quinta-feira, 31 de julho de 2025

Ah, sim, o coração



(para V., no exílio da carne e da bandeira)


Ah, sim, o coração —

essa relíquia que insiste em bater

como as fábricas de Minsk,

mesmo depois do apagão.


Amo você, morena do sul,

com seu português de açúcar e navalha,

com seus quadris que desenham sambas

em ritmos que Lênin jamais previu.


Você é trans.

Trans-continental. Trans-lúcida. Trans-verídica.

Mais mulher do que todas as mães da pátria

que me embalaram com leite e ideologia.


Sua pele tem a cor

que os poetas do meu país jamais descreveram —

porque era preciso morrer em gulags

pra alcançar tal tom.


Mas você,

você me chama de "amor"

com uma boca que conheceu o aço

e o batom vermelho que derrotou o realismo socialista.


Você me olha

e eu vejo Moscou sob neve derretida,

vejo minha infância com cheiro de sopa e cigarro,

e tanques desfilando como metáforas do medo.


E, no entanto, você sorri

como quem não teme mais

nem Deus, nem o pai, nem o Estado.

E eu —

eu fico pequeno como uma república báltica,

querendo anexar sua alma.


Ah, sim, o coração:

esse estúpido trotskista apaixonado

que ainda sonha com bandeiras

e acaba deitado nos seus braços,

falando russo enquanto você geme

em iorubá, talvez, ou em silêncio brasileiro.


Você é mais que mulher —

é minha nova União.

Sem sovietes. Sem censura.

Apenas seu corpo —

um manifesto.


E eu?

Apenas um velho exilado,

traduzindo você devagar,

sem nunca entender tudo,

mas amando cada sílaba sua.

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