domingo, 24 de agosto de 2025

Sinais - conto

Dizem que todos os dias o homem deve procurar Deus como quem procura água num deserto, e que essa busca, mesmo infrutífera, já é oração, mas o homem de que aqui falo, judeu de nascimento, tradição e memória, buscava não só por obrigação dos antigos ritos, nem por nostalgia de um povo que carregava nos ossos mais lembranças do que esperanças, ele buscava porque acreditava que em algum lugar entre o silêncio da manhã e o ruído das tardes haveria um sinal, uma pedra que se movesse sozinha, uma palavra caída de um livro aberto ao acaso, uma voz sem garganta, e todos os dias saía de casa, ajeitando a barba curta e a kipá que quase sempre escorregava, como se até o pequeno círculo de pano tivesse dúvidas sobre permanecer em sua cabeça, e caminhava pelas ruas com o coração dividido entre a fé de Abraão e a descrença de Kafka, se é que ambos não habitam a mesma casa, como vizinhos que se cumprimentam com desconfiança. Não era piedoso no sentido costumeiro, não se ajoelhava em sinagogas com devoção inabalável, nem sabia de cor todos os salmos que os avós recitavam em dias de festa, sua religiosidade era uma espécie de fome, fome que não se sacia com pão nem vinho, mas com algo que nunca vinha, um sinal, repito, qualquer sinal que fosse, e no entanto, ao longo dos anos, os sinais eram apenas ausências mais profundas, sombras mais longas, silêncios mais densos, e ele se perguntava se Deus não seria justamente isso, um acúmulo de ausências, um silêncio que nenhuma palavra poderia quebrar. Nas manhãs, abria os jornais como quem espera um recado escondido entre os anúncios de aluguel e os horóscopos, lia com olhos atentos notícias de guerras, de mortes, de líderes corrompidos, e pensava, se Deus estivesse em algum lugar, talvez aparecesse aqui, na forma de uma mensagem cifrada, mas nada, apenas a vulgaridade repetida do mundo, e o homem dobrava o jornal, guardava-o debaixo do braço e ia trabalhar, e o trabalho, esse sim, era sinal, mas de outra coisa, do peso que as horas têm sobre os ombros e da teimosa insistência da vida em continuar, mesmo quando não se entende porquê. Às vezes, enquanto caminhava pelas ruas estreitas, reparava nos velhos rezando junto às portas, nos jovens correndo sem destino definido, nos cachorros remexendo o lixo, e pensava que talvez todos esses movimentos fossem sinais, só que ele não tinha a chave para interpretá-los, como se estivesse diante de um livro escrito em língua morta, e os mortos, como se sabe, não traduzem, só olham em silêncio, e isso não lhe bastava. Era homem só, já se adivinha, não casara, não tivera filhos, e talvez por isso mesmo sua busca fosse tão intensa, porque, não tendo a quem deixar o seu nome nem o seu sangue, queria ao menos deixar uma espécie de marca na eternidade, se possível ao lado de Deus, mas o que recebia em troca era a suspeita de que o próprio Deus, se existisse, também não tinha filhos, ao menos não filhos legítimos, porque todos que assim se diziam acabaram crucificados, abandonados ou mortos em guerras, e então, talvez, Deus fosse também um pai ausente, desses que prometem voltar com um brinquedo e nunca aparecem. O homem judeu escrevia cadernos inteiros, páginas e páginas cheias de tentativas de diálogo, chamava por Deus como quem chama por alguém do outro lado de uma parede espessa, batia com a caneta no papel como quem bate à porta, escrevia, Senhor, mostra-me um sinal, um traço, um risco, e quando terminava de escrever, fechava o caderno e não havia resposta, nem uma mancha de tinta mais forte, nem uma letra deformada, só o silêncio impresso em papel, e se perguntava, não será que Deus já falou e eu não soube escutar, e então continuava a buscar, porque desistir seria reconhecer que tudo era nada, e ninguém, nem mesmo um ateu, gosta de olhar para o abismo do nada sem estremecer. Os amigos, poucos, riam dele em segredo, achavam que sua busca era inútil, alguns diziam, se Deus existe, não precisa de você, e se não existe, também não precisa, e ele respondia com um gesto cansado, sem raiva, porque sabia que no fundo todos buscavam alguma coisa, dinheiro, prazer, poder, amor, e que sua busca não era mais ridícula do que a dos outros, apenas mais visível. E, assim, passavam-se os dias, as semanas, os anos, e o homem judeu ia envelhecendo com sua procura, cada vez mais surdo aos ruídos do mundo e mais atento aos silêncios, e às vezes, ao deitar-se, pensava se o sinal que tanto buscava não viria no último instante, no sopro final antes da morte, e se assim fosse, se perguntava se não era tarde demais para qualquer resposta. Mas não se pense que sua busca era sempre solene, revestida de gravidade, porque a vida, mesmo a dos que procuram Deus com mais seriedade do que procuram o pão, também é feita de tropeços, e muitas vezes, enquanto atravessava a rua distraído com pensamentos celestes, quase era atropelado por bicicletas apressadas, e o ciclista, insultando-o com palavras terrenas, parecia um anjo às avessas, mensageiro de carne suada que lembrava ao homem que, para encontrar Deus, primeiro era preciso não morrer esmagado sob duas rodas, e ele, já com os nervos um pouco mais agitados, se perguntava se esse não seria o sinal, a ira humana revelando-lhe a paciência divina, ou a falta dela. E havia ainda os encontros em cafés, onde sentava-se com o hábito antigo de pedir chá, nunca café, como se a infusão mais suave fosse um pacto com a calma que lhe faltava, e abria um livro qualquer, às vezes a Torá, às vezes um romance qualquer que encontrara no sebo da esquina, e lia como quem procura uma frase que saltasse do papel para lhe dizer, Eis-me aqui, mas nunca vinha tal frase, e o máximo que conseguia eram letras impressas como formigas marchando sem rumo, um exército de palavras que não obedecia a comando algum, e o homem então fechava o livro e voltava a olhar pela janela, esperando que um pássaro pousasse no parapeito, que uma mulher deixasse cair a bolsa, que uma criança risse sem motivo, qualquer coisa que rompesse o tédio e se transformasse em revelação, mas até nisso Deus era econômico, ou então ausente. E havia também as noites, longas, em que ele caminhava sozinho pelas ruas quase desertas, e o vento frio parecia trazer vozes antigas, vozes de antepassados, alguns mortos em guerras, outros esquecidos em guetos, vozes que falavam em línguas que ele já não dominava, aramaico, iídiche, hebraico antigo, e ele ficava a escutar, perguntando-se se não seriam sinais, mas era possível que fossem apenas lembranças mal guardadas, fantasmas pessoais soprando palavras sem sentido, e ainda assim ele se detinha na esquina, tentando decifrar sílabas que se desfaziam no ar, e no fim voltava para casa com a mesma pergunta, se Deus falava, por que falava sempre numa língua que ninguém entende. Os rabinos, quando o viam, ofereciam-lhe conselhos, diziam que fosse mais paciente, que rezasse com fervor, que confiasse no tempo de Deus, não no tempo dos homens, e ele respondia com respeito, claro, porque sabia que não há nada mais ofensivo para um crente do que ouvir o riso de outro, mas dentro de si ria, ria de pensar que já tinham se passado quarenta anos desde sua juventude e que paciência era o que menos lhe faltava, e que esperar mais não era virtude, mas condenação. Um dia, entrou na sinagoga maior da cidade, mais por tédio do que por devoção, e sentou-se entre os homens, ouviu as orações, levantou-se e sentou-se quando era preciso, murmurou palavras que não compreendia mais, e de repente sentiu-se vazio, vazio como nunca, e então lhe ocorreu uma ideia que o assustou, e se o verdadeiro sinal fosse justamente esse vazio, se Deus fosse oco, ou melhor, se Deus fosse o próprio espaço que a ausência deixa no coração humano, e então sorriu, sorriu com uma amargura que confundiu os que estavam ao lado, pois como alguém pode sorrir durante a oração senão por desvario, e o homem levantou-se e foi embora, certo de que nenhum dos presentes havia entendido coisa alguma, nem mesmo ele. Certa vez, encontrou uma mulher, dessas que aparecem na vida não como salvação mas como distração, e ela, curiosa com seu jeito pensativo, perguntou-lhe por que estava sempre com os olhos voltados para cima, como se buscasse estrelas em pleno dia, e ele respondeu, Procuro sinais de Deus, e ela riu, não com crueldade, mas com leveza, e disse que se quisesse sinais bastava olhar para o corpo dela, que cada curva, cada gesto era sinal suficiente de que Deus existia, e o homem, confuso, quis acreditar, mas não conseguiu, porque sabia que mesmo o corpo mais belo, mesmo o prazer mais intenso, também apodrece, e se Deus estivesse apenas na carne, então Deus não passaria de um cadáver adiado, e isso lhe parecia pouco para um Criador. E a vida continuava, como sempre continua, indiferente à busca dos homens, e o judeu envelhecia, e cada ruga em seu rosto era como um versículo não lido, cada fio branco na barba era como uma oração não atendida, e ainda assim, todas as manhãs, ao acordar, abria a janela, olhava para fora e perguntava em silêncio, Senhor, hoje, não, e o silêncio respondia, hoje também não. E não se pode esquecer, claro, que sendo judeu, como sempre fora e sempre seria, não importava se acreditasse ou não, havia nele uma geografia inevitável, um mapa colado à pele, e esse mapa dizia Israel, dizia Terra Prometida, dizia Jerusalém como umbigo do mundo, e o homem, que nunca tivera coragem de atravessar o oceano para ver com os próprios olhos a cidade dourada, justificava-se dizendo que Jerusalém verdadeira só podia existir dentro, porque a de fora, aquela feita de pedra e sangue, estava contaminada pelo excesso de promessas e pela falta de cumprimento, e dizia ainda, meio em sussurro, que se fosse até lá provavelmente também não encontraria Deus, porque Deus, se existe, não se esconde atrás de muros nem se revela em guerras, e então os outros homens o chamavam de fraco, de covarde, de herege, e ele respondia que não tinha medo de Deus, mas dos homens que falam em nome Dele. E um dia encontrou um velho rabino que lhe perguntou com uma calma ensaiada, Por que te afliges tanto se Deus é claro no silêncio e generoso na demora, e o homem respondeu, O silêncio pode ser claro para quem já desistiu de ouvir, e a demora pode ser generosa para quem tem séculos de sobra, mas eu só tenho esta vida, este corpo, e quando acabar, acabou, e o rabino quis retrucar, mas conteve-se, porque percebeu que ali estava um homem a quem nenhuma resposta serviria, e ambos se despediram com uma reverência fria, cada um convencido de que o outro havia falhado. E as guerras vinham nos jornais, bombas caindo em Gaza, foguetes disparados em resposta, crianças soterradas sob ruínas, soldados orgulhosos exibindo músculos e armas, políticos declarando que tudo era vontade divina, e o homem, lendo aquilo, batia na mesa e murmurava, Se este é o vosso Deus, ficai com Ele, e depois, arrependido da blasfêmia, levantava os olhos e pedia desculpa em silêncio, caso acaso Deus de fato estivesse ouvindo, e nesse vaivém de revolta e remorso gastava as horas como quem caminha sem nunca sair do lugar. E havia ainda a lembrança do pai, já morto há muito, que costumava repetir que o povo judeu era escolhido, escolhido para sofrer, escolhido para resistir, escolhido para acreditar mesmo contra todas as evidências, e o homem pensava que, se esse era o privilégio da escolha, talvez fosse melhor não ter sido escolhido nunca, e ao pensar isso sentia-se culpado, culpado como se tivesse cuspido no próprio sangue, e então ria sozinho, porque sangue algum, nem o seu nem o de ninguém, deveria carregar tamanho peso, e no entanto carregava. E certa manhã, enquanto esperava o bonde, uma criança aproximou-se, perguntou-lhe inocente se Deus existia, e ele, sem saber o que dizer, respondeu apenas, Procuro sinais, e a criança, rindo com os dentes ainda de leite, disse que o sinal era ela, e correu para longe, e o homem ficou imóvel, como se tivesse recebido a revelação que esperava, mas logo se corrigiu, não, não pode ser tão simples, uma criança é apenas uma criança, mas ainda assim algo ficou suspenso no ar, um sabor de resposta que ele não conseguiu cuspir fora. E os anos passavam, e a procura tornava-se mais urgente, porque a morte já se aproximava com a calma de quem sabe que nunca chega atrasada, e o homem, em noites de febre, sonhava com sinais grandiosos, o mar se abrindo diante dele, o sol parado no céu, uma escada de anjos descendo ao seu quarto, mas ao acordar havia apenas a parede descascada, a infiltração manchando o teto, a tosse insistente, e ele se perguntava, Para que Deus daria sinais a Moisés e a Jacó e não a mim, e em seguida respondia, Porque talvez não tenha dado a eles também, talvez tudo tenha sido invenção de homens tão desesperados quanto eu. E o tempo, sempre o tempo, que corria como rio indiferente, trouxe-lhe a solidão, porque os amigos, cansados de sua busca sem fim, já se afastavam, e ele ficou como ilha, cercado de silêncio por todos os lados, e era nesse silêncio que esperava, sempre esperava, que Deus, por fim, se dignasse a falar.



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