(conto)
...é preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós...
José Saramago, escritor português
A cidade pareceu-lhe terrivelmente aconchegante. Acabara de chegar ali, vinha do interior, não era um viajante contumaz.
Gostou das constantes luzes dos imensos prédios, minha cidade mais parece uma colmeia apagada, pensou, enquanto sua companheira perguntou o que estava achando, gostei, é muita coisa junta nessas cidades grandes.
É sim, ela lhe disse, e ele sorriu para ela.
Como podia não ter nascido ali naquele imenso movimento de carros, motos, ônibus e caminhões indo e voltando como se estivessem em uma corrida eterna, gladiando uns com os outros para não ganharem nada a não ser, cumprirem suas tarefas de trabalho.
Nasci numa cidade pequena com um transito mais horrível que este e no entanto aqui, vejo ordem, decência, ritmo, até me arrisco a dizer, poesia.
Ele era metido a literato e de vez em quando escrevia alguma coisa nos jornaizinhos de bairro de Adamantina.
Tentou ver as estrelas mas o céu não era transparente, e sim, embaçado, coberto de nuvens úmidas e frias.
Quem precisa de estrelas, se tenho, luzes neons de fachadas de motéis, centros financeiros, hospitais particulares e fast-foods estrangeiros que nos roubam o salário com suas gordurices alimentares.
Talvez quem precisa da luz das estrelas seja o pastorzinho solitário no campo, para ser iluminado na escuridão e voltar para a casa levando seu rebanho. Ou a lua o ajuda nessa tarefa. Aliás, não vejo lua nessa cidade. No entanto, quantos faróis. Verde, vermelho, amarelo. Sempre se repetem.
Que sensação de ordem num lugar em que os noticiários jornalísticos sempre fazem questão de mostrar apenas a desordem. Meditou um pouco.
Viu que sua musa dormia em seu ombro. Se sentiu feliz por isso. Ela devia estar cansada.
Notou que havia uma quantidade absurda de árvores, como se a natureza insistisse em dizer aos homens que ali eram eles apenas hospedes e não donos de nada da vida. Riu sozinho. Ou talvez a natureza pensasse que os homens, esses seres estranhos, fossem apenas um tipo de praga. Suspirou, quando viu um enorme rio que separava as quatro avenidas principais de se ir de carro.
Um rio sujo, reparou, já que o céu escuro clareava e a luz pouca do sol ia tornando-se maior em todos os cantos do carro.
Observou com atenção os grafites que desenharam sobre os muros de umas casas. Realmente é arte, mas ponderou, se eu fosse o capitalista agonizante dono dessas casas, também ficaria uma fera caso escrevessem em palavras no muro: "fora temer!"sem minha autorização expressa.
A pequena amada abriu os olhos. Retribuíram os dois o mesmo sorriso, como se ela fosse o espelho dele e ele o espelho dela. Gostei dessa cidade, ele pensou para si, em silêncio.
-Já chegamos? - ela perguntou.
-Quase, sim!(2018)
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