domingo, 27 de dezembro de 2020

AQUELE QUE DORMIU POR MUITO TEMPO

 

AQUELE QUE DORMIU POR MUITO TEMPO

 

- Para Isabel Garcia de Ataide Lima, meu amor: dedico esse conto mágico para minha esposa mágica!

 

                  Francisco levantou os seus olhos azulados pela janela de vidros quebrados e dobradiços de ferro enferrujados e viu que todas as estrelas brancas do mapa astral estavam intactas e continuavam no mesmo lugar. Voltou sua atenção para a rua onde uma senhora simpática e elegante passava do outro lado da rua carregando uma sacola amarela na mão.

  - Boa noite, minha senhora, disse Francisco. Está precisando de ajuda para carregar os seus sonhos até a sua casa?

Não, a velha respondeu cordialmente. Meus sonhos não pesam mais do que meio quilo. Meus braços secos de uvas passas ainda aguentam carrega-los. Obrigada pela preocupação. Vou dispensá-lo da tarefa.

    A velha continuou o seu caminho, subindo a ladeira. Seu corpo ossudo e cabisbaixo parecia antever sonhos belos e fortes. Lá dentro da casa, a mulher de Francisco suspirou bem forte.

                    O aconteceu Amanda?  – perguntou Francisco, preocupado com o suspiro forte que trouxe para dentro da sala da casa um grande vendaval de sinistras andorinhas.  Ele conhecia muito bem os suspiros de Amanda. Quando eles eram lentos como doces rouxinóis, é porque o dinheiro que eles estavam precisando para comprar leite de vampiro ou dente de lobo estava chegando através de algum artificio mágico. Mas quando os suspiros dela eram fortes como a fúria de mil ventos, ele sabia que o pior estava para acontecer.

  - Já vão se fazer três mil anos, Francisco! Três mil anos e ele ainda dorme Francisco. Três mil anos! Três mil anos completados agora. Eu vi, eu olhei, as estrelas brancas continuam no mesmo lugar Francisco.

  Eu sei disso, respondeu Francisco com os olhos marejados de lágrimas. Também me preocupa que ele durma tanto.

Não come, não bebe, não se levanta, continuou Amanda com um suspiro lento e potente como a onda do mar de Julho sem se importar com o que Francisco acabara de dizer. Como eu posso viver sabendo que o meu irmão é um morto que está vivo?

 

             Desde que Roberto deitara seu corpo na cama macia da irmã para tirar um cochilo proveitoso, já que acabava de chegar de viagem e não havia nenhuma cama de hospedes na casa de Francisco e Amada, que ele não se levantava para mais nada.

Se ele tivesse ido para alguma pousada, falou Francisco. Talvez continuasse acordado. E não estaríamos nessa situação constrangedora.

- Eu nunca iria mandar meu irmão para uma pousada - gritou Amanda furiosa. – Minha família jamais perdoaria se eu fizesse algo desse tipo.

 

   A porta da casa estava aberta e foi por ela que entrou Eduarda trazendo na mão cinco galhos de mandrágoras e um elixir da vida eterna. Era uma mulher forte e alta, muito magra, seu pescoço era longo como o de uma girafa e seus cabelos eram ruivos como o fogo. Diziam as más línguas da cidade que ela era uma bruxa, uma verdadeira feiticeira daquelas antigas que eram queimadas escondidas pelos sacerdotes. Até o padre da igreja de mil pedaços caídos tinha medo de Eduarda. Ali na casa de Francisco ela sempre foi bem acolhida, e era uma das melhores amigas de Amanda.

Como vão todos? - perguntou Eduarda sentando no sofá com suas nádegas grandes e volumosas. – O jovem já levantou os olhos?

- Não só não levantou os olhos, como não levantou as mãos, os pés, o corpo, disse Amanda, dando um suspiro tão forte que encheu a casa com um rugido de um leão terrível.

Calma amiga, não precisa suspirar desse jeito, disse Eduarda. Ele vai acordar. Ninguém dorme para sempre.

Só os mortos, tornou a falar Francisco que até aquele momento não tinha dito nenhuma palavra. Eu mesmo já vi um dorminhoco levantando. Só que isso foi há muito tempo, nos dias em que eu me aventurava lá pro norte. Não sei se essas coisas continuam sendo possíveis.

 

Tudo é possível para aquele que crê, disse Amanda. Não é isso o que aprendemos todos nas escolas bíblicas das televisões? Já fiz os meus votos. Se Roberto levantar hoje eu juro que dou aquela galinha que bota ovos de ouro para a caridade. Juramento. Eu jurei Francisco. E você sabe que quando se jura é sagrado.

- Sei muito bem disso – disse Francisco. – Eu mesmo fiz vários juramentos. Um dia jurei para um peixe do oceano que não iria pesca-lo se ele me levasse de volta para o litoral que eu não conseguia mais encontrar, pois eu estava perdido no meio do oceano atlântico. Na aldeia de Altopicoshuypis, meu avô jurou para uma prostituta que iria dar para ela uma estrela cadente que ela viu caindo em direção as Montanhas dos Andes. Ele trouxe para ela a estrela cadente embrulhada em um manto desses que se encontra em qualquer camelô de rua.

 

Todas essas coisas são sérias, disse Eduarda colocando o elixir no meio das pernas que eram grossas e atraentes. Fiz alguns juramentos na minha vida. Alguns juramentos guardei, e manterei assim até o fim. Coisas da qual não posso nunca falar e nem pigarrear. Preciso manter o pacto do silêncio. São juramentos profundos de magia.

Você quer um pouco de café Eduarda? – perguntou Amanda com tristeza. – Meu irmão sempre tomava café nessa hora, comigo e com o Chico. Ficávamos conversando sobre muitas coisas. Agora ele não pode tomar nada e nem conversar nada. Nem água está bebendo. Graças a Deus que não se desidrata.

 

Seu irmão há de acordar, disse Eduarda segurando a xícara de café com lenta atenção de felina. – Será que não tem um pouco de leite para eu misturar com o café?

 

Eu sei que ele há de acordar no último dia, disse Amanda balançando a cabeça de um lado para o outro, preocupada. Quando viu que o suspiro subia pelo seu estômago até a boca tapou os próprios lábios sem vida com a mão direita. 

Sim, ele há de acordar, disse Francisco. E nós vamos voltar a tomar café como antes. E vamos conversar sobre muitas coisas como antes.

 

- Quem está no quarto com o Roberto? – perguntou Eduarda.

 

- Não tem ninguém lá – respondeu Amanda. – As luzes estão apagadas. A última fada que ficou olhando para ele, teve que ser enxotada de lá com a vassoura. Se pelo menos um anjo descesse e viesse ter com ele. Algum milagre. Quantas vezes eu olhei para aquele espelho do quarto enquanto ouvia o suspiro dele eu dizia para cima com os olhos cheios de tartarugas, sim, eu disse: eu creio, eu creio em Magia. Nunca descri. Nunca descrerei. Eu não posso descrer. Nem quando a velhice e a morte fizerem questão de me acompanhar para o túmulo sem flores para onde vou.

- Não diga bobagens – disse Francisco ríspido. – Seu túmulo será cheio de flores e trolls.

- Eu sei disso – disse Amanda. – Meu irmão dorme Francisco. Será que não vê que é por isso que suspiro?

- Não precisa suspirar tanto – disse Francisco. – Estamos cuidando dele. Logo ele acorda.

 

 Um tremor percorreu a casa com uma eletricidade viva, como se vários elefantes estivessem chovendo pelo céu. As telhas da casa se levantaram e tornaram a estrondar no chão. Lá fora a rua estava movimentada, com pessoas ouvindo músicas em seus carros, várias motos passavam em direções variadas, e muitos jovens bebiam cerveja sem nenhuma condescendência com o coração. Quando isso acontecia Francisco descia até o porão, donde tirava uma velha arma que guardava para tempos escusos. Era um velho bacamarte de herança de seu bisavô, um cigano barbudo e hostil que não gostava de discutir termos matemáticos com pessoas que não fossem cristãs. Seu bisavô deixara o bacamarte especialmente para ele, que era o mais novo dos cinco filhos do velho João Cigano. O velho bisavô tinha ficado vivo até os duzentos anos, e era muito bom em xadrez, e somente Francisco conseguiu detoná-lo em uma partida de xadrez.

- Não conte a ninguém sobre isso, meu bisnetinho – disse o velho bisavô. – Você sempre foi o meu neto predileto. Sei que coisas extraordinárias vão acontecer na sua vida. Você é um mago, um grande mágico, como meu pai foi, e o pai dele, e o pai do pai dele, e o pai do pai do pai dele. E sei que coisas maravilhosas acontecerão para você.

 Sempre que segurava o bacamarte na mão, Francisco se lembrava do rosto do seu velho bisavô dizendo tais e tais coisas.

“Velho bruxo, sabia muito bem que o extraordinário iria me cercar por todos os lados”, pensou Francisco, enquanto a voz de seu avô entrava em seu ouvido como um vento. Ele sentiu uma estranha fragrância de rosas invadindo a casa. Voltou para a sala e encontrou Amanda dando um novo suspiro que trouxe para a casa centenas de garças e pelicanos. Eduarda dava batidinhas suaves nas costas de Amanda, como que para acalmá-la.

 O que houve? – perguntou Francisco colocando o bacamarte na mesa.

Sua esposa subiu até o quarto onde está Roberto, para ver se ele havia acordado, disse Amanda.

E ele acordou? É preciso ter esperanças, disse Francisco quase num sussurro inaudível.

- Não, Francisco, ele não acordou – gritou Amanda. – Nem com todos os ruídos que esses mil demônios fazem ali fora ele não acorda. Ele não acorda com nada. Estou cansada de ter esperanças. Não quero ter esperança nenhuma. Esperança era o nome da filha que eu sempre quis ter e nunca vou ter porque não é o meu sonho ser a mãe de uma pessoa que vá dormir para todo o sempre. É assim com a minha família, Francisco, você bem sabe disso: meu avô, meu pai, e agora meu irmão. Todos dormem. Todos se vão para a terra do sono e não se levantam. E as mulheres, nós mulheres, sofremos por eles. Por que eles são a carne da nossa carne e o sangue do nosso sangue.

 

Posso ir chamar um comprador de sonhos, disse Eduarda, eles são pessoas boas no comércio, falam por ai que é por causa do sangue semita misturado com o sangue grego; eu tenho minhas dúvidas, só conheço um que é sábio como uma coruja e esperto como uma raposa. Quem sabe pode ajudar...

Nunca gostei de raposas, disse Francisco, é melhor deixarmos o tempo resolver essa questão. Mesmo que durem mais três mil anos. Já vi velhos errantes passarem por aqui nessas bandas com sacolas cheias de ouro e diamantes. É só uma questão de tempo e matemática.

 

 Amanda levantou um suspiro que estremeceu não só a casa e a rua, toda a cidade estremeceu dentro de seu suspiro. Um grande trovão chocalhou a prefeitura onde o gordo prefeito estava sentado comendo um baiacu vivo com uma esponja em forma de garfo e faca.

- O que foi isso, o que foi isso, Marieta? – perguntou o prefeito para Marieta, sua secretaria que parecia um palito de fósforo com sete dedos nas mãos de tão rápida que digitava no computador os seus nadas em brancos.

- É a mulher que estava suspirando por causa do irmão que continua dormindo – disse Marieta com sua voz de ganso em grasnados lentos.

- Aquele que dormiu por muito tempo? É esse? – perguntou o prefeito novamente, antes de abrir sua boca e engolir de uma só vez o baiacu entre suas mandíbulas.

- É esse mesmo prefeito – disse Marieta.

- E o que a prefeitura pode fazer para ajudar essa coitada? – perguntou o prefeito com uma gargalhada, como se já soubesse a resposta da secretária.

A secretaria tirou o búfalo que estava segurando sua pasta com as mãos cheias de pelos negros e antes de responder olhou a lâmpada que parecia estar sendo penetrada por uma orgia errante de duendes eletrônicos.

- A prefeitura não pode fazer nada – disse Marieta. – Não temos verbas para ajuda-los. Só para nos ajudar!

 

“Se todos esses suspiros pudesse acordar esse coitado infeliz”, pensou Francisco serenamente, olhando a rua cheia de jovens e motos e carros. Viu que um garoto de quatorze anos se assemelhava muito com Roberto, pois ele também tinha nariz aduncado, olhos negros perspicazes, movimentos ágeis com os pés em forma de ovelhas e chifres de faunos nos tufos escuros e loiros da cabeça.

Eduarda já tinha ido embora, e o relógio da sala estava em um silêncio de túmulo e dias antigos. Uma chuva serena não fez espantar os meninos e meninas que se agitavam como cotovias na frente da rua. “Claro que ele vai despertar, mais não é a hora, nem o dia, nem o momento”, pensou Francisco. Amanda estava dormindo como uma sonambula há três mil dias. Seu irmão não estava morto, apenas dormia o sono dos justos. Francisco guardou o bacamarte do bisavô cigano no porão. “Velho bruxou” pensou balançando a cabeça como um dinossauro com sono. De novo enfiou a cara larga e vermelha pela janela aberta. Seus olhos azulados faiscaram com a passagem do vento coberto de cobres e carregado de um odor de urina. Viu que todas as estrelas brancas do mapa astral estavam intactas e continuavam no mesmo lugar. Antes de fechar a janela Francisco deu um largo suspiro, que fez o mar arrepiar seus braços titânicos de água.

 Depois disso foi dormir com medo de nunca mais acordar, assim como Roberto.

 

Fim

 

 

 

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