quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Dia


Com quantas manhãs irei fazer um dia?
E quando eu passeio pela memória
cantando aqueles beijos, sendo mel, elefante,
porque não irei recordar a laranja da suas nádegas?
Não posso cantar a nudez como Boccaccio?
Ai, quando eu caminho preciso olhar,
olhar as coisas, porque sou o cronista de tudo:
da miséria, da riqueza insuportável dos condomínios fechados,
dos super-mercados, das sacolas, preciso cantar.
Ali esta ela, ali esta ele, a ninfa do rio, sentada
as margens das folhas, o centauro negro feito de marfim,
o unicórnio cavalgando até o bosque, as abelhas,
as lésbicas que estão juntas como sabão,
os jovens homossexuais que comem carvão,
os bosques, meus bosques destruídos pelos
industriais para fazerem casas de aluguel para alugarem
ao pobre, ao oprimido e ao aflito.
E vou andando como quem carrega uma cruz,
ou quem sabe uma lua que me tinge os olhos
de turva sangrenta de uva, ou um licor de melancolia
que faz bem para o meu coração ensolarado.
Mesmo que você não fale um a, e nem queira me entender,
eu te entendo, assim como as nuvens, como as plantas,
sei o que o touro passa preso, e porque os bois querem
vender para mim sua carne no matadouro longe da cidade.
Noite e dia são sempre a mesma farinha, sempre
o mesmo outono, o mesmo verão, e começamos
sempre a cantar as mesmas coisas que nos alegram.
Eu já declarei Whitman meu mestre, e Neruda,
e Lorca, e João Cabral, e todos os outros poetas,
Marly de Oliveira, Olga Savary, Marianne Moore,
não posso, tenho que admirá-los para formar o dia,
o dia que nasce dentro do poço e dentro da água,
porque esse dia é o dia menos, o dia que se forma
como um relâmpago, o dia que se vai para anoitecer
como se a chuva da vida determinasse nossas ações.

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