domingo, 27 de dezembro de 2020

A CAVALA - conto

 

A CAVALA

 

              Em dezoito de agosto a chuva caia calma e suave pelos telhados das casas do Norte. As pessoas iam para os mercados e voltavam felizes por terem nas sacolas muitas frutas e legumes. Nesse tempo os lobisomens eram raros, e só podiam ser vistos nas matas e florestas do outro lado do rio que cruzava a cidade como uma enorme serpente ondulada. Algumas pessoas do lado direito entre a longa ponte e o ponto das prostitutas e de outras partes do país chamavam a cidade de a Cidade do Rio. O nome da cidade era muito antigo e algumas pessoas velhas e rotas, capazes de se lembrar de até mesmo das coisas mais profundas do oceano diziam que o seu nome verdadeiro significava “Veia de Prata”. A cidade se chamava Altopicoshuypis.

Os mais corajosos aqueles que tinham dentes de ouro na frente de toda a boca se embrenhavam na mata em busca de encontros perigosíssimos. Voltavam contando coisas que arrepiavam os cabelos dos mais covardes, e fazia o dono do bar mais movimentado de Altopicoshuypis pigarrear como que duvidando de tudo o que contavam.

 Dei de cara com um enorme Mapinguari, disse Fulorzinho, que era um caçador experiente. Ele era grande e vermelho, nunca vi uma criatura mais estranha e lenta.

É mesmo? Duvidava o dono do bar, o turco Malamed. Era vermelho e grande?

Isso mesmo foi o que eu acabei de falar, turco. Retorquiu Fulorzinho irritado. Vocês da Turquia não sabem ouvir não?

- Quem tem ouvido escuta. É o que dizia meu pai quando morávamos em Istambul. Mas é difícil acreditarmos em fábulas como essas Fulorzinho.

- Pois o bicho parecia uma preguiça enorme. Devia ter quatro metros de altura, disse Fulorzinho enxugando a boca com um guardanapo em forma de toupeira.

 

     As conversas do bar do turco Malamed giravam em torno de tais acontecimentos. Entre bebidas e comilanças alguns insensatos ousava contar casos de encontros entre eles e os vampiros da região. Poucos ousavam contar sobre os curupiras que andavam na mata, prendendo caçadores para deixarem em paz as pequenas criaturas que lá viviam.

            No pequeno bairro de Boa Esperança, Melquisedeque não levava em consideração nenhuma dessas bravatas. Diziam que ele era igual ao velho turco, por isso não aguentava escutar lendas. As pessoas acenavam a cabeça em reprovação quando Melquisedeque passava, por causa da sua teimosia em negar tudo o que fosse fundamentalmente sobrenatural. O coração de Melquisedeque se punha para fora como um pássaro de ferro, fazendo as moças de seios enormes suspirarem de paixão por ele. Sua esposa já estava grávida e o bebê estava prestes a sair andando da sua barriga quando avistou uma enorme serpente no quintal e tornou a voltar correndo para a proteção do útero da mãe.

 Seu filho vai ser um covarde Melquisedeque, disse Florbela gargalhando de prazer em sentir o bebê novamente chutando sua barriga.

 Ele vai ser macho que nem o pai, respondeu Melquisedeque bufando entre o dente muito branco e sua língua de hipopótamo. E também não vai acreditar nas histórias da carochinha que esse povo sem noção vive repetindo como papagaios no bar do turco.

 

    As noites se tornaram frias e húmidas pela cidade quando aconteceu algo insólito que arrepiou o coração do mais valente. Disseram que Ana Batista, filha do coronel Batista, havia tido um filho com o vaqueiro Jorge Pingão. O vaqueiro que era o mais respeitado empregado do coronel recebeu a benção do patrão para se casar com a menina, que de tão alva conseguia parecer com um urso polar mesmo vivendo em uma terra em que a neve só aparecia quando os anjos faziam questão de derramar caspas pelos orvalhos do campo. O vaqueiro e a menina tiveram um filho. Nessa época o vaqueiro era acostumado a ler livros terríveis de encantamentos, e tinha tido um terrível problema com uma feiticeira que morava do outro lado do rio, entre as árvores. Por causa do maleficio enviado pelas bruxarias de tal bruxa o vaqueiro passou dia sim e dia não a se transformar em um terrível lobisomem de plumagens secas, com a cara de lobo percorrendo a cidade, seus olhos vermelhos espumando como saliva, e sua boca escancarada querendo sangue e sofrimento.

 Tenho certeza que a feiticeira o encantou por causa de alguma coisa que ele fez para ela, disse Maria Chuchu, a maior fofoqueira da cidade.

Deixa de falar bobagens, disse Melquisedeque, estão dizendo que o vaqueiro perdeu uma aposta de jogo e para saudar a dívida com o coronel, seu sogro, teve que fazer um pacto com o Coisa-ruim.

É mesmo? Aguçou os ouvidos na porta da casa Maria Chuchu, que de tão curiosa acabou levando um tiro da asa de um anjo que acabou caindo da Noruega e sem querer caiu em cima de seu telhado, deixando a mulher morta por um milagre de segundos. Essa também foi a opinião de Marieta, aquela menina sempre foi uma grande fofoqueira.

 

Fofoca ou não é preciso tomar cuidado, disse Florbela. Todo mundo sabe que lobisomem gosta de recém-nascido.

Deve ser por isso que seu filho não quer mais sair de dentro de seu útero, não é mesmo? Disse Maria Chuchu, dando uma risadinha salgada de cebola e piscando o olho para Melquisedeque, que virou o rosto para a lua e suspirou fazendo dois alhos saírem de suas narinas.

 

                        Depois que o caso do lobisomem chegou aos ouvidos do dono de um circo perto da cidade vizinha, esse fez questão de levar sua lona e sua trupe circense para a cidade, ganhando algum dinheiro com a vantagem de dizer que o Homem-lobo estava de posse de seu circo, e que com apenas uma moeda de ouro qualquer pessoa fosse jovem, idoso, carente ou rico, poderia ver a criatura e inclusive, poder-lhe-ia atirar-lhe pedras por cima das grades. Melquisedeque chegou até mesmo levar Florbela e seu filho dentro do útero para o circo, apenas para relembrar os momentos em que vira as bailarinas em cima da corda bamba, no tempo em que vivia na Paraíba. Ficou horrorizado com o tratamento que o povo da cidade de Altopicoshuypis estava dando ao Homem-lobo, que mais parecia ser um idoso muito peludo, os dentes da frente todos amolecidos, e ao invés de ter garras suas mãos pareciam lembrar as nadadeiras de uma foca. A cada pedra que o povo lançava nele Melquisedeque balançava a cabeça em sinal de reprovação. “O povo nunca vai escolher Cristo. Sempre vai optar por Barrabás”, pensou para si mesmo, cruzando seus olhos com o do Homem-lobo, que abriu um grande sorriso em sinal de que tinha entendido telepaticamente a frase que Melquisedeque acabará de falar para si.

  Era dezoito de agosto e a chuva parecia estar sentindo um tédio imenso de estar caindo sobre o chão de Altopicoshuypis. Os bruxos que abriam suas tendas e usavam seus turbantes na cabeça estavam sentados agora em frente à Praça Central. Comentavam sobre os últimos acontecimentos na cidade. O aumento dos turistas norte-americanos faziam com que rolos de dólares pudessem ser jogados pelas esquinas. Havia um absurdo movimento de pessoas estranhas por todas as partes.

 

Isso aqui está parecendo à Índia, disse Fulorzinho com o cachimbo na boca.

 

- Graças a Deus por isso – disse Malamud.  

 

                As meninas de menor idade olhavam para a rua com os seus olhinhos de peixe para a rua. Elas estavam completando dezoito e dezenove anos, e viam os rolos de dinheiro que os turistas arremessavam para a rua. O aumento da prostituição foi drástico. A dona do bordel local era uma gorda senhora que se enfeitava com muitas joias nos braços, no pescoço, em cada dedo havia um anel de ouro ou com uma pedra de diamante. Mesmo não se importando com a origem das meninas que permitia usar seu imenso estabelecimento para venderem os corpos, ela tinha esperança de dar uma vida boa e religiosa para a sua filha, Sâmara, que tinha um rosto delicado e uma voz lenta de nuvem. Ficou conhecida em todo Altopicoshuypis a desobediência da filha da alcoviteira, que fez questão de sair para uma festa regada de vinho e orgias por todas as partes, bem do lado Sul da cidade, onde se podiam ver turistas com malas cheias de dinheiro em todo lugar. Ao voltar para a casa Sâmara topou com a cara da mãe com um furor terrível como se acabasse de declarar guerra ao mundo. Depois que deu uma surra de ferro quente na filha, costume dos mais antigos, a severa dona do bordel gritou:

- Não quero mais você na minha casa. Você vai aprender agora o que é ser quenga, sua cara de cavala.

  Em minutos mágicos a menina saiu da casa, não sem antes ter sua cara se transformado em uma cara longa de cavalo, conservando os traços femininos da adolescência no corpo, como se fosse um minotauro. Ao ver no espelho o que tinha acontecido com o seu rosto, Sâmara saiu em disparada sem conseguir pronunciar alguma palavra, apenas gritando em alto som, arrepiando os moradores de Altopicoshuypis: “CAVALA! CAVALA! CAVALA!”.

 

    - Que noite estranha essa – murmurou Melquisedeque, enquanto Florbela fazia uma sopa para ele, que havia acabado de voltar do trabalho.  – Nada de extraordinário acontece nessa cidade!

 

Fim

 

 

 

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