A atividade mais elevada que um ser humano pode atingir é aprender para compreender, porque compreender é ser livre.
A maneira como um povo representa o Outro, isto é, o estrangeiro, o herético ou o simplesmente diferente, é um espelho mais fiel de seu próprio espírito do que todas as suas virtudes autoproclamadas. E se quisermos saber o que é o homem, observemo-lo não quando fala de si, mas quando fala dos que despreza. Nesta luz amarga — que é a única luz verdadeira — podemos comparar a literatura inglesa e a portuguesa em suas visões do judeu.
Na Inglaterra, onde o judeu era, por muito tempo, uma ausência visível — expulso desde 1290 e só reintegrado socialmente no século XVII —, o imaginário cristão não podia construí-lo a partir da convivência, mas apenas da caricatura. O judeu inglês é, pois, um fantasma teológico, uma projeção da avareza, do mercantilismo, da vingança cega. Em Shakespeare, Shylock, o agiota de O Mercador de Veneza, é um personagem tão marcado pela obsessão do ouro e do contrato que chega a personificar não um homem, mas uma alegoria — a máscara que o cristão medieval precisava para encenar sua superioridade moral. A Inglaterra, terra de banqueiros sem culpa e cruzadas sem arrependimento, precisava de um judeu que concentrasse todos os vícios do cálculo, da dureza e da ganância, como um espelho do próprio inconsciente inglês.
Já em Portugal, onde o judeu era não apenas próximo, mas muitas vezes o vizinho, o médico, o boticário ou o convertido, a representação literária adquire, paradoxalmente, um grau maior de humanidade. No teatro de Gil Vicente, por exemplo, encontramos judeus que riem, mentem, sofrem e rezam — não como símbolos, mas como personagens. São falsos, sim, são também vaidosos ou cômicos, mas são homens. Estão na procissão dos vivos, e não apenas no banco dos réus. A convivência, ainda que marcada por perseguições e fogueiras, engendra, ao menos, um retrato com mais rugas e menos estereótipos. Portugal conhecia o judeu demais para transformá-lo num puro monstro; por isso, o fazia ridículo — o que é, no teatro da vida, um destino mais digno que o de ser apenas temido.
O que se depreende, enfim, é que o ódio alimentado pela distância é sempre mais cruel que o desprezo cultivado na intimidade. A Inglaterra projetou no judeu tudo aquilo que ela mesma pretendia esconder sob a toga do cavalheirismo: o poder do dinheiro, a frieza do contrato, a lógica implacável da propriedade. Portugal, por sua vez, zombou de seu judeu porque via nele a si mesmo — o trambiqueiro, o ambíguo, o esperto — e isso, ainda que não redima, pelo menos humaniza.
Ambas as literaturas, contudo, falham no essencial: reconhecer o judeu como portador de um destino espiritual que não se resume nem ao ouro nem ao riso. Mas talvez isso seja pedir demais de poetas e dramaturgos — afinal, mesmo entre filósofos, a verdade é um hóspede raro, e muitas vezes, não convidado.
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