segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Uma saudação a Rato (conto)


 De fato Rato não gostava da literatura correta. Era um homem incorreto. O cabelo enorme, do tamanho das perucas francesas do século xix. Eu o achei surpreendentemente incrível.
 Nos conhecemos numa tarde de julho, não me lembro o dia, só me lembro a data: 1983. Estava completamente cabisbaixo, completamente triste, pois ficara sabendo que antigos amigos seus foram assassinados pelos militares que governavam o Brasil durante a ditadura militar. Eu não era um intelectual ainda, só lia de vez em quando, mais eu estava fantasiado com aquele homem. Eu o li numa revista bizarra, de vanguarda, onde ele aparecia lado a lado com uma matéria literária falando de La Mujer Araña  de Manuel Puig. Eu me arrepiei de ler aquelas linhas sangrentas que era o seu poema "Divina Escuridão". Nunca gostei de poesia, desde a escola eu nunca fui o tipo romântico apaixonado. Eu sofria de dislexia, era feio, usava óculos enormes, e aquela figura assustadora e aqueles versos mais assustadores ainda, me deixou totalmente curioso para conhecer aquele homem.
 Eu não sou o biografo oficial dele, nem sequer sei o seu nome. Só o fiquei conhecendo antes de ele partir para o México, para procurar uma tal de Izadora ou Isadora... Eu não sei bem... uma poetisa que ele ama... quem sou eu para ficar falando dos amores dos outros.
 Fui atrás primeiro da redação, para ver se ele estava por ali. Aquela figura estranha e mítica não tinha nem dado o endereço para os seus editores e nem tinha lhe deixado nenhuma informação. Eu fui recolhendo informações por todo o lado em que eu podia ir. Embora eu nunca tenha sido um detetive selvagem, fazer uma aventura atrás de uma figura como aquela, me parecia um risco tão bom quanto as lutas nas guerras mundiais.
 Encontrei um crítico que o conhecia, na redação. Um velho amigo intimo? Não! Pelo contrário, um velho inimigo intimo. Dos tempos em que ele se reunia com membros de uma espécie de sociedade poética marginal no centro  da cidade.
_ Ele é bom... Ele tem coisas melhores, mais é um homem insuportável - me disse com certa indolência, mas com um certo respeito. - De plenitude ele nunca conseguiu guardar sua língua ferina... Ele me entregou essa carta antes de sumir.
 Pelo o que depois Rato me contou, os dois trocara sopapos em uma briga tipica de intelectuais por causa de uma linda mexicana que estava no grupo, vinda do México para estudar  e fazer uma matéria sobre os horrores ditatoriais no Brasil. Rato não gostava e jamais gostou de nenhum rico ou esnobe, ou militar, ou intelectual que se achava superior ou maior dos que os outros. Era um marginal. Um marginal capaz de fazer tudo por amor. A carta posso transcrever, afinal nem ele deve se lembrar dela:

"Estou partindo para o México. Estou em busca da Dora, quero ver se ainda posso achar o meus amigos. Eu andava depressivo demais, sabendo por você e sua gangue que meus companheiros de armas literárias, minha guerrilha estava sendo caçada e morrendo dentro dos porões escuros das celas desses policiais corruptos e sujos. Eu não quero nem sequer ir no enterro de Suzaninha... Ela era uma irmã para mim, e que falta me faz vê-la sorrindo. Espero achar também "b". Ele desapareceu um dia numa praia do Rio e nunca mais voltou. Só deixou um bilhete em espanhol, dizendo querer aventuras. Você sabe muito bem que essas aventuras são fugas para nós, latino-americanos sem esperança de nada. Perdoe-me a má escrita, e publique o poema que eu lhe mandei. Ele é tão bom quanto a poesia de Valéry, acredite em mim".

 Essas coisas deveriam ficar perdidas, mas o bom Rato de fato não imaginaria que eu mesmo ia lhe escrever uma espécie de saudação, e mostrar sua poesia sangrenta. Ele me deu a mão antes de entrar na embarcação que o levaria (clandestinamente) para o México. "Se lembra do poema sangrento?", perguntei, e ele me respondeu: "Me lembro de tudo: eu é que estou sangrando".

Navalhas cortantes em gargantas cantantes
Ventos, mares, risos, novos ares
Que puta mais linda essa que
Acabou de ser assassinada
Antes do fim da nova parada.

Meus amigos estão lendo desesperados
Eles estão sofrendo encarcerados
Eu estou livre, mais estou apunhalado
Meus rins e meu coração estão
em plenas mãos: eu sou o pulmão acelerado.

SANGRA MORTALMENTE A AMÉRICA
SANGRA MORTALMENTE O MEU ROSTO
ESSES POLICIAIS ATIRAM E ASSASSINAM
EU SOU O MAR, DIRIA WHITMAN,
EU CONCORDO UM POUCO TRISTE:
EU SOU O SANGUE ESCORRENDO
EU É QUE ESTOU SANGRANDO.

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