terça-feira, 28 de outubro de 2025

O Despertar da Espada Frontal


Ester não era uma criança de sonhos grandiosos, mas sim de silêncios longos e paciência. Seus dez anos eram marcados mais pelos livros empoeirados da biblioteca de sua casa e o ranger da tábua solta perto da lareira do que por brincadeiras sob o sol. A casa, uma relíquia vitoriana com cheiro de cedro e tempo parado, guardava no seu hall principal um relógio de pêndulo tão antigo que o latão da moldura parecia ter absorvido a luz e a devolvia como uma névoa sombria. Era exatamente ao lado daquele relógio, numa terça-feira chuvosa, que o mundo de Ester se rasgou.

O sino da meia-noite tocou, mas não com o som oco e familiar. Foi um gongo, profundo e vibrante, que sacudiu a poeira das vigas. Ester, que tentava terminar um bordado difícil à luz bruxuleante da vela, sentiu um frio cortar o ar. O pêndulo do relógio parou com um clique seco, e a moldura de madeira, onde eram entalhadas figuras de carvalhos e videiras, começou a girar lentamente, não como uma porta, mas como uma válvula que se abria para o nada. De lá, escorregou para a realidade da sala um par de cascos de cabra, negros e polidos.

Em seguida, surgiu a figura completa. Era um Fauno. Não aqueles alegres e dançantes das lendas, mas uma criatura de ombros largos e uma pelagem castanha escura que parecia permanentemente molhada pela névoa. Seus olhos, de um âmbar pálido, eram cheios de uma tristeza que parecia mais antiga do que a própria Ester. Ele vestia uma túnica de couro gasto e, na mão, segurava um cajado de azevinho que gotejava uma seiva escura. O cheiro de pinho, terra molhada e algo mais forte, como metal velho, preencheu o hall.

“Ester da Casa dos Murmúrios,” a voz do Fauno, rouca como folhas secas arrastadas, ecoou. “Eu sou Phaelan, da Casa da Folhagem Eterna. Eu venho em nome de Upiter.” Ele não pediu permissão, nem fez um discurso. Simplesmente se inclinou e a tirou gentilmente do banquinho, os cascos batendo com firmeza na madeira do chão. “O tempo acabou, menina. As árvores choram, os rios secam, e a Noite de Pullpol engoliu a luz do sol de Upiter. Você deve vir.”

Ester não gritou, nem fugiu. Olhou para a escuridão úmida da passagem aberta atrás do relógio, onde estrelas que ela nunca vira piscavam em tons de azul-ferro. Sua vida toda lendo livros de histórias a tinha preparado para este momento de forma estranha: ela não estava assustada, mas profundamente séria. “Pullpol,” ela sussurrou, o nome soando pesado em seus lábios. “O Feiticeiro dos Ursos e do Fogo Dracônico. Ele já está no trono?”

Phaelan suspirou, o cheiro de pinho se intensificando. “Ele não está no trono, criança. Ele é o trono. Há cinco anos, ele teceu uma malha de escuridão tão densa que até o Grande Sol de Éter parece uma vela de sebo. Ele comanda as Criaturas da Sombra, os Faunos-Traidores, e até as Árvores Falantes estão presas em um silêncio petrificado, incapazes de respirar seus nomes. O poder dele reside na metamorfose – ele se transforma na Fúria de Urso para esmagar exércitos e no Vento Dracônico para queimar florestas.”

O Fauno deu um passo, puxando-a para a beira do portal. O ar lá cheirava a eletricidade e a uma doçura estranha e doentia. “Somente a Lenda da Espada Frontal, a lâmina forjada não de aço, mas de puro pensamento, pode perfurar o coração de Pullpol, não importa a forma que ele adote. Dizem que somente uma criança, destituída de medo e de pretensão, pode empunhá-la. É você, Ester. A última esperança. Pegue-a.”

Ele apontou com o cajado para a mesa de bordado de Ester. Sobre os fios e agulhas, surgiu uma espada curta, mais longa que um punhal, mas menor que uma espada de cavaleiro. Sua lâmina não era polida, mas fosca, e estranhamente, sua forma lembrava o formato de um losango ligeiramente alongado, terminando em uma ponta fina e letal. Não tinha guarda, e o punho era simples e envolto em couro de cervo. Ela emanava um brilho tênue, como o reflexo da lua na água gelada. Ester a pegou, sentindo que a lâmina não pesava absolutamente nada, mas vibrava com uma energia fria em sua mão.

No momento em que os dedos de Ester envolveram o punho da Espada Frontal, o Fauno Phaelan a empurrou para a escuridão cintilante. Eles caíram, não através do espaço, mas através de um silêncio úmido, e a aterrissagem foi abrupta. Ester se viu em uma clareira de musgo cinzento em Upiter. O céu era de um roxo doentio, e onde deveria haver sol, havia apenas uma mancha de névoa negra pulsante – a Sombra de Pullpol.

A jornada através das terras moribundas foi um calvário silencioso. Eles rastejaram por florestas de Salgueiros-Cripta, cujas folhas choravam um orvalho pegajoso sob o comando do feiticeiro. Viram Faunos-Prisioneiros, acorrentados em poços de alcatrão, e Ursos das Trevas, outrora nobres feras, agora transformados em bestas cegas e famintas com pelo coberto de espinhos de gelo. Phaelan guiava Ester com a determinação de quem já perdeu tudo, o cajado de azevinho silenciosamente matando as Criaturas-Sombra menores que se atreviam a se aproximar.

Finalmente, chegaram à Fortaleza de Obsidian. O covil de Pullpol era uma montanha de pedra negra, coroada por fumaça de enxofre. Na sala do trono, Pullpol esperava. Ele não estava vestido com mantos de feiticeiro, mas com uma armadura feita de escamas de dragão cristalizadas, e seu rosto era severo, com olhos de quartzo frio. Ele estava sentado em um trono esculpido a partir da medula petrificada de uma Árvore-Mãe.

“Ah, o último Fauno, e a Criança da Lenda Tola,” Pullpol zombou, sua voz era um som de pedra se partindo. “Eu sou o Mestre da Forma, Phaelan. Eu posso ser a terra para esmagá-la, ou o fogo para queimá-la. Seu brinquedo de luz não pode me tocar.” Ele se levantou, a sombra de seu corpo crescendo e se distorcendo.

Phaelan soltou um rugido de dor e honra, avançando com o cajado para distrair o Feiticeiro. Mas Pullpol não se importou com ele. Com um grito gutural, ele se dobrou e se transformou. Ossos estalaram, a armadura se quebrou, e a massa se expandiu: ele se tornou um Urso-Colossal, maior que uma casa, com presas de ferro e garras que poderiam rasgar a rocha. O Fauno foi varrido para o canto da sala como um boneco de pano, ferido e quase inconsciente.

Ester, no entanto, permaneceu imóvel. A Espada Frontal em sua mão parecia ter sumido, pois ela não a sentia, mas a via. O Urso-Colossal de Pullpol rugiu, e o chão tremeu. Ele avançou, a boca aberta, revelando uma escuridão sem fim na garganta. Ester não hesitou. Ela não olhou para a garra gigantesca, nem para a fúria nos olhos da fera. Ela pensou na Espada Frontal, pensou em sua forma, e pensou na palavra que Phaelan usara: penetrar.

No exato momento em que o Urso estava prestes a cair sobre ela, a menina pulou para a frente, não para trás. Ela não atacou o corpo, mas o único ponto vulnerável, o centro do poder. A Espada Frontal, movida por sua intenção pura e a falta de medo, voou da sua mão, girando uma vez no ar. A lâmina não cortou a pele da fera; ela atravessou o ar, o éter, e perfurou o centro da testa do Urso-Colossal, onde o pensamento se encontrava com a forma.

O rugido cessou imediatamente. O Urso não caiu; ele desmoronou em uma nuvem de fumaça fétida e cinzas. No chão, onde a espada havia fincado, jazia o corpo inerte de Pullpol, novamente na forma humana, sua testa marcada por uma linha brilhante de puro pensamento onde a Espada Frontal se enterrou. O Feiticeiro das Metamorfoses havia sido derrotado, não pela força, mas pela singularidade da intenção.

A névoa roxa no céu de Upiter começou a se dissipar, revelando a luz dourada e calorosa do Grande Sol de Éter. Os Faunos-Prisioneiros, onde quer que estivessem, sentiram o peso das trevas ser levantado. Phaelan, mancando, se levantou e olhou para Ester, a espada de volta à sua mão.

“Você conseguiu,” ele sussurrou, e em seus olhos, pela primeira vez, a tristeza antiga foi substituída por um lampejo de gratidão. Ester, exausta, segurou a espada, sentindo o retorno do peso leve e frio da lâmina. A aventura havia acabado. Upiter estava salva e, agora, o Fauno a levaria para casa, de volta ao ranger das tábuas e ao cheiro de cedro, para que a menina, agora uma heroína, pudesse novamente bordar à luz da vela, guardando o segredo da Espada Frontal em seu coração.

Nenhum comentário:

Postar um comentário