O CHIFRE DO
ÚNICORNIO
-Conto fantástico-
Se Sara
soubesse que eu estava carregando na bolsa de couro que fora presente de meu
avô paterno, Jorge Abrãm, o chifre de um unicórnio morto há uma semana no Irã,
ela não teria me feito as perguntas que me fez ao me ver entrando correndo
exausto para dentro de casa. “Por que toda essa pressa, primo”? Quero usar o
banheiro o mais rápido possível, disse, mesmo certo que ela não aceitaria a
minha resposta ríspida. Desde que tínhamos uma idade adequada para frequentar a
escola Sara era a mais rápida e a mais atrevida das meninas Como tínhamos a
mesma idade e éramos primos acabamos estudando na mesma escola. Minhas calças coladas e minhas
camisetas de desenho de dinossauros eram motivos de chacota e risos por parte
das outras crianças Claro que isso motivava a minha prima a me defender.
Crescemos juntos. Até a
época da descoberta do sexo pela minha parte (claro que ela já tinha
experimentado sua primeira relação sexual), jamais fui capaz de vê-la com
outros olhos, a não ser os olhos de um inofensivo primo que dependia da prima
para se defender de certos valentões.
Minha tia, Tereza, teve
quatro filhas. Isso do segundo marido, porque com o primeiro marido ela teve
apenas Sara. O pai de Sara teve uma morte perturbante, ainda quando morava com
tia Tereza. Por causa disso minha prima sempre teve uma relação muito
perturbada com minha tia, que com toda certeza era uma mulher muito antiquada e
controladora. O seu segundo marido morreu repentinamente de um acesso de tosse,
expelindo pela grande boca seca e moribunda uma dose desnecessária e abundante
de sangue, lambuzando o leito em que estava deitado de cor rubra, manchando os
lençóis brancos. Essa morte fez com que um pequeno chiste ingênuo (porém perigoso)
começasse a rondar pela família Abrãm. O chiste dizia que fora minha tia,
Tereza Abrãm, quem tia acabado de matar seu segundo marido, assim como o
primeiro. Quem começou a anedota mortífera foi o meu tio Josef. Vale apena
descrever um pouco sobre o meu tio, que em poucas palavras era um homem
bonachão e bem humorado, capaz de contar quarenta piadas em menos de uma hora,
isso sem piscar ou parar para tomar um copo de água para recuperar o folêgo. Minha
prefêrencia por tio Josef que era irmão de minha mãe e de tia Tereza era
crucial para mim levar em frente o meu passatempo predileto de escrever piadas
em um velho caderno que comprei em uma loja armênia perto da loja de meu avô,
que era um comerciante de relógios e pedras preciosas. A imprudência que aos meus olhos foi uma
grande ousadia de tio Josef acabou custando caro, pois uma fofoqueira que ouviu
a piada contou-a para minha tia, que de certo ficou chocada e acabou acertando
a testa de tio Josef com uma grande faca.
Penso agora de frente a
essa janela onde escrevo essas linhas que talvez minha prima não teria me
chamado de mentiroso caso eu tivesse contado para ela que o chifre de unicórnio
foi a última prova física da existência de um unicórnio legitimo. Essa criatura
desde que comecei a faculdade de estudos sobrenaturais me fascinara desde o
tempo em que com quatorze anos de idade peguei uma edição de um poeta grego que
ilustrava seus poemas com imagens de unicórnios. Por ser filho de um homem
capaz de citar de traz para frente o nome da maioria dos animais e dinossauros,
planetas e invenções humanas, fiquei
encantado como que enfeitiçado pelo misterioso chifre da criatura cavalar que
tinha o porte de um cavalo grande e, com toda certeza, um pouco maior que um
equino contemporâneo. Gostei das barbas que se assemelhava a um mago irlandês
que encontrei há muitos dias na cidade de Dublin. Por isso quando Franklin chegou e entrou o meu escritório com os olhos brilhando de
uma emoção nunca vista antes na face de um ser humano, achei que ele estava
recebendo na alma a visita do Espírito Santo.
“Acabei de chegar do
Irã”, Franklin falou com a voz um pouco pausada, “você não vai imaginar o que
os iranianos encontraram”.
“Por acaso eles
encontraram um modo eficaz de produzirem uma bomba atômica?”, tentei brincar, “e
você se apressou a vim até aqui para me dar a notícia de que Rússia, Estados
Unidos, China, Inglaterra e França vão fazer uma coligação internacional para
atacar a terra do Irã para que não haja uma terceira guerra mundial, o que, com
efeito, vai gerar a terceira guerra mundial, levando a todos do planeta terra
perecerem apenas ao apertar de um simples botão eletrônico”.
Franklin não esboçou
nem sequer um sorriso para mim. Claro que recordando agora aquele momento não
tinha sido sensato zombar de um jovem menino alegre, tenaz e curioso, que
acabava de vir até mim para me dar uma notícia boa e chocante.
“Não é nada disso, seu
estúpido”, Franklin me respondeu, “os iranianos acabaram de encontrar um chifre
de unicórnio perto da cidade de Bagdá, a escavação começou perto de um lugar
onde os paleontólogos pensavam que iriam encontrar os ossos de alguma baleia
milenar da época dos dinossauros, quando aquela região inteira havia sido
submergida pelo mar, assim como a Atlântida antiga, e agora eu te dou pressa
para ir até lá para ver o seu tão precioso chifre”.
Como eu bem supus na
minha vinda de avião até São Paulo, Sara não quis sair da frente da porta para
que eu pudesse subir até o meu quarto.
Ela necessitava ver as coisas. Depois que tia Tereza desapareceu e foi
encontrada morta com uma bala de revólver na cabeça, muitas pessoas na cidade
começaram a acusar tio Josef de ser a pessoa por traz do terrível assassinato.
Por mais que ele pudesse ter motivos justificáveis para o cometer de um crime
desses, pois não é atoa que sentimentos ruins brotem de pessoas que levem uma
faca no meio da cabeça, tio Josef foi inocentando pelo fato de que no dia em
que ocorreu o crime contra tia Tereza, ele se encontrava em Londres fazendo uma
apresentação cômica em um espetáculo particular que lhe rendeu muito dinheiro.
Quando o fantasma de tia Tereza começou a
aparecer pelos corredores da casa, alguns membros da família achavam
injustificáveis a presença de uma morta, e que por isso começaram a se mudar
para outras cidades e outros países. Foi
na quarta-feira depois que cheguei da faculdade junto de Sara que me encontrara
por acaso na saída, que vimos juntos o fantasma de tia Tereza.
Segurei forte a mão de
minha prima quando vi o rosto deformado e vermelho da morta, que agora parecia
mais assustador do que fora, já que onde havia um nariz grande e aduncado na
semelhança de um falcão só se podia ver um buraco grande e negro, os olhos tão
bonitos de minha tia deram lugar a dois olhos vazios e opacos, e no meio da
cabeça podia se ver com total clareza o local da bala onde tia Tereza tinha
sido acertada pela arma. As mãos ossudas e ocas pareciam querer abraçar Sara,
mais quando a fantasma tentava se aproximar um forte vento a empurrava para
traz, como que evitando o contato entre os vivos e a morta, o que de certo é
algo decente, já que não tínhamos nada haver com a morte de tia Tereza.
“Quem fez isso com a
senhora, mãe?”, ouvi a voz de Sara ecoando pelo corredor que parecia parado no
tempo.
As mãos ossudas se
levantaram e o que antes fora um dedo apontou para um delicado quadro que
estava na parede. O fantasma estava apontando para a irmã do segundo marido.
Meus braços se arrepiaram. Por mero acaso do destino no dia seguinte a irmã do
segundo marido de minha tia Tereza foi presa pela policia que encontrou uma
pistola manchada de sangue no seu quarto. Nunca mais viram o fantasma de minha
tia, que de certo ficou em paz.
Mostrei o chifre do
unicórnio para a minha prima que ficou com os olhos maravilhados, e disse
apenas:
“Como se parece com um diamante.”
Também acho que se
parecia muito com um diamante. No dia seguinte liguei para um colecionador
americano de objetos raros, um
riquíssimo judeu da Califórnio, que fez questão de buscar pessoalmente o chifre
do unicórnio iraniano. Quanto a mim continuo cuidado da loja de relógios e
pedras preciosas de meu avô. Amanhã volto para o Brasil. Espero que Sara não me
atrapalhe a subir com os ovos de dragões que carrego na minha mochila, presente
de meu avô paterno, Jorge Abrãm.
Fim
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