Ruan - conto fantástico
No dia em que disseram que a morte se aproximava dele, Ruan se levantou a maneira de seus ancestrais que vieram da Espanha, levantou os punhos e gritou com sua voz rouca, cansada pela velhice: "Eu morro, mais eu morro para entrar na história".
A barba que agora era branca como a lã de uma ovelha bem limpa outrora fora muito preta, escura. Na escola diziam que seus ancestrai haviam sido Judeus que se converteram a fé católica por imposição. "Tolice", ele dizia puxando os bigodes para baixo. "Meus bisavós eram espanhóis de casta dura. Vieram dos mouros, não dos Judeus. Por isso eu tenho esse tino comercial nas veias, o desejo ardente de fazer guerra constantemente".
Os amigos riam dessas bravatas. Seu melhor amigo sim, era um Judeu de nome Elias Savedra. Era um rapaz pequeno que usava óculos muito grandes, seus olhos azuis pareciam fechadinhos, e não tinha um pelo em seu belo rosto redondo. O nariz de águia dava-lhe um ar de sábio, o que deixava Ruan muito admirado, principalmente porque Elias Savedra nunca saia de sua casa sem estar segurando um caderno pequeno de anotações e uma caneta tinteiro que sempre estava tirando e voltando ao seu bolso.
- Diga-me Elias, porque chove em todas as cidades daqui menos na nossa? Você acha que é por causa do pecado que carregamos?
-Não seja tolo, Ruan - respondeu Elias rispido. -Não convém nós, os intelectuais da América compactuar com crenças inúteis e esnobes.
- O que é isso Elias? - riu-se Ruan. - Por acaso tu estás se tornando comunista?
- Jamais! Nem repita essas palavras Ruan, para que meu pai não te ouça. Ele é um rico importador de tapetes da Arábia para a América do Sul. Se ele ouvir uma coisa dessas é capaz de me herdar e morrer de desgosto logo em seguida.
Ruan e Elias eram inseparáveis. Até nas idas noturnas que faziam aos prostíbulos mais conhecidos da região. Foi por causa da paixão fulminante que os dois tiveram por uma linda morena chamada Rosalinda que a amizade entre ambos os homens desmoronou.
Elias tinha o charme e a palavra do intelectual, e logo estava galanteando a pequena meretriz com palavras lisonjeiras, no entanto Ruan era prolixo no amor, e logo começou a encantar Rosalina, e não tardou em seduzir a jovem com promessas de casamento e para mostrar a sua boa-vontade jurou que iria tirá-la do bordel e casar com ela. Prova disso foi o anel de ouro maciço puro que ele deixou com a jovem.
"Rosalinda, esse anel era de minha mãe, antes que ela morresse. E quis o destino, que ele fosse teu, porque teu é o meu coração. Tome, fique com ele porque vou levá-la para se casar comigo. Só que primeiro tenho que fazer a vontade do meu pai. Ele é um homem muito ríspido e tradicional. Por isso só peço que você tenha paciência porque virei buscá-la".
Realmente Rosalina esperou muitos anos e muito tempo, até que Ruan voltasse para cumprir a sua palavra. A dona do prostíbulo, Mirabel, ria da cara da jovem, e dizia para ela:
- Vamos, Rosalinda, pequena tola. Não vês que ele nunca vai voltar para te buscar?
- Eu acredito nele, Mirabel.
- Pare de sonhar. Isso não convém a uma puta. Vamos, outros senhores dos mares estão vindo essa noite para provarem o mel doce do nectar das minhas putitas latinas, e quero que você seja uma delas.
-Por favor, não dona Mirabel, eu lhe suplico, faço qualquer coisa, mas não me deixe deitar com esses caras de peixe, nem com esses doleiros que trazem suas concupiscências para a nossa alma. Por favor, por Deus, e por todos os santos.
- Não sabia que você era tão religiosa - riu-se Mirabel. - Tudo bem. Passe minhas roupas. Depois vá e faça uma sopa com asas de chuva para mim. Quero depois massagens nos meus peitos, veja como estão caídos, estou parecendo uma vaca.
Acontece que Ruan voltou para honrar a sua palavra. Já não era o mesmo de antes, porque usava chapéu, gravata e sapatos pretos. Tinha um ar esnobe, mas ria com muita facilidade.
Pegou Rosalinda pelas mãos, e com um salto levou ela até o céu e depois caíram juntos no chão.
- Espere aqui, Rosalinda, irei urinar ali, antes de avisar meu pai sobre o nosso casamento.
- Não demores tanto - respondeu Rosalinda com lágrimas de chumbo no rosto. - Não demores, porque pode nevar, ou o sol cair em cima da minha cabeça. E eu não quero carregar o meu luto antes de se casar com você.
Rosalinda se tornou muito respeitada como uma baronesa na cidade quando se casou com Ruan. Ele havia trazido muito capital estrangeiro para os negócios do pai, e havia até mesmo feito as pazes com Elias que tinha se tornado o seu próprio conselheiro e advogado municipal muito competente. Foi por causa de Elias que a chuva voltou a cair em toda a cidade, esfriando a terra que estava pegando fogo. Ruan estava sentado em sua cadeira de balanço na frente da janela vendo os pingos da chuva grossos caindo pelo asfalto da rua.
- Elias fez muito bem pela cidade, não é meu amor?
- Claro - respondeu Rosalinda. - Não é à toa que ele também conseguiu expulsar aqueles dragões vermelhos que estavam fazendo um grande estrago nas nossas plantações de café.
- Fiquei sabendo que eles foram para a cidade de Buenos Aires, e que derrubaram muitas estrelas sobre as cabeças dos gaúchos quando sobrevoaram pelos pampas.
- Não será isso uma mentira dos ciganos meu amor?
- Não - respondeu Ruan. - Os ciganos estão agora em outro mundo. Aqui só passam as informações matinais as mariposas e os percevejos.
Meio século depois Ruan estava cansado e fatigado de tanto carregar pirâmides, esboços, casas e ventos nas mãos. Seu corpo dóia, e seus ossos pareciam feitos de farelo. Por fim uma pequena mulher se aproximou dele dizendo que a morte estava vindo ao seu encontro.
- E como ela é?
-Ela tem a forma de uma linda mulher. Só que suas mãos são patas de leão.
Então Ruan gritou:
"Eu morro, mas eu morro para entrar na história".
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