochedo, Aengus encontrou Mairead, acorrentada, mas viva, e em seus olhos ainda ardia a chama da esperança. Ao vê-lo, ela exclamou com lágrimas: “Sabia que virias, meu amado, ainda que todas as vozes dissessem o contrário”. E o lavrador rompeu suas cadeias e a abraçou com força, sentindo que todos os tormentos estavam findos. Rover dançava ao redor deles, como se fosse o arauto de sua alegria.
¹⁰ E mais que a esposa, encontrou Aengus os tesouros acumulados por Seren ao longo das eras: ouro incontável, pedras de brilho eterno e diamantes de pureza ímpar. Mas não encheu ele carruagens, nem baús, apenas enfiou punhados de diamantes em seus bolsos, como quem recolhe grãos de trigo, pois sua riqueza maior estava ao seu lado, viva e sorridente. E disse a Rover: “Não nos seduziremos pela cobiça, mas tomemos o suficiente para que a casa prospere e não falte pão à mesa”.
¹¹ Assim retornaram eles a Adamantina, pelas estradas que antes tinham sido percorridas em angústia, e agora eram percorridas em triunfo. As gentes das vilas vieram ao seu encontro, e cantaram cânticos, e derramaram flores aos seus pés, dizendo: “Aengus, o lavrador, tornou-se herói; Rover, o cão, tornou-se companheiro de lenda”. E no palácio do rei Tudor, foi recebido com honras que não almejara, e seu nome foi inscrito entre os feitos de maior glória do reino.
¹² E a vida de Aengus voltou à sua simplicidade, mas nunca mais foi a mesma, pois aquele que ceifava os campos ceifara também o terror de um dragão. E nos invernos, ao redor da lareira, Rover contava sua versão da batalha, sempre aumentando o tamanho do monstro e a coragem de si mesmo, arrancando risos de crianças e adultos. E Aengus, com Mairead a seu lado, sabia que a maior vitória não estava na espada, nem nos diamantes, mas no amor que resistira ao fogo, ao ferro e ao medo. E assim terminou a saga de Aengus, lavrador de Adamantina, cujo coração foi maior que as asas de Seren.
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