O
nascimento de um deus
-conto fantástico de Gabriel Limão Klein-
Hiro Yamauchi tinha 23 anos, era formado em
direito e acabara de se mudar para um apartamento no centro de São Paulo. Neto
de japoneses que vieram ao Brasil por causa da segunda guerra mundial, Hiro
nunca se sentiu um estrangeiro, e não gostava de nenhum assunto relacionado com
o Japão, pois sua relação com os seus pais, que eram muito apegados aos
costumes dos ancestrais, foram péssimas.
Namorava uma linda menina de
nome Tamara, que era índia por parte de mãe, e que tinha se formado junto com
ele em direito na faculdade.
Hiro acabara de entregar seus duzentos currículos que imprimiu para
conseguir um novo emprego, já que não estava gostando de trabalhar fazendo a
contabilidade de uma sórdida empresa que monitorava outras empresas menores.
Estava exausto e tinha parado na frente do prédio em que morava para
comer algumas bolachas e tomar um refrigerante de laranja, que era o seu
refrigerante favorito desde os cinco anos de idade.
Com olhar perspicaz, ficava olhando tudo o que acontecia na praça.
Ali estava o mesmo marginalzinho de sempre que ele via assaltando os
transeuntes ignorantes que não eram dali. Observava sempre algumas travestis
que faziam programas sexuais andando pela praça, e de vez em quando elas
acenavam para ele, deixando sua face rubra como um tomate de vergonha.
Não que tivesse qualquer
homofobia, pelo contrário. Hiro tinha um irmão homossexual assumido e por isso
entendia a necessidade de algumas travestis de se prostituirem, já que seus
pais não aceitaram muito bem o fato de seu irmão ser gay, e o terem expulsado
de casa.
O seu telefone começou a tocar e ele retirou o aparelho do bolso para
atender, sempre observando o pequeno delinquente que ficava por ali, e com quem
já batera bocas algumas vezes por causa do enorme barulho que estava fazendo na
frente do prédio.
-Alô! – disse Hiro firmemente.
-Oi, amor, sou eu!
A voz de Tamara sempre fazia o coração de Hiro acelerar. Ele era um
jovem tímido e pouco ousado nos assuntos amorosos, e não entendia o que uma
menina tão doce e simpática como ela fazia com ele que era um cara tão amargo e
turrão de espírito.
Fora com ela que ele iniciou
os seus primeiros passos para o mundo sexual. Não que ela tivesse sido
penetrada. Foi apenas um boquete que ele recebera, e que mesmo assim o deixou
fascinado pela boquinha quente e cheia de cuspe de Tamara.
-Oi amor – respondeu Hiro aliviado, pois pensou que fosse o seu
patrão, já que pediu alguns dias de folga dizendo que estava sentindo dores
abdominais terríveis. - Aconteceu alguma coisa?
-Não, não. Eu só liguei para saber onde você está – disse Tamara. – E
se você vai sair hoje comigo para comer pizza...
-Estou aqui em frente de casa, na pracinha – respondeu Hiro.
Ele levantou a cabeça quando algumas travestis começaram a acenar
alegremente para ele, mexendo os peitos enormes e siliconados para chamarem sua
atenção.
-Tem muita gente por ai – disse Tamara. – Aqui tem muita gente.
-Onde você está? – perguntou Hiro.
-Estou aqui na biblioteca pública, resolvendo umas questões para
minha irmã – disse Tamara.
- Manda um abraço para ela...
Hiro ia dizer alguma coisa
mais se calou, quando uma travesti muito bonita e negra gritou do outro lado
para ele:
“Ei, japinha gostoso, vem cá, vem!”
- Amor, eu vou entrar para casa. O vento por aqui está frio – disse
Hiro.
Hiro não era muito bom em
mentiras. E Tamara sabia muito bem disso.
-Tudo bem amor. Vejo você de noite. Te amo.
-Eu também te amo – ele respondeu, desligando o telefone e colocando o
aparelho no bolso.
Hiro se levantou e caminhou em direção para a sua casa. Fez um leve
aceno para trás para ver se a travesti negra ainda estava por lá, e ela estava
entrando em um carro nesse exato momento.
Hiro sentiu um prazer ao ver
aquela cena. “Poderia ser eu ali, com ela, mais isso significaria que eu ia me
meter em uma confusão muito grande”.
Ele abriu a porta e entrou no
prédio, subindo o elevador até o andar onde morava. Colocou a chave na
fechadura e entrou no seu apartamento.
Hiro Yamauchi era um jovem
cheio de manias e superstições, e mesmo que isso pudesse encher o saco de
alguns amigos ou até mesmo da namorada, não conseguia se livrar delas.
Sempre que entrava em seu
apartamento fazia questão de observar se os móveis ainda estavam na mesma
posição em que os colocara. Isso poderia ser considerado uma espécie de
loucura, para quem não entendesse, mais Hiro já lera todos os livros de Freud e
sabia que sua mente matemática precisava disso para não enlouquecer com o
cotidiano comum, que ele sempre
detestou.
“Meu irmão tem uma vida
fantástica”, meditava enquanto sentava no sofá e colocava o violão que estava
na parede um pouco mais para a direita, “poxa vida, ele saiu de casa e nunca
deu explicação para os meus pais. E hoje vive com o companheiro no Rio de
Janeiro, e nem sequer manda presente no dia do meu aniversário”.
Hiro gostava muito de lembrar-se de seu irmão. Ele era o seu irmão
mais velho, e embora carregasse na identidade o sobrenome Yamauchi, há muito
era chamado de Gali, e não de Yamauchi.
“Meu irmão é um ator, um dos melhores do país. Já fez mais de quinze
novelas. Recebe bem, vive uma vida movimentada. E eu fico preso o dia inteiro
atolado em papéis que não significam nada para mim”.
Hiro não tinha a mesma coragem do irmão para desafiar os pais. O
irmão optou por viver sua orientação sexual a qual nascera, optou por realizar
seu sonho. Só que ele não podia fazer isso. Seu pai quis que ele se formasse em
direito, e com isso iria dar de presente ao filho “leal” um apartamento. Os
pais não se agradavam de Tamara, não gostavam de ter uma nora estrangeira na
família, mais mesmo assim a tratavam com muito amor e carinho (ou falsidade,
como ele pensava).
“Será que eles sabem que o Gali está fudendo com um descendente de
espanhol?”, ele riu enquanto ligava a televisão para assistir os noticiários.
A barriga de Hiro começou a doer. Ele sentiu
uma leve tontura na cabeça, nada de grave, já que desde pequeno sentia esses
giros internos dentro do cérebro. Como as bolachas não foram suficientes para
tirarem a fome do estomago, Hiro se levantou e caminho até a geladeira de onde
retirou dois ovos, intencionando fazer uma bela omelete de presunto e queijo.
Ele acendeu o fogo do fogão com o fósforo, e retirou da gaveta da
cozinha um belo garfo. Abriu o primeiro ovo com leveza, e a massa amarelada da
gema e o branco da clara se fundiu ao óleo que ele já tinha colocado na panela
para fritar sua omelete. Quando foi fazer a mesma coisa com o segundo ovo, algo
estranho e insólito aconteceu, o que torna difícil descrever o ocorrido pela
rapidez da cena.
Um minúsculo ser começou a
deslizar para fora onde devia estar à clara e a gema. Uma pequena criatura que parecia
um pequeno pintinho, mas com a expressão facial um pouco puxada nos olhos, um
belo traço oriental quase um chinês. Era muito pequeno, cabendo talvez na palma
da mão de Hiro, e o que ele parecia era um mini lutador de sumo, gordinho e com
penas.
A pequena criatura se segurou no pulso de Hiro, e abriu a boca (que
parecia um imenso bico), e uma voz fininha ecoou:
-Meu jovem, você não está pensando em me fritar nessa frigideira,
está? – disse a criatura.
-Não! Eu queria fritar o conteúdo do ovo –respondeu Hiro um pouco
empático. – Não estava pretendendo encontrar alguém que falasse português e se
comunicasse comigo. Pelo menos não hoje.
A pequena criatura ainda estava no pulso de Hiro, deu um salto e
ficou em pé no chão.
Hiro achou engraçada a
acrobacia que a pequena criatura tinha feito. Decidiu não rir, e conseguiu
apenas rir mentalmente. Ele sempre conseguia isso porque era um costume dos
seus pais não rirem na frente dos mais velhos. E infelizmente ele também
conseguia essa técnica.
-Posso me sentar no sofá? – a pequena criatura perguntou. – Estou um
pouco cansado. Dormi por mil anos dentro dessa casca de ovo, e agora preciso
esticar um pouco as pernas.
-Você tem mil anos da idade? – Hiro perguntou surpreso. – Nossa, eu
pensei que a minha avó fosse a pessoa mais velha do mundo.
O pequeno ser achou graça e começou a rir.
- Quantos anos tem sua avó? – disse a criatura.
-Ela tem cem anos de idade – respondeu Hiro um pouco ríspido. – E
quer alcançar até trezentos...
-Ah vocês humanos continuam me fazendo rir.
-Você já teve contato com os seres humanos antes? – perguntou Hiro.
-Claro. A minha raça foi...
-Espere ai – interrompeu Hiro. – Você é só mais um? Existem outros
como você?
-Claro rapaz. Eu sou um deus. Digamos assim, quase um deus. Eu já fui
chamado de semideus por alguns da sua espécie.
Hiro fitou a criaturinha com
ligeiro interesse. Sempre foi desconfiado do sobrenatural. Mesmo assim, depois
de ler sobre bombas atômicas sendo atiradas em Hiroshima, de onde vieram seus
ancestrais, ele não desacreditava de mais nada.
-Eu me chamo Hiro.
-Eu sei como você se chama – a criatura olhou fundo nos olhos de
Hiro, que sentiu certo constrangimento. – A minha raça consegue ler o nome das
pessoas em suas testas.
Hiro levantou a mão até a testa.
-Bom então isso é um pouco embaraçoso. Você sabe o meu nome e eu não
sei o seu. Aliás, nós humanos não conseguimos ler nomes nas testas das
criaturas que são chocadas dos ovos de galinhas.
O pequeno ser se sentiu
extremamente ofendido, mas decidiu em consideração própria a não demonstrar.
-Eu me chamo Pyngpong.
Hiro sentiu vontade de rir da criatura quando ouviu esse nome, já que
ele era mestre em jogar ping-pong na escola desde os cinco anos de idade.
- Senhor Pyngpong, gostaria de fazer uma pergunta, se não for
indelicadeza da minha parte.
-Pode fazê-la rapaz. Eu gosto de ouvir as coisas profundas e idiotas
que todos da sua espécie gostam de falar comigo.
-Bom – Hiro passou a mão sobre os cabelos. – O que você fazia dentro
desse ovo? E se não for nenhum incomodo, por que justamente na minha casa você
veio aparecer?
-São duas perguntas, meu caro Hiro, e respondo-as depois que você me
buscar ali na esquina uma coca-cola. Puxa vida, ficar dentro de um ovo por
tanto tempo dá uma sede danada. Você nem imagina.
Hiro pegou a carteira que estava no seu quarto e saiu novamente para
a rua.
“Será que estou sonhando?”, pensou para si mesmo, “e não existe
nenhuma criaturinha chamada Pyngpong em minha casa”.
Algumas outras travestis
começaram a acenar para ele enquanto ele entrava no bar para pedir uma
coca-cola de lata para o homem barbudo com cara de árabe no balcão.
-O que foi rapaz – perguntou o homem do balcão. – Você está com uma
cara de assustado. Aconteceu alguma coisa?
Hiro sorriu gentilmente.
-Se eu te contasse você não iria acreditar.
Deixou o dinheiro no balcão e seguiu de volta para a sua casa.
“Deve ser apenas uma alucinação da minha cabeça. Estou com sede e vim
comprar coca-cola para mim mesmo. Acho que o meu cérebro criou essa fantasia só
pra passar o tempo”.
Hiro pensou essas coisas, mais quando abriu a porta do apartamento e
acabando de entrar, viu Pyngpong sentado no sofá com as pernas cruzadas, como
se fosse um mini-buda meditando.
-Trouxe a minha coca-cola? – perguntou Pyngpong com um sorriso.
-Puxa vida, você é realmente um deus que gosta de tomar coca-cola?
Pensei que tudo isso fosse uma alucinação mental. Que nada fosse real.
-Tudo é real meu jovem. E eu não me esqueci da sua pergunta. Na
verdade das suas duas perguntas: bom, o que eu fazia nesse ovo é o seguinte,
não existe melhor lugar no mundo para tirarmos sonecas a não ser dentro de
ovos. Infelizmente eu devia ter ficado em algum ovo de avestruz, mais foi esse
daí que eu encontrei lá na Judéia, e como os ovos estavam raros resolvi
descansar por ali mesmo. Bom, vim parar na sua casa por causa de alguma galinha
que não podia chocar ovos e resolveu trazer-me enfiado no rabo para ser
chocado. Bom, e eu vim parar aqui. Satisfeito com a resposta?
-Nem um pouco – respondeu Hiro. – Não entendo nada. Acabei de
presenciar o nascimento de um deus aqui na minha frente. E você até agora só
pediu coca-cola. Não tem poderes nenhum?
-Hiro, Hiro. Você anda assistindo muitos filmes da Marvel. Isso não
faz bem para a cabeça de ninguém. Que poderes você acha que eu tenho? Posso até
não morrer, mais isso não é poder. É apenas um imenso enfado, ver gerações e
gerações aparecendo. Outra, não pense que vou ficar anos fora de um ovo. Vou
voltar a dormir de novo e ninguém mais vai se lembrar de mim. Só você pode
guardar essa recordação.
-Quer dizer que você vai voltar a dormir de novo?
-Não agora. Se for isso o que te preocupa. Vou zanzar por aqui, ver
algumas coisas, quem sabe comer umas putas, ouvi dizer que tá três garotas de
programas por 100 reais agora ali no centro da cidade.
-Você faz sexo?
-E quem não faz?
Hiro sentou na outra poltrona
e ficou olhando Pyngpong com curiosidade.
Pyngpong tomou até o fim a coca-cola, deu um leve arroto, e olhou
para cima do relógio.
-Hiro, acho que já está na hora do seu encontro com a sua namorada
Tamara. Eu não vou atrapalhar você mais. Foi um prazer te conhecer.
Hiro se levantou e ficou olhando a estranha criaturinha abrir a porta
e desaparecer. Ele esfregou os olhos antes de pegar a jaqueta de frio para
sair.
Ao sentar-se à mesa e pegar um
pedaço de pizza de queijo, Tamara perguntou:
-Aconteceu alguma coisa hoje, amor?
-Não amor. Tudo normal.
Fim
O
autor
Gabriel Limão Klein é escritor e comediante brasileiro. Mora em
Campinas, São Paulo, onde divulga seu trabalho de stand-up comedy em alguns
bares.
Contacto: gabrielkzty@gmail.con
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