quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Balada dos Imortais II


UM

No princípio de todas as coisas, quando não havia estrelas nem mares, Bekar caminhava sozinho no silêncio do alto firmamento. Ele era chamado de o Único, pois sua luz brilhava sem fonte, e sua voz era canção antes que existisse eco. Mas dele nasceu também um outro, seu irmão, Karan, belo de rosto, mas de corpo enredado em patas de aranha, como se o engano tivesse tecido sua própria carne. “Tu me chamas irmão,” dizia Karan, “mas não aceito a tua luz que me cega.” E Bekar respondia, com tristeza: “Não é minha luz, mas a luz do Ser que nos criou. E não suportas a ti mesmo, não a mim.”


DOIS

Houve então a primeira luta. Karan lançou-se sobre Bekar e cravou-lhe as presas no calcanhar, tentando envenenar-lhe o passo. Bekar caiu de joelhos, mas sua mão segurou o pescoço da aranha e, com voz de trovão, lançou-o ao vazio. “De ti nada restará senão fome e trevas, até que aprendas humildade.” Mas Karan, caindo, gargalhou: “Se não posso possuir tua luz, hei de destruí-la em quem tu amas.” E assim, desde o princípio, o veneno do ódio se tornou seu alimento.


TRÊS

Muito tempo depois, quando Bekar atravessava as margens do Nada, encontrou diante de si o Espelho do Mundo, lago cristalino que refletia não o que é, mas o que pode vir a ser. E ali, como se houvesse sempre esperado, estava Guzelik, a bela, deusa do amor. Seus olhos eram auroras e seu semblante era paz. Bekar contemplou-a em silêncio, e por um instante esqueceu-se do irmão caído. “Tu me procuravas?” perguntou Guzelik. Bekar sorriu e respondeu: “Não, mas encontrei mais do que buscava.”


QUATRO

Eles se sentaram juntos diante do Espelho, e conversaram como dois viajantes que se reconhecem antes mesmo de dizer os nomes. Guzelik falou do desejo de criar, e Bekar lhe contou das dores da luta. “O mal sempre retorna, mesmo quando é vencido,” disse ele, “como uma sombra que se move com a luz.” E Guzelik retrucou: “A sombra existe porque a luz existe; mas onde há amor, a sombra não reina.” Então, de sua união, surgiu um planeta, coroado de mares e montanhas, onde rios cantavam como harpas e árvores dançavam ao vento.


CINCO

O planeta era belo, mas a beleza desperta inveja. Do abismo, Karan viu a obra e roeu-se de raiva. “Um espelho foi dado a ela, mas eu serei o espelho da destruição. Onde houver rios, lançarei veneno; onde houver árvores, trarei fogo.” Em suas cavernas de sombra, teceu uma teia tão vasta que podia cobrir céus inteiros, e em sua mente ardia um único propósito: desfazer o amor que ele jamais poderia ter.


SEIS

Certo dia, Bekar falou a Guzelik com olhar grave: “Meu irmão não cessará. Já me mordeu uma vez, e sua fome não se extingue. Virá contra nós.” Mas Guzelik não se perturbou; ergueu o rosto e disse: “Então lutaremos não só com a força, mas com aquilo que ele jamais conhecerá: a compaixão.” Bekar, porém, calou-se, pois sabia que contra a malícia do irmão até a compaixão podia ser retorcida.


SETE

Houve um tempo em que Karan subiu do vazio como fumaça, e sua forma terrível cobriu metade do firmamento. Os mares do novo mundo estremeceram, e as montanhas tremeram. “Vês, irmão?” bradou ele. “Teu planeta é frágil como vidro! Basta minha teia e tudo se quebrará.” Bekar respondeu com voz de trovão: “Não quebrará, pois foi gerado de amor, e amor é mais forte que vidro.” Então lutaram de novo, e mais uma vez Bekar lançou Karan ao abismo. Mas o veneno no calcanhar ardia ainda, lembrando que a vitória não era plena.


OITO

Passaram-se eras, e o mundo de Bekar e Guzelik florescia. Povos nasceram, aprendendo canções, artes e memórias. Os rios refletiam o céu, e as montanhas guardavam segredos. Guzelik sorria ao ver as crianças correrem pelas colinas, e Bekar, embora ferido, sentia no coração uma paz que jamais conhecera. Mas sempre, em noites de silêncio, ele ouvia no fundo do vento o sussurro da aranha: “Ainda estou aqui.”


NOVE

Certa vez, Guzelik levou Bekar de volta ao Espelho do Mundo. “Olha,” disse ela, “a criação é um reflexo nosso. Mas não devemos possuí-la como reis, e sim guardá-la como pais.” Bekar inclinou-se sobre a água, e viu seu próprio semblante refletido ao lado dela: luz e amor unidos. Mas quando as ondas se moveram, também viu, fugaz, o rosto de Karan, rindo como se o espelho fosse dele. Bekar recuou, e Guzelik pousou-lhe a mão: “Não temas. O mal sempre tenta ver-se como centro, mas nunca poderá ser raiz.”


DEZ

O ódio de Karan cresceu tanto que já não o alimentava: consumia-o. Ele rangia as presas contra o vazio, e cada mordida em si mesmo gerava monstros, pequenas aranhas que rastejavam em busca de brechas no mundo. “Destruir-vos-ei por meio de vossos próprios filhos,” dizia. “O amor vos dá frutos, e eu darei venenos.” E assim a guerra não era apenas entre irmãos, mas entre descendentes do amor e descendentes do rancor.


ONZE

E Bekar ergueu-se uma vez mais, contemplando o horizonte do planeta. “Se há luta eterna, que seja eterna a esperança,” disse. Guzelik assentiu: “A esperança não é menor por ser combatida; é maior, pois sobrevive.” E os povos do mundo ouviram fragmentos dessas palavras como se fossem ecos em suas lendas. Aprenderam que não era apenas Bekar quem devia lutar, mas cada um que amava a vida diante da sombra.


DOZE

Assim começou a história dos imortais, não apenas como lembrança de batalhas, mas como convite à escolha. Pois Bekar e Guzelik continuam a caminhar sobre o planeta que geraram, e Karan ainda espreita no vazio, roendo-se de ódio. Mas o mundo não é feito de ódio, e sim de amor; e ainda que as sombras caiam, a luz sempre se levanta. E quem ouve esta balada deve escolher: seguirá o caminho do veneno, ou do amor que sustenta céus e mares?



Nenhum comentário:

Postar um comentário