quarta-feira, 29 de outubro de 2025
terça-feira, 28 de outubro de 2025
O Despertar da Espada Frontal
Ester não era uma criança de sonhos grandiosos, mas sim de silêncios longos e paciência. Seus dez anos eram marcados mais pelos livros empoeirados da biblioteca de sua casa e o ranger da tábua solta perto da lareira do que por brincadeiras sob o sol. A casa, uma relíquia vitoriana com cheiro de cedro e tempo parado, guardava no seu hall principal um relógio de pêndulo tão antigo que o latão da moldura parecia ter absorvido a luz e a devolvia como uma névoa sombria. Era exatamente ao lado daquele relógio, numa terça-feira chuvosa, que o mundo de Ester se rasgou.
O sino da meia-noite tocou, mas não com o som oco e familiar. Foi um gongo, profundo e vibrante, que sacudiu a poeira das vigas. Ester, que tentava terminar um bordado difícil à luz bruxuleante da vela, sentiu um frio cortar o ar. O pêndulo do relógio parou com um clique seco, e a moldura de madeira, onde eram entalhadas figuras de carvalhos e videiras, começou a girar lentamente, não como uma porta, mas como uma válvula que se abria para o nada. De lá, escorregou para a realidade da sala um par de cascos de cabra, negros e polidos.
Em seguida, surgiu a figura completa. Era um Fauno. Não aqueles alegres e dançantes das lendas, mas uma criatura de ombros largos e uma pelagem castanha escura que parecia permanentemente molhada pela névoa. Seus olhos, de um âmbar pálido, eram cheios de uma tristeza que parecia mais antiga do que a própria Ester. Ele vestia uma túnica de couro gasto e, na mão, segurava um cajado de azevinho que gotejava uma seiva escura. O cheiro de pinho, terra molhada e algo mais forte, como metal velho, preencheu o hall.
“Ester da Casa dos Murmúrios,” a voz do Fauno, rouca como folhas secas arrastadas, ecoou. “Eu sou Phaelan, da Casa da Folhagem Eterna. Eu venho em nome de Upiter.” Ele não pediu permissão, nem fez um discurso. Simplesmente se inclinou e a tirou gentilmente do banquinho, os cascos batendo com firmeza na madeira do chão. “O tempo acabou, menina. As árvores choram, os rios secam, e a Noite de Pullpol engoliu a luz do sol de Upiter. Você deve vir.”
Ester não gritou, nem fugiu. Olhou para a escuridão úmida da passagem aberta atrás do relógio, onde estrelas que ela nunca vira piscavam em tons de azul-ferro. Sua vida toda lendo livros de histórias a tinha preparado para este momento de forma estranha: ela não estava assustada, mas profundamente séria. “Pullpol,” ela sussurrou, o nome soando pesado em seus lábios. “O Feiticeiro dos Ursos e do Fogo Dracônico. Ele já está no trono?”
Phaelan suspirou, o cheiro de pinho se intensificando. “Ele não está no trono, criança. Ele é o trono. Há cinco anos, ele teceu uma malha de escuridão tão densa que até o Grande Sol de Éter parece uma vela de sebo. Ele comanda as Criaturas da Sombra, os Faunos-Traidores, e até as Árvores Falantes estão presas em um silêncio petrificado, incapazes de respirar seus nomes. O poder dele reside na metamorfose – ele se transforma na Fúria de Urso para esmagar exércitos e no Vento Dracônico para queimar florestas.”
O Fauno deu um passo, puxando-a para a beira do portal. O ar lá cheirava a eletricidade e a uma doçura estranha e doentia. “Somente a Lenda da Espada Frontal, a lâmina forjada não de aço, mas de puro pensamento, pode perfurar o coração de Pullpol, não importa a forma que ele adote. Dizem que somente uma criança, destituída de medo e de pretensão, pode empunhá-la. É você, Ester. A última esperança. Pegue-a.”
Ele apontou com o cajado para a mesa de bordado de Ester. Sobre os fios e agulhas, surgiu uma espada curta, mais longa que um punhal, mas menor que uma espada de cavaleiro. Sua lâmina não era polida, mas fosca, e estranhamente, sua forma lembrava o formato de um losango ligeiramente alongado, terminando em uma ponta fina e letal. Não tinha guarda, e o punho era simples e envolto em couro de cervo. Ela emanava um brilho tênue, como o reflexo da lua na água gelada. Ester a pegou, sentindo que a lâmina não pesava absolutamente nada, mas vibrava com uma energia fria em sua mão.
No momento em que os dedos de Ester envolveram o punho da Espada Frontal, o Fauno Phaelan a empurrou para a escuridão cintilante. Eles caíram, não através do espaço, mas através de um silêncio úmido, e a aterrissagem foi abrupta. Ester se viu em uma clareira de musgo cinzento em Upiter. O céu era de um roxo doentio, e onde deveria haver sol, havia apenas uma mancha de névoa negra pulsante – a Sombra de Pullpol.
A jornada através das terras moribundas foi um calvário silencioso. Eles rastejaram por florestas de Salgueiros-Cripta, cujas folhas choravam um orvalho pegajoso sob o comando do feiticeiro. Viram Faunos-Prisioneiros, acorrentados em poços de alcatrão, e Ursos das Trevas, outrora nobres feras, agora transformados em bestas cegas e famintas com pelo coberto de espinhos de gelo. Phaelan guiava Ester com a determinação de quem já perdeu tudo, o cajado de azevinho silenciosamente matando as Criaturas-Sombra menores que se atreviam a se aproximar.
Finalmente, chegaram à Fortaleza de Obsidian. O covil de Pullpol era uma montanha de pedra negra, coroada por fumaça de enxofre. Na sala do trono, Pullpol esperava. Ele não estava vestido com mantos de feiticeiro, mas com uma armadura feita de escamas de dragão cristalizadas, e seu rosto era severo, com olhos de quartzo frio. Ele estava sentado em um trono esculpido a partir da medula petrificada de uma Árvore-Mãe.
“Ah, o último Fauno, e a Criança da Lenda Tola,” Pullpol zombou, sua voz era um som de pedra se partindo. “Eu sou o Mestre da Forma, Phaelan. Eu posso ser a terra para esmagá-la, ou o fogo para queimá-la. Seu brinquedo de luz não pode me tocar.” Ele se levantou, a sombra de seu corpo crescendo e se distorcendo.
Phaelan soltou um rugido de dor e honra, avançando com o cajado para distrair o Feiticeiro. Mas Pullpol não se importou com ele. Com um grito gutural, ele se dobrou e se transformou. Ossos estalaram, a armadura se quebrou, e a massa se expandiu: ele se tornou um Urso-Colossal, maior que uma casa, com presas de ferro e garras que poderiam rasgar a rocha. O Fauno foi varrido para o canto da sala como um boneco de pano, ferido e quase inconsciente.
Ester, no entanto, permaneceu imóvel. A Espada Frontal em sua mão parecia ter sumido, pois ela não a sentia, mas a via. O Urso-Colossal de Pullpol rugiu, e o chão tremeu. Ele avançou, a boca aberta, revelando uma escuridão sem fim na garganta. Ester não hesitou. Ela não olhou para a garra gigantesca, nem para a fúria nos olhos da fera. Ela pensou na Espada Frontal, pensou em sua forma, e pensou na palavra que Phaelan usara: penetrar.
No exato momento em que o Urso estava prestes a cair sobre ela, a menina pulou para a frente, não para trás. Ela não atacou o corpo, mas o único ponto vulnerável, o centro do poder. A Espada Frontal, movida por sua intenção pura e a falta de medo, voou da sua mão, girando uma vez no ar. A lâmina não cortou a pele da fera; ela atravessou o ar, o éter, e perfurou o centro da testa do Urso-Colossal, onde o pensamento se encontrava com a forma.
O rugido cessou imediatamente. O Urso não caiu; ele desmoronou em uma nuvem de fumaça fétida e cinzas. No chão, onde a espada havia fincado, jazia o corpo inerte de Pullpol, novamente na forma humana, sua testa marcada por uma linha brilhante de puro pensamento onde a Espada Frontal se enterrou. O Feiticeiro das Metamorfoses havia sido derrotado, não pela força, mas pela singularidade da intenção.
A névoa roxa no céu de Upiter começou a se dissipar, revelando a luz dourada e calorosa do Grande Sol de Éter. Os Faunos-Prisioneiros, onde quer que estivessem, sentiram o peso das trevas ser levantado. Phaelan, mancando, se levantou e olhou para Ester, a espada de volta à sua mão.
“Você conseguiu,” ele sussurrou, e em seus olhos, pela primeira vez, a tristeza antiga foi substituída por um lampejo de gratidão. Ester, exausta, segurou a espada, sentindo o retorno do peso leve e frio da lâmina. A aventura havia acabado. Upiter estava salva e, agora, o Fauno a levaria para casa, de volta ao ranger das tábuas e ao cheiro de cedro, para que a menina, agora uma heroína, pudesse novamente bordar à luz da vela, guardando o segredo da Espada Frontal em seu coração.
As sombras de Upiter
1. Ester acordou naquela manhã com a sensação de que o mundo estava mais pesado do que de costume. O relógio antigo na sala de estar, herdado de sua avó, marcava horas que pareciam arrastar-se como se o tempo inteiro estivesse preso em mel viscoso. Ela esfregou os olhos e, por um instante, achou ter visto sombras dançando atrás do vidro empoeirado do relógio, sombras que não pertenciam à sua casa nem à sua realidade cotidiana.
2. Foi então que o fauno surgiu. Não entrou pela porta, nem pelo teto; ele saiu de trás do relógio, como se fosse parte de suas engrenagens, com cascos leves que mal tocavam o chão de madeira rangente. Seus olhos eram dourados, luminosos, e sua voz tinha a ressonância de folhas secas e vento noturno. “Ester,” disse ele, “o mundo que conheces está em perigo. Tu deves vir comigo.”
3. Ester sentiu o coração saltar na garganta. Naquele instante, a casa, o relógio, até mesmo a luz pálida que entrava pela janela, parecia ter diminuído diante da presença do fauno. Ele se apresentou como Lyros, guardião das passagens entre os mundos, e falou sobre Upiter, um lugar distante e vasto, governado por um feiticeiro que não conhecia piedade.
4. Pullpol, disse Lyros, era mais do que um feiticeiro. Ele tinha a habilidade de assumir a forma de urso ou dragão, e, em qualquer de suas formas, espalhava terror entre os animais, os faunos e as árvores falantes. As florestas, outrora cheias de risos e murmúrios de magia, agora gritavam de dor e medo.
5. “Por que eu?” perguntou Ester, a voz tremendo. “Sou apenas uma menina.”
Lyros inclinou a cabeça e sorriu com uma tristeza infinita. “Porque, Ester, tu tens coragem suficiente para carregar o peso que os outros temem. E também, porque o tempo de espera terminou.”
6. Sem aviso, o fauno abriu uma passagem por entre as engrenagens do relógio. Uma luz dourada inundou o cômodo, e Ester sentiu seu corpo ser puxado para dentro de algo maior, algo que era simultaneamente quente e gelado, sólido e fluido, como se o próprio espaço estivesse respirando ao seu redor.
7. Quando aterrissaram, a paisagem diante de Ester era de uma beleza ameaçadora. O céu de Upiter era violeta, carregado de nuvens que pareciam feitas de fumaça e vidro quebrado. Árvores de troncos retorcidos estendiam galhos como braços suplicantes, e faunos escondiam-se à sombra de pedras enormes, olhando com desconfiança e medo.
8. Lyros explicou que Pullpol havia se alimentado da magia do medo. Os animais haviam perdido sua voz, os faunos sua liberdade, e as árvores falantes sussurravam em murmúrios quebrados que ninguém mais podia entender. “Se ele não for detido,” disse Lyros, “Upiter será um reino de trevas eternas.”
9. Ester sentiu a pressão de uma responsabilidade impossível. Cada passo adiante parecia pesar toneladas. Mas havia também algo dentro dela — um fogo estranho e silencioso — que sussurrava coragem. Lyros percebeu e inclinou a cabeça em aprovação.
10. A viagem até a fortaleza de Pullpol foi marcada por encontros estranhos e perigosos. Primeiro, uma manada de lobos de olhos vermelhos, amaldiçoados pelo feiticeiro, cercou-os em silêncio mortal. Ester levantou as mãos instintivamente, e, de algum modo, uma lâmina de luz cristalina surgiu de seus dedos, afastando os lobos sem feri-los. Lyros sorriu com aprovação silenciosa.
11. Mais adiante, encontraram um bosque onde as árvores falantes, enfraquecidas, sussurravam palavras fragmentadas. “A espada… frontal… destino…” Murmuravam sem parar. Ester compreendeu que a espada não seria uma arma comum. Havia um poder ligado à verdade e à coragem, que só poderia ser empunhado por quem não temia enfrentar a própria sombra.
12. Finalmente, chegaram aos portões da fortaleza de Pullpol. Um castelo negro, em forma de dragão empalhado, estendia garras de pedra sobre a terra amaldiçoada. Cada pedra parecia pulsar com magia sombria. Ester sentiu o vento carregado de sussurros e viu os olhos do feiticeiro brilhando no alto das torres, alternando entre a forma de urso e dragão.
13. Pullpol desceu, primeiro em forma de urso, colossal, o chão tremendo sob seus passos. Seus olhos, vermelhos como brasas, fixaram-se em Ester. “Então és tu,” rosnou, a voz reverberando no ar como trovão. “A menina que ousa desafiar minha sombra.”
14. Ester ergueu a espada frontal, que havia surgido ao toque de suas mãos, e sentiu um poder estranho correr por seus braços, firme e pulsante. Ela não sabia de onde vinha, mas sabia que precisava confiar nele.
15. O combate começou. Pullpol atacava com garras que rasgavam a pedra, alternando-se entre urso e dragão, cuspindo fogo e vento. Cada golpe exigia de Ester não apenas força, mas inteligência, paciência e coragem. Lyros observava de longe, murmurando instruções como folhas sopradas pelo vento.
16. A batalha durou horas, e a terra em torno deles parecia chorar. Árvores retorcidas gemiam, e faunos escondidos observavam, temendo mas também esperando. Ester descobriu que cada ataque de Pullpol era previsível se ela conseguisse ouvir o ritmo de sua respiração, o estalo de suas garras e o bater das asas dracônicas.
17. Finalmente, num instante de clareza, Ester conseguiu encontrar o ponto vulnerável. Quando Pullpol se transformou em dragão, levantando-se para cuspir fogo, ela saltou, girando a espada frontal como se fosse uma extensão de seu próprio braço, e cravou a lâmina diretamente no peito do feiticeiro.
18. Um rugido ecoou que parecia atravessar mundos. Pullpol transformou-se em sombras que se espalharam pelo vento antes de desaparecerem por completo. A escuridão que envolvia Upiter começou a se dissipar, como se o sol finalmente tivesse decidido nascer.
19. As árvores suspiraram em alívio, recuperando lentamente a cor e a voz. Os faunos saíram de seus esconderijos, olhando Ester com reverência e admiração silenciosa. Os animais voltaram a caminhar livres, cada um carregando um fragmento de história contada apenas para quem tivesse ouvido seu sussurro verdadeiro.
20. Lyros aproximou-se, olhos dourados brilhando como faróis de luz noturna. “Ester,” disse ele, “tu carregaste não apenas uma espada, mas a esperança de um mundo inteiro. Upiter se curará, mas não se esquecerá de ti.”
21. Ester sentiu o peso da responsabilidade se dissolver, substituído por uma estranha leveza. Ela sorriu, pela primeira vez em muitos dias, e soube que, mesmo sendo apenas uma menina, havia tocado o coração de um mundo inteiro.
22. Lyros a guiou de volta ao relógio, agora tranquilo e silencioso, como se nada tivesse acontecido. “O tempo,” disse ele, “segue, mas algumas histórias são eternas.”
23. Quando Ester atravessou a passagem, sua sala parecia menor, mais comum, mas ainda havia uma lembrança palpável de Upiter, como se o vento das árvores falantes tivesse seguido cada molécula de ar consigo.
24. Ela guardou a espada frontal na caixa de sua avó, onde não seria esquecida, mas também não seria usada sem necessidade. Ela sabia que Pullpol podia ter sido derrotado, mas o mundo guardava perigos que talvez só pudessem ser enfrentados por alguém como ela.
25. Dias depois, as pessoas na vizinhança notaram mudanças sutis: gatos que se comportavam estranhamente inteligentes, árvores que pareciam se inclinar de maneira respeitosa quando Ester passava, e até o velho relógio, que nunca mais perdeu tempo.
26. Ester passou a ouvir sussurros noturnos, mas não de medo. Eram sussurros de agradecimento, de histórias de animais e faunos, contadas apenas para quem podia ouvir sem julgamento.
27. A coragem que ela aprendera em Upiter começou a se manifestar de formas inesperadas: na escola, ao enfrentar injustiças; em casa, ao cuidar de quem precisava; e em sua própria mente, ao sonhar com mundos que não existiam, mas que poderiam, de algum modo, tornar-se reais.
28. Lyros aparecia esporadicamente, sempre do jeito que surgira, silencioso, dourado e enigmático, lembrando-lhe que as portas entre os mundos nunca estavam completamente fechadas.
29. Ester começou a escrever suas próprias histórias sobre Upiter, sobre Pullpol e sobre a espada frontal. Cada palavra carregava a memória do rugido do dragão, do medo e da coragem, de uma menina que se tornou gigante aos olhos de todos os seres que ousaram crer em magia.
30. E embora a vida cotidiana retomasse sua rotina, havia momentos em que a realidade parecia tremer levemente, lembrando-a de que a aventura nunca terminava completamente.
31. Um dia, ao olhar para o relógio, ela percebeu uma sombra se movendo atrás do vidro. Não era medo, era promessa. Upiter estava chamando, e ela, Ester, sabia que atenderia sempre que fosse preciso.
32. Ela aprendeu que coragem não era ausência de medo, mas a capacidade de avançar apesar dele. Que o verdadeiro poder não estava na espada, mas na decisão de empunhá-la quando o mundo dependia disso.
33. E assim, enquanto as folhas das árvores falantes dançavam na brisa, e os faunos sussurravam histórias de esperança, Ester crescia não apenas como menina, mas como guardiã de um mundo que poucos ousariam imaginar.
34. Pullpol podia ter sido derrotado, mas as lições que ele deixara — sobre sombra, medo e ambição — permaneciam, lembrando Ester e todos em Upiter que o equilíbrio entre luz e escuridão é delicado, frágil e constantemente testado.
35. E naquela noite, enquanto o relógio marcava horas que já não pareciam pesadas, Ester sorriu sozinha, sabendo que, em algum lugar, Lyros observava com orgulho, e que ela, a menina que havia atravessado mundos e derrotado dragões, estava pronta para qualquer desafio que a vida — ou a magia — ainda pudesse trazer.
O Fauno e a Luz dos Filhos dos Deuses
Ao sair da casa, a floresta o abraçou,
mas algo mais brilhou entre as árvores —
uma luz intensa, pura, impossível de tocar,
que não vinha do sol, nem da lua,
mas de uma presença antiga, eterna.
O fauno parou, os pés fendidos tremendo,
os olhos arregalados como folhas ao vento.
A luz dançava sobre o musgo, sobre o riacho,
como se risos e cantos ancestrais tivessem se tornado ouro.
“Quem sois vós, filhos dos deuses?”
sussurrou, quase sem voz.
E a luz respondeu não com palavras,
mas com uma alegria que corria pelas veias da terra,
uma música invisível que só os corações puros podiam ouvir.
O fauno sentiu o peso da solidão derreter,
sentiu que seu riso podia finalmente voar,
que sua flauta poderia tocar não só para deuses,
mas para todos os seres da floresta e além.
E no centro daquela claridade,
como uma estrela que caminha,
um menino de olhos radiantes,
alegoria dos filhos mais antigos e amáveis,
lhe ofereceu o dom do amor sem fim,
da alegria que não se apaga,
da bondade que é raiz de tudo o que vive.
O fauno dançou, os pés fendidos riscando o chão,
tocou sua flauta com um fervor novo,
e o bosque inteiro — árvores, flores, riachos —
respirou e riu junto dele,
como se o mundo tivesse finalmente entendido
que até a criatura mais tímida
pode encontrar a luz que salva.
O Fauno e a Menina Ruiva
Entre troncos e névoa antiga,
onde o orvalho fala em segredo,
andava um fauno de alma antiga,
de passos leves e olhar de medo.
Viu então, sob a chuva fina,
uma menina — chama e luar,
cabelos como folhas de outono,
olhos que sabiam sonhar.
“Levarei comigo esta chama”,
pensou o fauno, tímido e só.
“Será minha luz, minha alma,
meu consolo, meu pólen, meu pó.”
Mas quando a menina chorou,
as lágrimas feriram o chão;
o fauno sentiu — como ferida —
um eco em seu próprio coração.
“Não posso, pequena, não devo”,
disse ele, pondo-a de pé.
“Volta aos teus irmãos e tua casa,
onde o amor te espera em fé.”
E a menina, pura e calma,
sorriu-lhe como o sol nascente.
“Vem, bom fauno, entra comigo,
toma chá, sê meu par, sê contente.”
E na lareira o fogo dançava,
como os deuses da mata em prece;
o fauno riu, e seus pés fendidos
pisaram o chão com leveza e prece.
A flauta soou, doce e clara,
entre os ecos do bosque em flor;
e os deuses antigos, invisíveis,
bendiziam o fauno e seu amor.
A Sexualidade
A sexualidade humana — pensava ele — não era senão um mecanismo disfarçado de mistério. As pessoas falavam de amor, de paixão, de desejo, como se fossem realidades distintas; mas, no fundo, tudo se reduzia a uma inquietação biológica, uma necessidade de se afirmar através do corpo, como um animal que rosna para provar que existe. Ela, deitada ao seu lado, respirava com o mesmo tédio de quem cumpre um dever. O quarto estava cheio de um silêncio viscoso, o tipo de silêncio que se instala depois do prazer, quando o corpo já se separou da alma e ambos se olham, estranhos, como cúmplices de um crime sem motivo.
Ele a observava — não com ternura, mas com curiosidade. Queria entender o que se escondia naquele corpo: se era apenas carne ou se havia algo mais, uma sombra, um eco, uma necessidade espiritual travestida de instinto. Mas a resposta nunca vinha. A sexualidade, dizia ele a si mesmo, é a mais humana das misérias. Mistura o que temos de mais físico com o que fingimos ter de mais elevado. Um gesto pode ser ao mesmo tempo sagrado e ridículo, sublime e grotesco.
No fundo, o desejo não é amor — é apenas a vontade de interromper a solidão por alguns minutos. Depois, tudo volta ao seu lugar: o corpo, o silêncio, a náusea. E, como sempre, a vida continua — suada, confusa, sem redenção.
O Trapo do Coração
poema existencialista
Não tenho nada mais pra dizer.
O trapo do coração morreu —
afogado em si mesmo,
num mar que não existe.
Sou apenas uma bomba sem lógica,
viva,
osso,
eco do que um dia foi canto.
A alma quis ser águia,
mas restou pena suja no chão.
O tempo, esse velho ferreiro,
bateu demais no ferro da esperança.
Agora sou ruína —
um altar vazio
onde nenhum deus quer dormir.
E ainda assim,
há um sussurro,
um lampejo,
um resto de chama
que insiste em me chamar de homem.
Mas o coração?
Ah, esse trapo —
já se foi.
E o que resta pulsa,
não por amor,
mas por costume.
Há um cheiro de morte no homem
Há um cheiro de morte no homem,
mas isso deve ser a vida, essa miserável.
Ele caminha com passos tortos,
carregando o peso de uma infância
que nunca terminou.
As mãos —
já não seguram nada,
mas ainda tremem,
como se algo pudesse voltar.
Ele fala com a terra,
com o cão morto,
com a sombra que o segue
mesmo quando não há sol.
O corpo apodrece devagar,
em silêncio,
como uma desculpa que ninguém escuta.
E ainda assim —
ele respira.
Respira o ar
como quem aceita a sentença.
Talvez seja isso o milagre:
chamar de “vida”
o que fede,
o que dói,
o que insiste.
Há um cheiro de morte no homem,
mas isso deve ser a vida,
essa miserável —
essa que nunca aprende
a morrer direito.
POR QUÊ?
(pausa)
Há uma cadeira.
Vazia.
Sempre esteve.
Um homem pergunta —
não a outro homem,
mas ao ar:
“por quê?”
(pausa longa)
O ar não responde.
Nunca responde.
Mas o homem continua,
como se o silêncio fosse um convite.
(pausa)
Nada é o bastante.
Nada quer ser.
E ainda assim,
insistimos em acordar,
em comer,
em fingir que há motivo.
(pausa curta)
A vida —
essa palavra enorme,
cheia de letras que não significam nada.
(pausa)
O amor?
Um erro com perfume.
A fé?
Uma cortina fechada num quarto vazio.
(pausa longa)
E ainda perguntamos.
Como tolos diante do abismo,
esperando que o abismo tenha piedade
ou voz.
(pausa)
Mas o abismo só pisca.
E volta a dormir.
A Menina Nórdica
Está frio.
Sempre esteve.
Mas agora o frio é uma casa —
e eu, o último móvel.
Vejo o teto.
Ou o que resta dele.
Cinza.
Como tudo o que algum dia quis ser cor.
A neve cai dentro de mim.
Devagar.
Tão devagar que penso:
talvez ainda viva.
Talvez.
O corpo pesa.
Mas o pensamento…
ah, esse rasteja.
Rasteja sobre os ossos
como uma sombra procurando o dono.
O que foi isto tudo?
Dias empilhados,
como lenha molhada —
nunca acenderam.
Riram de mim, às vezes.
Outras, me amaram.
Ou fingiram bem.
O amor também se finge.
E o fingimento é o que sobra.
Escuto o silêncio da minha própria respiração.
Que som estranho.
Um som que não quer existir.
O céu —
é só uma parede mais alta.
E Deus,
um eco mal ensaiado.
Penso:
não há sentido.
E isso me consola.
A insignificância —
é o único abrigo que resta
quando até o frio se cansa.
O Vazio da Noite
Nada vem.
Nem vento, nem voz.
Só o som do que não soa.
O chão respira,
lento,
como se esperasse o passo que nunca chega.
A lua?
Uma lâmpada cega,
pendurada num fio de esquecimento.
Falo, talvez.
Ou penso que falo.
As palavras caem,
sem eco,
sem chão.
Havia um corpo aqui —
ou a lembrança de um corpo.
Move-se?
Não.
Mas ainda pesa.
O tempo —
esse velho distraído —
repete o mesmo segundo
até que o segundo morre.
E o nada se torna hábito.
E o hábito, oração.
No fim,
nem noite,
nem eu.
Só o intervalo entre dois silêncios.
Senegal
para j.
Dizem que há terras que nascem do mar,
mas o Senegal nasceu da luz.
Não a luz que cega, mas a que acolhe,
a que tem a cor do mel e do tempo,
a que não se explica, apenas se sente
quando o sol toca a pele e a transforma em casa.
O povo do Senegal caminha como se a terra
o reconhecesse a cada passo,
como se o chão o saudasse
com a doçura de quem o viu crescer.
São negros como o primeiro sonho do mundo,
negros como o instante em que Deus pensou o homem
e sorriu diante da beleza que acabava de criar.
Há neles uma calma antiga,
uma alegria que não se compra,
uma bondade que vem da alma e do mar.
Porque o Senegal é também o mar,
com suas canoas que cortam o horizonte
como quem abre o dia com as próprias mãos.
E o mundo, tão esquecido de si,
deveria aprender com o Senegal —
essa lição de humanidade,
de pureza, de riso,
de doçura que não precisa de motivo.
Se a beleza tem origem, talvez seja ali,
onde a pele é poema,
onde o gesto é canção,
onde cada rosto parece dizer:
a vida é dura, sim,
mas ainda é bela.
Pardon
Perdão
Há cinzas que ainda respiram,
sob as pedras do mundo.
Nelas, uma voz — não de culpa,
mas de eternidade.
Os filhos de Israel caminham,
não sobre a terra,
mas sobre a lembrança do pó.
E mesmo assim, levantam o pão,
partem-no, e oferecem.
Quem pode medir o perdão?
É um rio que nasce no deserto,
uma luz que não pergunta quem feriu,
mas quem ainda pode amar.
Os povos dormem —
e o perdão vela.
Silencioso como o vento sobre o muro,
onde um nome se apaga
para que o outro seja escrito.
O perdão é o milagre mais antigo:
um coração que se dobra
e não se quebra.
E Israel, cansado e luminoso,
ergue a poeira e diz —
não ao esquecimento,
mas à vida.
Pardon
Il y a des cendres qui respirent encore,
sous les pierres du monde.
En elles, une voix – non pas celle de la culpabilité,
mais celle de l'éternité.
Les enfants d'Israël marchent,
non pas sur la terre,
mais sur le souvenir de la poussière.
Et pourtant, ils lèvent le pain,
le rompent et l'offrent.
Qui peut mesurer le pardon ?
C'est un fleuve qui jaillit du désert,
une lumière qui ne demande pas qui a blessé,
mais qui peut encore aimer.
Le peuple dort,
et le pardon veille.
Silencieux comme le vent sur le mur,
où un nom s'efface
pour qu'un autre puisse être écrit.
Le pardon est le plus ancien miracle :
un cœur qui se plie
et ne se brise pas.
Et Israël, fatigué et lumineux,
soulève la poussière et dit :
non pas à l'oubli,
mais à la vie.
A França est à Luz
A França está na Luz
As ondas, ó Sena, a corrente profunda e calma, refletem os postes de luz no céu azul, e as pontes são as arestas de um arco esquecido.É o toque verde do campo vermelho das canoas, é a turbulência das faixas rasgadas que carregamos de Paris, um imenso lençol de anarquia.
Na Luz, garoto. Não a lâmpada pálida dos deuses, mas o clarão febril que nos irrita os olhos, a claridade vibrante do ópio e do desejo inconfesso.
É no fim dos bulevares de mármore que Multidão é um animal meu, buscando a Taverna Éterna, ou o canto da liberdade dos nossos beijos.
Liberdade! Nome de uma mulher, rosto de cobre antigo, que bebeu o vinho novo e as coisas salivantes da Revolução. Por isso os poetas são verdadeiros mendigos, e os mendigos são reais por um instante.
Na França, é a nossa canção que explode no ruído da Europa, na ferida aberta por Alma que grita para ver. Por ser.
No futuro, há um navio seguro, sem rastros, avançando sobre as ondas de um mar desconhecido. E todas as manhãs, trago a promessa de um novo navio, e eu te verei, Epifania.
A França est à Luz
Les vagues, O Sena, le courant profond et calme, reflètent les lampadaires dans le ciel bleu, et les ponts sont les bords d'une arche esquecidale.
C'est la touche verte du champ vermelha des canhoés, c'est la turbulence des bandes déchirées que nous portons de Paris, un immense drap d'anarchie.
In Luz, garoto. Non pas la pâle lampe des dieux, mais l'éclat fiévreux qui irrite nos yeux, la clarté vibrante de l'opium et du désir inavoué.
C'est au bout des boulevards de marbre que Multidão est un animal à moi, cherchant l'Éterna Taverna, ou le chant de liberté de nos becos.
Liberté ! Nom d'une femme, rosto de cobre antique, qui but le vin nouveau et les choses à saliver de la Révolution. C'est pourquoi les poètes sont de véritables mendiants, et les mendiants sont réels d'un instant.
En France, c'est notre chant qui explose dans le bruit de l'Europe, dans la blessure ouverte par Alma qui hurle pour voir. Par ser.
Dans l'avenir, il y a un navire sûr, sans trace, avançant sur les vagues d'une mer inédite. Et chaque matin, j'apporte la promesse d'un nouveau navire, et je te verrai, Épiphanie.




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