AQUELE QUE DORMIU POR MUITO TEMPO
- Para Isabel Garcia de Ataide Lima,
meu amor: dedico esse conto mágico para minha esposa mágica!
Francisco levantou os seus olhos
azulados pela janela de vidros quebrados e dobradiços de ferro enferrujados e
viu que todas as estrelas brancas do mapa astral estavam intactas e continuavam
no mesmo lugar. Voltou sua atenção para a rua onde uma senhora simpática e
elegante passava do outro lado da rua carregando uma sacola amarela na mão.
- Boa noite, minha senhora, disse Francisco.
Está precisando de ajuda para carregar os seus sonhos até a sua casa?
Não, a velha
respondeu cordialmente. Meus sonhos não pesam mais do que meio quilo. Meus
braços secos de uvas passas ainda aguentam carrega-los. Obrigada pela
preocupação. Vou dispensá-lo da tarefa.
A velha continuou o seu caminho, subindo a
ladeira. Seu corpo ossudo e cabisbaixo parecia antever sonhos belos e fortes.
Lá dentro da casa, a mulher de Francisco suspirou bem forte.
O aconteceu Amanda? – perguntou Francisco, preocupado com o
suspiro forte que trouxe para dentro da sala da casa um grande vendaval de
sinistras andorinhas. Ele conhecia muito
bem os suspiros de Amanda. Quando eles eram lentos como doces rouxinóis, é
porque o dinheiro que eles estavam precisando para comprar leite de vampiro ou
dente de lobo estava chegando através de algum artificio mágico. Mas quando os
suspiros dela eram fortes como a fúria de mil ventos, ele sabia que o pior
estava para acontecer.
- Já vão se fazer três mil anos, Francisco!
Três mil anos e ele ainda dorme Francisco. Três mil anos! Três mil anos
completados agora. Eu vi, eu olhei, as estrelas brancas continuam no mesmo
lugar Francisco.
Eu sei disso, respondeu Francisco com os
olhos marejados de lágrimas. Também me preocupa que ele durma tanto.
Não come,
não bebe, não se levanta, continuou Amanda com um suspiro lento e potente como
a onda do mar de Julho sem se importar com o que Francisco acabara de dizer.
Como eu posso viver sabendo que o meu irmão é um morto que está vivo?
Desde que Roberto deitara seu corpo na cama macia da irmã para tirar um
cochilo proveitoso, já que acabava de chegar de viagem e não havia nenhuma cama
de hospedes na casa de Francisco e Amada, que ele não se levantava para mais
nada.
Se ele
tivesse ido para alguma pousada, falou Francisco. Talvez continuasse acordado.
E não estaríamos nessa situação constrangedora.
- Eu nunca iria
mandar meu irmão para uma pousada - gritou Amanda furiosa. – Minha família
jamais perdoaria se eu fizesse algo desse tipo.
A
porta da casa estava aberta e foi por ela que entrou Eduarda trazendo na mão
cinco galhos de mandrágoras e um elixir da vida eterna. Era uma mulher forte e
alta, muito magra, seu pescoço era longo como o de uma girafa e seus cabelos
eram ruivos como o fogo. Diziam as más línguas da cidade que ela era uma bruxa,
uma verdadeira feiticeira daquelas antigas que eram queimadas escondidas pelos
sacerdotes. Até o padre da igreja de mil pedaços caídos tinha medo de Eduarda.
Ali na casa de Francisco ela sempre foi bem acolhida, e era uma das melhores
amigas de Amanda.
Como vão
todos? - perguntou Eduarda sentando no sofá com suas nádegas grandes e
volumosas. – O jovem já levantou os olhos?
- Não só não
levantou os olhos, como não levantou as mãos, os pés, o corpo, disse Amanda,
dando um suspiro tão forte que encheu a casa com um rugido de um leão terrível.
Calma amiga,
não precisa suspirar desse jeito, disse Eduarda. Ele vai acordar. Ninguém dorme
para sempre.
Só os
mortos, tornou a falar Francisco que até aquele momento não tinha dito nenhuma
palavra. Eu mesmo já vi um dorminhoco levantando. Só que isso foi há muito
tempo, nos dias em que eu me aventurava lá pro norte. Não sei se essas coisas
continuam sendo possíveis.
Tudo é
possível para aquele que crê, disse Amanda. Não é isso o que aprendemos todos
nas escolas bíblicas das televisões? Já fiz os meus votos. Se Roberto levantar
hoje eu juro que dou aquela galinha que bota ovos de ouro para a caridade.
Juramento. Eu jurei Francisco. E você sabe que quando se jura é sagrado.
- Sei muito
bem disso – disse Francisco. – Eu mesmo fiz vários juramentos. Um dia jurei
para um peixe do oceano que não iria pesca-lo se ele me levasse de volta para o
litoral que eu não conseguia mais encontrar, pois eu estava perdido no meio do
oceano atlântico. Na aldeia de Altopicoshuypis, meu avô jurou para uma
prostituta que iria dar para ela uma estrela cadente que ela viu caindo em
direção as Montanhas dos Andes. Ele trouxe para ela a estrela cadente
embrulhada em um manto desses que se encontra em qualquer camelô de rua.
Todas essas
coisas são sérias, disse Eduarda colocando o elixir no meio das pernas que eram
grossas e atraentes. Fiz alguns juramentos na minha vida. Alguns juramentos
guardei, e manterei assim até o fim. Coisas da qual não posso nunca falar e nem
pigarrear. Preciso manter o pacto do silêncio. São juramentos profundos de
magia.
Você quer um
pouco de café Eduarda? – perguntou Amanda com tristeza. – Meu irmão sempre
tomava café nessa hora, comigo e com o Chico. Ficávamos conversando sobre
muitas coisas. Agora ele não pode tomar nada e nem conversar nada. Nem água
está bebendo. Graças a Deus que não se desidrata.
Seu irmão há
de acordar, disse Eduarda segurando a xícara de café com lenta atenção de
felina. – Será que não tem um pouco de leite para eu misturar com o café?
Eu sei que
ele há de acordar no último dia, disse Amanda balançando a cabeça de um lado
para o outro, preocupada. Quando viu que o suspiro subia pelo seu estômago até
a boca tapou os próprios lábios sem vida com a mão direita.
Sim, ele há
de acordar, disse Francisco. E nós vamos voltar a tomar café como antes. E
vamos conversar sobre muitas coisas como antes.
- Quem está
no quarto com o Roberto? – perguntou Eduarda.
- Não tem
ninguém lá – respondeu Amanda. – As luzes estão apagadas. A última fada que ficou
olhando para ele, teve que ser enxotada de lá com a vassoura. Se pelo menos um
anjo descesse e viesse ter com ele. Algum milagre. Quantas vezes eu olhei para
aquele espelho do quarto enquanto ouvia o suspiro dele eu dizia para cima com
os olhos cheios de tartarugas, sim, eu disse: eu creio, eu creio em Magia.
Nunca descri. Nunca descrerei. Eu não posso descrer. Nem quando a velhice e a
morte fizerem questão de me acompanhar para o túmulo sem flores para onde vou.
- Não diga
bobagens – disse Francisco ríspido. – Seu túmulo será cheio de flores e trolls.
- Eu sei
disso – disse Amanda. – Meu irmão dorme Francisco. Será que não vê que é por
isso que suspiro?
- Não
precisa suspirar tanto – disse Francisco. – Estamos cuidando dele. Logo ele
acorda.
Um tremor percorreu a casa com uma
eletricidade viva, como se vários elefantes estivessem chovendo pelo céu. As
telhas da casa se levantaram e tornaram a estrondar no chão. Lá fora a rua
estava movimentada, com pessoas ouvindo músicas em seus carros, várias motos
passavam em direções variadas, e muitos jovens bebiam cerveja sem nenhuma
condescendência com o coração. Quando isso acontecia Francisco descia até o
porão, donde tirava uma velha arma que guardava para tempos escusos. Era um
velho bacamarte de herança de seu bisavô, um cigano barbudo e hostil que não
gostava de discutir termos matemáticos com pessoas que não fossem cristãs. Seu
bisavô deixara o bacamarte especialmente para ele, que era o mais novo dos
cinco filhos do velho João Cigano. O velho bisavô tinha ficado vivo até os
duzentos anos, e era muito bom em xadrez, e somente Francisco conseguiu
detoná-lo em uma partida de xadrez.
- Não conte
a ninguém sobre isso, meu bisnetinho – disse o velho bisavô. – Você sempre foi
o meu neto predileto. Sei que coisas extraordinárias vão acontecer na sua vida.
Você é um mago, um grande mágico, como meu pai foi, e o pai dele, e o pai do
pai dele, e o pai do pai do pai dele. E sei que coisas maravilhosas acontecerão
para você.
Sempre que segurava o bacamarte na mão, Francisco
se lembrava do rosto do seu velho bisavô dizendo tais e tais coisas.
“Velho
bruxo, sabia muito bem que o extraordinário iria me cercar por todos os lados”,
pensou Francisco, enquanto a voz de seu avô entrava em seu ouvido como um
vento. Ele sentiu uma estranha fragrância de rosas invadindo a casa. Voltou
para a sala e encontrou Amanda dando um novo suspiro que trouxe para a casa
centenas de garças e pelicanos. Eduarda dava batidinhas suaves nas costas de
Amanda, como que para acalmá-la.
O que houve? – perguntou Francisco colocando o
bacamarte na mesa.
Sua esposa
subiu até o quarto onde está Roberto, para ver se ele havia acordado, disse
Amanda.
E ele
acordou? É preciso ter esperanças, disse Francisco quase num sussurro
inaudível.
- Não,
Francisco, ele não acordou – gritou Amanda. – Nem com todos os ruídos que esses
mil demônios fazem ali fora ele não acorda. Ele não acorda com nada. Estou
cansada de ter esperanças. Não quero ter esperança nenhuma. Esperança era o
nome da filha que eu sempre quis ter e nunca vou ter porque não é o meu sonho
ser a mãe de uma pessoa que vá dormir para todo o sempre. É assim com a minha
família, Francisco, você bem sabe disso: meu avô, meu pai, e agora meu irmão.
Todos dormem. Todos se vão para a terra do sono e não se levantam. E as
mulheres, nós mulheres, sofremos por eles. Por que eles são a carne da nossa
carne e o sangue do nosso sangue.
Posso ir
chamar um comprador de sonhos, disse Eduarda, eles são pessoas boas no
comércio, falam por ai que é por causa do sangue semita misturado com o sangue
grego; eu tenho minhas dúvidas, só conheço um que é sábio como uma coruja e
esperto como uma raposa. Quem sabe pode ajudar...
Nunca gostei
de raposas, disse Francisco, é melhor deixarmos o tempo resolver essa questão.
Mesmo que durem mais três mil anos. Já vi velhos errantes passarem por aqui
nessas bandas com sacolas cheias de ouro e diamantes. É só uma questão de tempo
e matemática.
Amanda levantou um suspiro que estremeceu não
só a casa e a rua, toda a cidade estremeceu dentro de seu suspiro. Um grande
trovão chocalhou a prefeitura onde o gordo prefeito estava sentado comendo um
baiacu vivo com uma esponja em forma de garfo e faca.
- O que foi
isso, o que foi isso, Marieta? – perguntou o prefeito para Marieta, sua secretaria
que parecia um palito de fósforo com sete dedos nas mãos de tão rápida que
digitava no computador os seus nadas em brancos.
- É a mulher
que estava suspirando por causa do irmão que continua dormindo – disse Marieta
com sua voz de ganso em grasnados lentos.
- Aquele que
dormiu por muito tempo? É esse? – perguntou o prefeito novamente, antes de
abrir sua boca e engolir de uma só vez o baiacu entre suas mandíbulas.
- É esse
mesmo prefeito – disse Marieta.
- E o que a
prefeitura pode fazer para ajudar essa coitada? – perguntou o prefeito com uma
gargalhada, como se já soubesse a resposta da secretária.
A secretaria
tirou o búfalo que estava segurando sua pasta com as mãos cheias de pelos
negros e antes de responder olhou a lâmpada que parecia estar sendo penetrada
por uma orgia errante de duendes eletrônicos.
- A
prefeitura não pode fazer nada – disse Marieta. – Não temos verbas para
ajuda-los. Só para nos ajudar!
“Se todos
esses suspiros pudesse acordar esse coitado infeliz”, pensou Francisco
serenamente, olhando a rua cheia de jovens e motos e carros. Viu que um garoto
de quatorze anos se assemelhava muito com Roberto, pois ele também tinha nariz
aduncado, olhos negros perspicazes, movimentos ágeis com os pés em forma de
ovelhas e chifres de faunos nos tufos escuros e loiros da cabeça.
Eduarda já
tinha ido embora, e o relógio da sala estava em um silêncio de túmulo e dias
antigos. Uma chuva serena não fez espantar os meninos e meninas que se agitavam
como cotovias na frente da rua. “Claro que ele vai despertar, mais não é a
hora, nem o dia, nem o momento”, pensou Francisco. Amanda estava dormindo como
uma sonambula há três mil dias. Seu irmão não estava morto, apenas dormia o
sono dos justos. Francisco guardou o bacamarte do bisavô cigano no porão.
“Velho bruxou” pensou balançando a cabeça como um dinossauro com sono. De novo
enfiou a cara larga e vermelha pela janela aberta. Seus olhos azulados
faiscaram com a passagem do vento coberto de cobres e carregado de um odor de
urina. Viu que todas as estrelas brancas do mapa astral estavam intactas e
continuavam no mesmo lugar. Antes de fechar a janela Francisco deu um largo
suspiro, que fez o mar arrepiar seus braços titânicos de água.
Depois disso foi dormir com medo de nunca mais
acordar, assim como Roberto.
Fim
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