sábado, 23 de setembro de 2017

Não estou morto

Não estou morto

Não estou morto,
não, não, não,
não estou, e faz muito tempo,
isso quando havia girassóis
no campo, algodões, amendoins.
Não estou morto,
não, não, não,
sem asas de pombas,
sem periquitos, sem rochas,
não que a morte me preocupe
ou nos preocupamos com o ar gelado dos cemitérios,
as tumbas quentes de ossos,
a carne sendo apodrecida pelas janelas,
isso tudo é ferrugem, é navio agreste,
é um deserto feito pelos homens,
pelas nádegas e bocetas das mulheres,
pelo cuzinho, pelo cu, por todos os cu.

Faz tempo, eu não estou morto,
não, não, não, e isso faz setembro
ter meio sentido, meia vida, meio
pode de vontade de dizer as palavras
que quero.

Não, isso aconteceu a muito tempo,
quando eu morri eu era um cigano
transformado em nuvem, foi levado
pela cachoeira do tempo dentro
das miragens das vidas antigas.
Eu não vivia naquele tempo,
mas eu não estava morto nem
por ouro, nem por jóias, nem pelo
dinheiro dos quadrupedes, nem pelo galope
silvestre dos seres sem nome,
nada disso, não, não, não.

Eu era um peixe judeu
celebrado imóvel no aquário
as canções secretas do shabat
enquanto minhas mãos empurravam
as grandes grades elevadas da memória,
por isso eu chorava sem saber porquê.

Chorava caracóis, mariposas, rochas...
Chorava e amanhecia chorando,
ia dormir chorando, parecia que o
mar fazia questão de saltar por minhas
barbatanas de judaísmo, ai, judaísmo,
a única religião que realmente presta.

E no entanto eu era negro,
porque não estava morto,
não, não, não, não, 
eu estava cantando,
cantando as doces africanas,
as melodias do povo escuro,
os pretos luares transgressores,
as lindas nádegas negras das 
não-mulheres.

E eu estava morto?
É claro que estava carimbado,
preso a rocha de Pablo Neruda,
enfurnado nos livros, nos lírios de Walt Whitman,
desenhando, desenhando os meus versos
enquanto transavam pelas esquinas,
não os gatos, nem os gentis, nem os povos da nação,
nem os pequenos roedores,
eu só ouvia os orgasmos das mulheres,
a buceta sendo arrombada pelo enorme cacete,
o pau, o caralho, tudo estava dentro de mim
e da minha poesia, mais eles diziam que eu estava morto,
que eu não podia sair pela rua porque o meu cheiro era de gambá,
diziam que eu estava cego, sentado sobre sacos de dinheiro,
diziam vá embora judeu-maldito, mais fique conosco a sua alma,
venda o teu relógio e a tua incircuncisão porque as moedas de prata
não podem ser comidas pelos pobres.

Não estava morto, não estava, eu não estava,
eu jurava essas coisas pela madrugada,
gritando com os sinos cheios de pelos de gato:
eu não estou morto, não, não, não, eu não estou morto,
não, não, não, não, não estou morto.

Abriram as janelas os nortistas desesperados
e jogaram por cima de mim suas pequenas vibrações
malignas, ditando as pragas que os cupins se recusam
a escutar, enquanto as minhas mãos iam de mar em mar
tentando decifrar as constelações da cabalá, lendo dia e noite
a lei de Jesus Cristo, a lei de Maomé, a lei de Moisés,
lutando comigo mesmo para saber se eu estava vivo ou estava morto.

Eu estava morto? Não, eu não estava morto.
Mais ninguém me chamou pelas madrugadas.
Os meus amigos decidiram ir sem mim pelas igrejas,
pelos muros, pelas casas, pelos campos, 
ninguém me encontrava. Ninguém me via.
Eu não estava morto. Viram-no? diziam pelos espelhos
degredados de solidão, enquanto a minha cara esmurrada
sangrava o sangue da desventura humana, a falta de amor.

Um pelicano me acompanhava bicando a carne a alma
transgredindo tudo, dizendo que é preciso recitar os livros
para as paredes enquanto a noite não chega e o sol não chora
sua luz.

Não me encontraram? Não, não me encontraram
porque não me procuraram. Ninguém me procurava.
E eu percorria o sol e a lua como dois carros sem gasolina.
Uma placa explica a Deus a minha condição de exilado:
Não estou morto.

p.s:

esse poema é largo que nem uma lagosta

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