terça-feira, 3 de novembro de 2020

O CHIFRE DO ÚNICORNIO - conto fantástico-

O CHIFRE DO ÚNICORNIO

-Conto fantástico-

 

    Se Sara soubesse que eu estava carregando na bolsa de couro que fora presente de meu avô paterno, Jorge Abrãm, o chifre de um unicórnio morto há uma semana no Irã, ela não teria me feito as perguntas que me fez ao me ver entrando correndo exausto para dentro de casa. “Por que toda essa pressa, primo”? Quero usar o banheiro o mais rápido possível, disse, mesmo certo que ela não aceitaria a minha resposta ríspida. Desde que tínhamos uma idade adequada para frequentar a escola Sara era a mais rápida e a mais atrevida das meninas Como tínhamos a mesma idade e éramos primos acabamos estudando na mesma escola.        Minhas calças coladas e minhas camisetas de desenho de dinossauros eram motivos de chacota e risos por parte das outras crianças Claro que isso motivava a minha prima a me defender.

   Crescemos juntos. Até a época da descoberta do sexo pela minha parte (claro que ela já tinha experimentado sua primeira relação sexual), jamais fui capaz de vê-la com outros olhos, a não ser os olhos de um inofensivo primo que dependia da prima para se defender de certos valentões.

   Minha tia, Tereza, teve quatro filhas. Isso do segundo marido, porque com o primeiro marido ela teve apenas Sara. O pai de Sara teve uma morte perturbante, ainda quando morava com tia Tereza. Por causa disso minha prima sempre teve uma relação muito perturbada com minha tia, que com toda certeza era uma mulher muito antiquada e controladora. O seu segundo marido morreu repentinamente de um acesso de tosse, expelindo pela grande boca seca e moribunda uma dose desnecessária e abundante de sangue, lambuzando o leito em que estava deitado de cor rubra, manchando os lençóis brancos. Essa morte fez com que um pequeno chiste ingênuo (porém perigoso) começasse a rondar pela família Abrãm. O chiste dizia que fora minha tia, Tereza Abrãm, quem tia acabado de matar seu segundo marido, assim como o primeiro. Quem começou a anedota mortífera foi o meu tio Josef. Vale apena descrever um pouco sobre o meu tio, que em poucas palavras era um homem bonachão e bem humorado, capaz de contar quarenta piadas em menos de uma hora, isso sem piscar ou parar para tomar um copo de água para recuperar o folêgo. Minha prefêrencia por tio Josef que era irmão de minha mãe e de tia Tereza era crucial para mim levar em frente o meu passatempo predileto de escrever piadas em um velho caderno que comprei em uma loja armênia perto da loja de meu avô, que era um comerciante de relógios e pedras preciosas.  A imprudência que aos meus olhos foi uma grande ousadia de tio Josef acabou custando caro, pois uma fofoqueira que ouviu a piada contou-a para minha tia, que de certo ficou chocada e acabou acertando a testa de tio Josef com uma grande faca.

   Penso agora de frente a essa janela onde escrevo essas linhas que talvez minha prima não teria me chamado de mentiroso caso eu tivesse contado para ela que o chifre de unicórnio foi a última prova física da existência de um unicórnio legitimo. Essa criatura desde que comecei a faculdade de estudos sobrenaturais me fascinara desde o tempo em que com quatorze anos de idade peguei uma edição de um poeta grego que ilustrava seus poemas com imagens de unicórnios. Por ser filho de um homem capaz de citar de traz para frente o nome da maioria dos animais e dinossauros, planetas e invenções humanas,  fiquei encantado como que enfeitiçado pelo misterioso chifre da criatura cavalar que tinha o porte de um cavalo grande e, com toda certeza, um pouco maior que um equino contemporâneo. Gostei das barbas que se assemelhava a um mago irlandês que encontrei há muitos dias na cidade de Dublin.  Por isso quando Franklin chegou e entrou  o meu escritório com os olhos brilhando de uma emoção nunca vista antes na face de um ser humano, achei que ele estava recebendo na alma a visita do Espírito Santo.

  “Acabei de chegar do Irã”, Franklin falou com a voz um pouco pausada, “você não vai imaginar o que os iranianos encontraram”.

  “Por acaso eles encontraram um modo eficaz de produzirem uma bomba atômica?”, tentei brincar, “e você se apressou a vim até aqui para me dar a notícia de que Rússia, Estados Unidos, China, Inglaterra e França vão fazer uma coligação internacional para atacar a terra do Irã para que não haja uma terceira guerra mundial, o que, com efeito, vai gerar a terceira guerra mundial, levando a todos do planeta terra perecerem apenas ao apertar de um simples botão eletrônico”.

   Franklin não esboçou nem sequer um sorriso para mim. Claro que recordando agora aquele momento não tinha sido sensato zombar de um jovem menino alegre, tenaz e curioso, que acabava de vir até mim para me dar uma notícia boa e chocante.

  “Não é nada disso, seu estúpido”, Franklin me respondeu, “os iranianos acabaram de encontrar um chifre de unicórnio perto da cidade de Bagdá, a escavação começou perto de um lugar onde os paleontólogos pensavam que iriam encontrar os ossos de alguma baleia milenar da época dos dinossauros, quando aquela região inteira havia sido submergida pelo mar, assim como a Atlântida antiga, e agora eu te dou pressa para ir até lá para ver o seu tão precioso chifre”.

 

   Como eu bem supus na minha vinda de avião até São Paulo, Sara não quis sair da frente da porta para que eu pudesse subir até o meu quarto.  Ela necessitava ver as coisas. Depois que tia Tereza desapareceu e foi encontrada morta com uma bala de revólver na cabeça, muitas pessoas na cidade começaram a acusar tio Josef de ser a pessoa por traz do terrível assassinato. Por mais que ele pudesse ter motivos justificáveis para o cometer de um crime desses, pois não é atoa que sentimentos ruins brotem de pessoas que levem uma faca no meio da cabeça, tio Josef foi inocentando pelo fato de que no dia em que ocorreu o crime contra tia Tereza, ele se encontrava em Londres fazendo uma apresentação cômica em um espetáculo particular que lhe rendeu muito dinheiro.

   Quando o fantasma de tia Tereza começou a aparecer pelos corredores da casa, alguns membros da família achavam injustificáveis a presença de uma morta, e que por isso começaram a se mudar para outras cidades e outros países.  Foi na quarta-feira depois que cheguei da faculdade junto de Sara que me encontrara por acaso na saída, que vimos juntos o fantasma de tia Tereza.

   Segurei forte a mão de minha prima quando vi o rosto deformado e vermelho da morta, que agora parecia mais assustador do que fora, já que onde havia um nariz grande e aduncado na semelhança de um falcão só se podia ver um buraco grande e negro, os olhos tão bonitos de minha tia deram lugar a dois olhos vazios e opacos, e no meio da cabeça podia se ver com total clareza o local da bala onde tia Tereza tinha sido acertada pela arma. As mãos ossudas e ocas pareciam querer abraçar Sara, mais quando a fantasma tentava se aproximar um forte vento a empurrava para traz, como que evitando o contato entre os vivos e a morta, o que de certo é algo decente, já que não tínhamos nada haver com a morte de tia Tereza.

  “Quem fez isso com a senhora, mãe?”, ouvi a voz de Sara ecoando pelo corredor que parecia parado no tempo.

  As mãos ossudas se levantaram e o que antes fora um dedo apontou para um delicado quadro que estava na parede. O fantasma estava apontando para a irmã do segundo marido. Meus braços se arrepiaram. Por mero acaso do destino no dia seguinte a irmã do segundo marido de minha tia Tereza foi presa pela policia que encontrou uma pistola manchada de sangue no seu quarto. Nunca mais viram o fantasma de minha tia, que de certo ficou em paz.

 

  Mostrei o chifre do unicórnio para a minha prima que ficou com os olhos maravilhados, e disse apenas:

“Como se parece com um diamante.”

  Também acho que se parecia muito com um diamante. No dia seguinte liguei para um colecionador americano de objetos  raros, um riquíssimo judeu da Califórnio, que fez questão de buscar pessoalmente o chifre do unicórnio iraniano. Quanto a mim continuo cuidado da loja de relógios e pedras preciosas de meu avô. Amanhã volto para o Brasil. Espero que Sara não me atrapalhe a subir com os ovos de dragões que carrego na minha mochila, presente de meu avô paterno, Jorge Abrãm.

Fim

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