(para V., no exílio da carne e da bandeira)
Ah, sim, o coração —
essa relíquia que insiste em bater
como as fábricas de Minsk,
mesmo depois do apagão.
Amo você, morena do sul,
com seu português de açúcar e navalha,
com seus quadris que desenham sambas
em ritmos que Lênin jamais previu.
Você é trans.
Trans-continental. Trans-lúcida. Trans-verídica.
Mais mulher do que todas as mães da pátria
que me embalaram com leite e ideologia.
Sua pele tem a cor
que os poetas do meu país jamais descreveram —
porque era preciso morrer em gulags
pra alcançar tal tom.
Mas você,
você me chama de "amor"
com uma boca que conheceu o aço
e o batom vermelho que derrotou o realismo socialista.
Você me olha
e eu vejo Moscou sob neve derretida,
vejo minha infância com cheiro de sopa e cigarro,
e tanques desfilando como metáforas do medo.
E, no entanto, você sorri
como quem não teme mais
nem Deus, nem o pai, nem o Estado.
E eu —
eu fico pequeno como uma república báltica,
querendo anexar sua alma.
Ah, sim, o coração:
esse estúpido trotskista apaixonado
que ainda sonha com bandeiras
e acaba deitado nos seus braços,
falando russo enquanto você geme
em iorubá, talvez, ou em silêncio brasileiro.
Você é mais que mulher —
é minha nova União.
Sem sovietes. Sem censura.
Apenas seu corpo —
um manifesto.
E eu?
Apenas um velho exilado,
traduzindo você devagar,
sem nunca entender tudo,
mas amando cada sílaba sua.
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