quarta-feira, 6 de agosto de 2025

DOS DELÍRIOS E DO AMOR




 “I am become Death, the destroyer of worlds.”

 — Bhagavad Gita, citado por J. Robert Oppenheimer


 I.


Em Babel

os homens disseram: “Construamos uma torre.”

Mas não sabiam

que a torre já morava no crânio de Kafka,

com escadas que descem em espiral até o joelho de Deus,

e lá —

há silêncio,

apenas o ranger das unhas contra o gesso

e um inseto que se move entre os panos da vergonha.


Sim —

Gregor Samsa não acordou de um sonho:

acordou do mundo.


E o mundo é este:

feito de trincheiras invisíveis,

coquetéis molotov de ternura,

palavras esmagadas sob a sola de sapatos bem engraxados.


E quem sabe amar

nesse corredor cheio de ossos?

 II.


Oppenheimer,

teu nome estilhaça relógios:

revelaste que o homem pode ser estrela —

e sepultura.


Em Los Alamos

não havia crianças,

mas cálculos.

E o vento carregava partículas de Caim.


Ah, Oppenheimer —

te vi em sonhos,

em meio a cinzas radioativas,

recitando Jeremias com voz de aço:


 “E a terra estava sem forma e vazia,

e havia trevas sobre a face do abismo...”


Mas então — faça-se a luz!

E a luz explodiu em mil sóis.


O amor morreu naquele clarão.

Mas que beleza havia nisso.

Beleza de Lúcifer caindo em câmera lenta

sobre as cidades humanas.


 III.


A pintura cubista —

é um modo de ver o amor despedaçado.

O rosto de Jade

em sete planos.


O beijo interrompido por geometrias.

A boca — um retângulo de silêncio.

O olho — um compasso.

O sexo —

uma interrogação oblíqua.


E no fundo da tela

o mesmo ruído

de um coração tentando se lembrar

do que era o amor

antes da cor azul.


 IV.


O desejo —

é a atrofia da eternidade.

Queremos o corpo

não como templo,

mas como ruína.


Queremos gozar como quem reza.

Ou rezar como quem goza.

Mas o tempo é cruel com a carne,

e o corpo ri de nós no espelho,

como o profeta Jonas riu da baleia

antes de ser engolido.


Oh desejo —

teu nome é lâmina.

Cortas o pão e a garganta.

 V.


A Bíblia é um livro cansado.

Mas ainda brilha,

como um osso polido sob o sol.


Lemos nela os horrores de Abraão,

o amor de Davi por outro homem,

os gritos de Jó ao Deus mudo,

a cabeça de João

rolando entre frutas.


E nos Salmos —

a sede de quem só conheceu o sal.

O amor, lá, é pacto.

Mas o homem moderno ama por contrato,

com cláusulas de silêncio e cláusulas de fuga.


 VI.


E o suicídio?

É apenas o ponto final

que se escreve com o corpo.


Mas mesmo ele —

em sua nudez última —

é um tipo de oração.


A corda,

a lâmina,

a janela —

são apenas versículos de uma escritura sem Deus.


Talvez —

Kafka tenha sorrido antes de morrer.

Talvez —

Oppenheimer tenha chorado no deserto.

Talvez —

Picasso tenha tentado desenhar a alma e só encontrou o sexo.


E ainda assim —

o amor.


Sempre o amor,

como um eco no fundo da mente.

Como um peixe invisível

nadando na cisterna seca do coração.


VII.


Entre os escombros atômicos,

nos museus vazios,

nas camas de motéis,

nos olhos dos que partem,

em tudo isso há delírio.


Mas há também amor.


Mesmo se torpe,

mesmo se mutilado,

ele ainda é

a única bomba

que não construímos para matar.


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