A CAVALA - conto

 

A CAVALA

 

              Em dezoito de agosto a chuva caia calma e suave pelos telhados das casas do Norte. As pessoas iam para os mercados e voltavam felizes por terem nas sacolas muitas frutas e legumes. Nesse tempo os lobisomens eram raros, e só podiam ser vistos nas matas e florestas do outro lado do rio que cruzava a cidade como uma enorme serpente ondulada. Algumas pessoas do lado direito entre a longa ponte e o ponto das prostitutas e de outras partes do país chamavam a cidade de a Cidade do Rio. O nome da cidade era muito antigo e algumas pessoas velhas e rotas, capazes de se lembrar de até mesmo das coisas mais profundas do oceano diziam que o seu nome verdadeiro significava “Veia de Prata”. A cidade se chamava Altopicoshuypis.

Os mais corajosos aqueles que tinham dentes de ouro na frente de toda a boca se embrenhavam na mata em busca de encontros perigosíssimos. Voltavam contando coisas que arrepiavam os cabelos dos mais covardes, e fazia o dono do bar mais movimentado de Altopicoshuypis pigarrear como que duvidando de tudo o que contavam.

 Dei de cara com um enorme Mapinguari, disse Fulorzinho, que era um caçador experiente. Ele era grande e vermelho, nunca vi uma criatura mais estranha e lenta.

É mesmo? Duvidava o dono do bar, o turco Malamed. Era vermelho e grande?

Isso mesmo foi o que eu acabei de falar, turco. Retorquiu Fulorzinho irritado. Vocês da Turquia não sabem ouvir não?

- Quem tem ouvido escuta. É o que dizia meu pai quando morávamos em Istambul. Mas é difícil acreditarmos em fábulas como essas Fulorzinho.

- Pois o bicho parecia uma preguiça enorme. Devia ter quatro metros de altura, disse Fulorzinho enxugando a boca com um guardanapo em forma de toupeira.

 

     As conversas do bar do turco Malamed giravam em torno de tais acontecimentos. Entre bebidas e comilanças alguns insensatos ousava contar casos de encontros entre eles e os vampiros da região. Poucos ousavam contar sobre os curupiras que andavam na mata, prendendo caçadores para deixarem em paz as pequenas criaturas que lá viviam.

            No pequeno bairro de Boa Esperança, Melquisedeque não levava em consideração nenhuma dessas bravatas. Diziam que ele era igual ao velho turco, por isso não aguentava escutar lendas. As pessoas acenavam a cabeça em reprovação quando Melquisedeque passava, por causa da sua teimosia em negar tudo o que fosse fundamentalmente sobrenatural. O coração de Melquisedeque se punha para fora como um pássaro de ferro, fazendo as moças de seios enormes suspirarem de paixão por ele. Sua esposa já estava grávida e o bebê estava prestes a sair andando da sua barriga quando avistou uma enorme serpente no quintal e tornou a voltar correndo para a proteção do útero da mãe.

 Seu filho vai ser um covarde Melquisedeque, disse Florbela gargalhando de prazer em sentir o bebê novamente chutando sua barriga.

 Ele vai ser macho que nem o pai, respondeu Melquisedeque bufando entre o dente muito branco e sua língua de hipopótamo. E também não vai acreditar nas histórias da carochinha que esse povo sem noção vive repetindo como papagaios no bar do turco.

 

    As noites se tornaram frias e húmidas pela cidade quando aconteceu algo insólito que arrepiou o coração do mais valente. Disseram que Ana Batista, filha do coronel Batista, havia tido um filho com o vaqueiro Jorge Pingão. O vaqueiro que era o mais respeitado empregado do coronel recebeu a benção do patrão para se casar com a menina, que de tão alva conseguia parecer com um urso polar mesmo vivendo em uma terra em que a neve só aparecia quando os anjos faziam questão de derramar caspas pelos orvalhos do campo. O vaqueiro e a menina tiveram um filho. Nessa época o vaqueiro era acostumado a ler livros terríveis de encantamentos, e tinha tido um terrível problema com uma feiticeira que morava do outro lado do rio, entre as árvores. Por causa do maleficio enviado pelas bruxarias de tal bruxa o vaqueiro passou dia sim e dia não a se transformar em um terrível lobisomem de plumagens secas, com a cara de lobo percorrendo a cidade, seus olhos vermelhos espumando como saliva, e sua boca escancarada querendo sangue e sofrimento.

 Tenho certeza que a feiticeira o encantou por causa de alguma coisa que ele fez para ela, disse Maria Chuchu, a maior fofoqueira da cidade.

Deixa de falar bobagens, disse Melquisedeque, estão dizendo que o vaqueiro perdeu uma aposta de jogo e para saudar a dívida com o coronel, seu sogro, teve que fazer um pacto com o Coisa-ruim.

É mesmo? Aguçou os ouvidos na porta da casa Maria Chuchu, que de tão curiosa acabou levando um tiro da asa de um anjo que acabou caindo da Noruega e sem querer caiu em cima de seu telhado, deixando a mulher morta por um milagre de segundos. Essa também foi a opinião de Marieta, aquela menina sempre foi uma grande fofoqueira.

 

Fofoca ou não é preciso tomar cuidado, disse Florbela. Todo mundo sabe que lobisomem gosta de recém-nascido.

Deve ser por isso que seu filho não quer mais sair de dentro de seu útero, não é mesmo? Disse Maria Chuchu, dando uma risadinha salgada de cebola e piscando o olho para Melquisedeque, que virou o rosto para a lua e suspirou fazendo dois alhos saírem de suas narinas.

 

                        Depois que o caso do lobisomem chegou aos ouvidos do dono de um circo perto da cidade vizinha, esse fez questão de levar sua lona e sua trupe circense para a cidade, ganhando algum dinheiro com a vantagem de dizer que o Homem-lobo estava de posse de seu circo, e que com apenas uma moeda de ouro qualquer pessoa fosse jovem, idoso, carente ou rico, poderia ver a criatura e inclusive, poder-lhe-ia atirar-lhe pedras por cima das grades. Melquisedeque chegou até mesmo levar Florbela e seu filho dentro do útero para o circo, apenas para relembrar os momentos em que vira as bailarinas em cima da corda bamba, no tempo em que vivia na Paraíba. Ficou horrorizado com o tratamento que o povo da cidade de Altopicoshuypis estava dando ao Homem-lobo, que mais parecia ser um idoso muito peludo, os dentes da frente todos amolecidos, e ao invés de ter garras suas mãos pareciam lembrar as nadadeiras de uma foca. A cada pedra que o povo lançava nele Melquisedeque balançava a cabeça em sinal de reprovação. “O povo nunca vai escolher Cristo. Sempre vai optar por Barrabás”, pensou para si mesmo, cruzando seus olhos com o do Homem-lobo, que abriu um grande sorriso em sinal de que tinha entendido telepaticamente a frase que Melquisedeque acabará de falar para si.

  Era dezoito de agosto e a chuva parecia estar sentindo um tédio imenso de estar caindo sobre o chão de Altopicoshuypis. Os bruxos que abriam suas tendas e usavam seus turbantes na cabeça estavam sentados agora em frente à Praça Central. Comentavam sobre os últimos acontecimentos na cidade. O aumento dos turistas norte-americanos faziam com que rolos de dólares pudessem ser jogados pelas esquinas. Havia um absurdo movimento de pessoas estranhas por todas as partes.

 

Isso aqui está parecendo à Índia, disse Fulorzinho com o cachimbo na boca.

 

- Graças a Deus por isso – disse Malamud.  

 

                As meninas de menor idade olhavam para a rua com os seus olhinhos de peixe para a rua. Elas estavam completando dezoito e dezenove anos, e viam os rolos de dinheiro que os turistas arremessavam para a rua. O aumento da prostituição foi drástico. A dona do bordel local era uma gorda senhora que se enfeitava com muitas joias nos braços, no pescoço, em cada dedo havia um anel de ouro ou com uma pedra de diamante. Mesmo não se importando com a origem das meninas que permitia usar seu imenso estabelecimento para venderem os corpos, ela tinha esperança de dar uma vida boa e religiosa para a sua filha, Sâmara, que tinha um rosto delicado e uma voz lenta de nuvem. Ficou conhecida em todo Altopicoshuypis a desobediência da filha da alcoviteira, que fez questão de sair para uma festa regada de vinho e orgias por todas as partes, bem do lado Sul da cidade, onde se podiam ver turistas com malas cheias de dinheiro em todo lugar. Ao voltar para a casa Sâmara topou com a cara da mãe com um furor terrível como se acabasse de declarar guerra ao mundo. Depois que deu uma surra de ferro quente na filha, costume dos mais antigos, a severa dona do bordel gritou:

- Não quero mais você na minha casa. Você vai aprender agora o que é ser quenga, sua cara de cavala.

  Em minutos mágicos a menina saiu da casa, não sem antes ter sua cara se transformado em uma cara longa de cavalo, conservando os traços femininos da adolescência no corpo, como se fosse um minotauro. Ao ver no espelho o que tinha acontecido com o seu rosto, Sâmara saiu em disparada sem conseguir pronunciar alguma palavra, apenas gritando em alto som, arrepiando os moradores de Altopicoshuypis: “CAVALA! CAVALA! CAVALA!”.

 

    - Que noite estranha essa – murmurou Melquisedeque, enquanto Florbela fazia uma sopa para ele, que havia acabado de voltar do trabalho.  – Nada de extraordinário acontece nessa cidade!

 

Fim

 

 

 

A MORTE DO CORONEL IVAN MACEDO

 

A MORTE DO CORONEL IVAN MACEDO

(CONTO FANTÁSTICO)

 

    O coronel Ivan Macedo sabia muito bem que sua esposa, Samara Alburquerque de Andrade, há muitos dias estava se encontrando com o seu amante às escondidas.  Em silêncio profundo, ele meditava, quando ela entrou pela porta. Já ia dar meia-noite em ponto, quando ele olhou o seu relógio de pulso.

- Não sabia que você ia estar acordado – disse Samara. – Como anda a dor da sua perna?

- Está bem melhor! – respondeu Ivan, com um leve bocejo. – E o seu amante? Como anda?

- Você quer mesmo ter essa conversa há essas horas? – perguntou Samara com indignação. – Podíamos conversar amanhã de manhã. Preciso dormir. Estou cansada.

 

   Ivan Macedo havia sido ferido na sua perna durante a noite. Atentados aconteciam muito por aquela região, onde ele fez questão de comprar uma bela casa com cobertura e lareira.

O tiro da bala do revólver havia acertado a sua perna esquerda.

 Os amigos mais chegados, desde os tempos do colégio militar, costumavam chama-lo de Leão. Ele gostava muito da metáfora.

  O Leão, além de ser conhecido como o rei dos animais, era um animal feroz, capaz de amedrontar qualquer pessoa; caso alguém tivesse um encontro com essa fera sem uma boa arma na mão, era bom se ter boas pernas para correr.

  

  Ivan agora se recordava dos tempos em que saia para caçar patos selvagens e outros animais com os mesmos colegas da escola militar. Era um jovem ousado e respeitado pelo seu grupo. Por isso doía-lhe tanto a notícia do seu médico que não teve pena em anunciar o fato:

 

 - Essa bala atingiu um nervo muito importante da sua perna, coronel – disse o médico, tirando os óculos redondos da sua cara cavalar, para limpá-los.

 - E o que isso significa doutor? – perguntou Ivan, apreensivo. – Vou poder continuar com as minhas atividades normalmente, não vou?

- Acredito que não! - respondeu o médico com sinceridade. – A bala está encravada, e acertou esse nervo, que como eu já te disse, é muito importante para a sua perna. Infelizmente o senhor irá mancar para o resto da vida.

- Vou ter que usar bengala também, doutor? – disse Ivan com um sério acesso de tosse percorrendo sua garganta.

- Acredito que sim! – disse o médico.

 

  Uma lenta garoa começou a cair pelo bairro, e o coronel Ivan sentiu os fantasmas das suas lembranças agitando sua alma decadente. Seus cabelos, que um dia foi de um negro profundo como o céu, agora estavam mais brancos do que a lã de uma ovelha.

 E era assim que ele se referia a si mesmo, quando algum amigo ia visita-lo: - Não sou mais um leão, como antigamente; agora sou como uma ovelha manca sendo levada ao matadouro.

 

   Lembrou-se do tempo e dos dias em que amava profundamente Samara.

 Quando a viu falando francês, se encantou profundamente. Ele era um típico amante da cultura francesa, e decidiu abordá-la firmemente, mesmo sabendo que ela já conhecia a sua fama como “coronel famoso com as prostitutas do bordel dos mais variados lugares do país”. 

 Ivan chamou-a de “minha pequena” na primeira conversa que conseguiu ter com ela a sós. E Samara respondeu firme e bruscamente:

- Pequena é tu! – disse Samara.

 - Não quis ofende-la – disse Ivan. – De onde vim, na minha cidade natal, é costume chamarmos nossas mulheres dessa forma, delicada e poética.

 - Não gosto de poetas – disse Samara. – Prefiro os homens de combate.

- Homens como Hemingway, não é? – perguntou Ivan, sabendo qual seria a resposta dela.

- Homens que se assemelhem a leões – respondeu Samara.

- Então você não pode ser comparada a uma bela borboleta, não é mesmo? – perguntou Ivan.

- Prefiro ser chamada de  Tigresa – disse Samara.

 - Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel – cantou Ivan.

 

As unhas de Samara eram pintadas de negro, e as íris de seus olhos eram da cor pura do mel. Ela ficou encantada com o coronel Ivan Macedo. Antes que o ano acabasse, ela aceitou o seu pedido de casamento.

 

  Samara ainda continuava pintando os seus cabelos de negro. Não aceitava os avanços da idade. Mesmo quando descobrira as traições do coronel, não se sentiu envergonhada: ela também tinha seus amantes, com os quais se deliciava nas noites em que Ivan passava as madrugadas fora, bebendo ou jogando.

 

“Ela deve estar com algum amante gordo e imbecil”, pensava Ivan. “Semelhante a um grande hipopótamo, que vive na sombra das águas do rio Nilo”.

 

  Nos dias que antecederam suas noites de insônia, quando a dor da sua perna aumentava drasticamente, a morfina o fazia meditar e pensar sobre como seria o rosto dos amantes de sua esposa.

Pensava em escrever um livro de memórias, em que poderia recordas as suas lembranças no tempo em que pegava as putas mais atrevidas do bordel, deixando-as com as pernas bambas e sem folego com os seus vinte e três centímetros descomunais que possuía.

Recordou a primeira vez que pôs o cacete para fora, mostrando aos olhos de Samara a prepotência do seu imenso órgão genital.

Ela arregalou os olhos, como se não houvera visto em lugar nenhum aquilo. Assombrou-se com o tamanho gigante da cabeça vermelha.

- Não sei se vai caber tudo – disse Samara, falando mais para si do que para Ivan.

Ele riu gostoso com a situação. Gostava de assombrar as moças, e de certa forma seu pau, sempre que dava essa cena para a contemplação dos seus olhos, o fazia pensar na palavra com que os colegas do colégio militar se referiam a ele: um Leão, um verdadeiro leão.

Samara abriu a boca e engoliu a rola gigante do coronel. Em poucos segundos sentiu seus lábios adormecerem, e se cansou de boquetar o tal cacete.

- Cansa! – disse Samara.

- Não sei se cansa, nunca chupei meu pau – disse Ivan, gargalhando.

 

Samara deitou na cama e ficou com as pernas abertas, deixando antever aos olhos do coronel sua bela buceta macia e raspada.

 

Ambos se satisfizeram com a primeira relação sexual depois do casamento, como mandava a boa tradição dos pais da moça.

 

  Tudo isso agora não passava de uma leve lembrança, como se os dias e os tempos em que Ivan Macedo, o coronel Leão, tivesse vivido fossem apenas uma flor murcha que chegava ao fim.

Na frente da sua cadeira de repouso, um espelho mostrava a sua face. A lua podia ser vista se refletindo pela janela.

Quantas vezes ele não viu a lua em outros lugares, em outros países? Havia visitado a França, a Polônia, a Rússia, o México.

  E agora ele estava ali, entravado, parado, com a perna alojada a uma bala de ferro, enferrujando seus ossos por dentro.

 Samara estava dormindo na cama.

O coronel sentiu pena das palavras que disse para ela.

- Me desculpe por ter dito aquelas coisas – disse Ivan.

Ele sabia que ela não estava ouvindo, pois dormia profundamente. Realmente estava cansada.

“O hipopótamo deve ter dado muito trabalho na cama”, pensou o coronel, satisfeito em não sentir ódio, nem ciúmes, nem rancor. Apenas sentia a sua perna alojada com uma bala.

 

   Ivan Macedo, o coronel, levantou os olhos para a porta do seu quarto, e viu na sua frente uma figura encapuzada, segurando uma espécie de foice.

 

Nada disse. De dentro do capuz uma voz feminina chegou até os ouvidos do coronel:

 

 

- Coronel Ivan, vamos?

 

- Eu já estava esperando isso – respondeu Ivan.

Fim

A VENDEDORA DE MAGIA - conto

 

A VENDEDORA DE MAGIA

 

      O mercado de peixe local era muito requisitado internacionalmente. Os pescadores ganhavam muito bem por cada peixe que vendiam para o exterior. Miguel gostava muito de passear pelo mercado de peixe, não sentia enjoo como seu irmão Santiago, que não só não podia sentir o odor dos peixes, como não podia nem sequer prova-los.

- És um grande fresco Santiago, disse Miguel irritado com o irmão. - Não existe coisa melhor do que peixe para se comer. É o símbolo cristão por excelência.

- Pois o símbolo dos cristãos deveria ser um porco, disse Santiago que não era religioso como o irmão, e odiava ir para as missas. - Ai sim eu ficaria contente. Afinal é o que eu mais gosto de comer. Porco!

Que não te ouça os judeus que compram as carnes dos tubarões de duas cabeças no mercado de peixes, disse Miguel.

          Alguns ciganos chegaram pela cidade carregando bandeiras com vários símbolos diferentes. Santiago observava as ciganas com olhares de sedução. Nenhuma lhe prestava atenção, pois os ciganos tinham os seus próprios assuntos para cuidarem.  Levantaram a tenda do lado direito da cidade, o lado da sorte, onde as pessoas mais pobres viviam.

 

- Que há que você está vendo? – perguntou Miguel segurando um peixe vivo de dois olhos no seu relógio de pulso. – São os ciganos? Fiquei sabendo que já chegaram pela cidade. Espero que eles paguem o imposto devido aqui... Não é justo apenas nós pagarmos os impostos.

 

- Deixe de dizer asneiras, Miguel – disse Santiago. – Os ciganos têm suas próprias regras sociais.

- Você está observando as ciganas bonitas, não está? – Miguel sentia muito prazer em encher o irmão com perguntas.

- Como posso estar observando as ciganas, se estou aqui conversando com você, seu idiota? – disse Santiago.

 

- Tenho que ir ao Mercadão – disse Miguel. – Vou comprar algumas coisas para nós comermos.

 

- Que não seja peixe – disse Santiago.

 

- Não será peixe!

 

      O Mercadão era conhecido pela variedade de produtos que os comerciantes ali vendiam em inúmeras barracas enfileiradas uma atrás da outra, como grandes árvores em um bosque. Miguel gostava de andar no meio das pessoas, porque ali no Mercadão encontrava inúmeras pessoas, todas das mais variadas formas e aspectos.  Havia uma mulher com corpo de aranha, que estava sentada no meio de um pequeno palco, onde um verde e alegre duende de dois olhos na barriga tocava flauta e agradecia as tímidas moedas que os transeuntes ofereciam para ele, arremessando-as no ar até o pequeno barril que ele colocara a frente para receber seus trocados. Havia grupos de centauros que discutiam herméticas fórmulas com homens velhos de barbas muito cumpridas que chegavam até o chão. Havia minotauros sem camisetas que pousavam com suas cabeças bovinas para os pintores em forma de baratas que com ágeis mãos (ou patas) faziam ótimas pinturas e esculturas realistas.  Havia tímidas flores que levantavam as cabeças para cantar canções chinesas quando o vendedor chinês chegava até o pote onde elas estavam deitadas e pronunciava algumas palavras nunca ouvidas nesse lado do mundo.  Havia mulheres muito altas com traços romanos no rosto, semelhantes às modelos das passarelas, porém assustavam quaisquer homens que ali passavam, pois não tinham pudor algum em mostrar os seios grandes e esverdeados para quem quer que fosse, ou alguma parte das nádegas muito brancas que se assemelhavam a girassóis ardentes como fogo. Essas eram  as ninfas, musas dos bosques que estavam ali como meras representantes sexuais dos faunos, que sentados ficavam como bons comerciantes esnobes sem esboçar nenhuma reação quando algum turista oferecia pouco dinheiro para se deitar com alguma ninfa de rosto asiático e seio azul.

 

  Miguel ficava encantado com tudo isso, pois além do mercado de peixe, sua única diversão era ir visitar o Mercadão e comprar alguma coisa diferente para o jantar. O pouco dinheiro que herdada de seu pai, um ilustre capitão de navio que foi engolido pelo mar, dava para sustentar ele e seu irmão. A mãe havia se casado novamente e partira para uma terra muito distante, pelo qual os dois irmãos apenas mencionavam para qualquer um que perguntassem por sua mãe que se chamava Terra do Bomfim.

        Ao passar pelo meio do Mercadão, Miguel observou em um canto quieta e silenciosa uma linda mulher de vinte e cinco anos e vinte e cinco séculos que estava sentada em uma cadeira feita de cauda de pássaros muito antigos.

- O que vendes? – perguntou Miguel interessado na beleza diferenciada da mulher.

- Sou uma vendedora de magia – respondeu a mulher sem nenhum orgulho. – Gostaria de comprar uma magia?

 

- Gostaria primeiro de saber o seu nome – disse Miguel. – Você é uma moça muito linda!

 

- Não sou moça – disse a vendedora de magia ríspida. – Me chamo Shelda. Não é um nome muito comum para as pessoas dessa cidade.

 

- Não, não é – disse Miguel. – E o que viria ser magia?

 

- Não sabes o que é uma magia? – perguntou Shelda.

 

- Não sei o que é – respondeu Miguel um pouco envergonhado. – Nunca aprendi isso no seminário que frequentei.

- Isso não tem nada haver com seminários – disse Shelda.

 

- E tem haver com o que? – perguntou Miguel.

 

- Tem haver com encantamentos, bruxarias, ocultismos.

 

 Miguel encarou os olhos de Shelda com interesse. Percebeu que no fundo dos olhos dela estavam milhões de estrelas e planetas bailando num cosmo profundo e denso.

 

- Você é cigana? – perguntou Miguel.

 

- Você faz muitas perguntas, Miguel, disse Shelda. Nunca vi um homem com essa tendência antes. Você precisa usar mais o ponto de exclamação!

 

Você sabe o meu nome, disse Miguel surpreso. De onde nos conhecemos?

 

Vou responder a sua primeira pergunta. Depois eu respondo à segunda, disse Shelda.  Sou cigana, filha de Nabuco e Sarai. Meus pais vieram da Romênia, há muito tempo. Eu te conheço por causa da marca que você tem no seu braço esquerdo. Essa cruz ai, essa cicatriz.

 

Sim, eu tenho uma cicatriz em forma de cruz, e ela está aqui e é bem visível, disse Miguel. Só não estou recordando de você ou de ter te contado sobre minha cicatriz.

Miguel, eu peguei você e Santiago nos braços, disse Shelda.  Eu fui amiga da sua mãe. Há muito tempo eu passei por essa cidade. Vocês eram pequenos, e seu pai era vivo. E nessa época eu já vendia magia.

 

         Miguel ficou extremamente maravilhado com o que disse a cigana. Convidou ela para ir até a sua casa para jantar, o que ela aceitou. Não sem antes fazer Miguel jurar que iria comprar uma magia das mãos dela, antes que os ciganos fossem embora para a próxima cidade.

 

- Eu juro – disse Miguel.

 

 

      Às sete da noite Shelda estava sentada na mesa com os irmãos Miguel e Santiago. Havia pão e queijo na mesa, vinho e bolos de sementes de chocolate. Um pequeno javali assado completava a refeição, que saciou tanto a cigana quanto os dois irmãos.

 

- Miguel disse que a senhorita vende magias – disse Santiago. – O que vem ser isso?

 

- Magia são coisas que os outros não podem ter. Por isso as vendo por um preço bom e barato. E quando essas pessoas tem a magia nas mãos se sentem bem e maravilhadas.

 

- Que coisas seriam? – perguntou Santiago.

 

- Você já quis fazer ventar, não é? Eu vendo magias que podem fazer ventar, chover, crescer árvores, nascer ouro no nariz, afastar lobisomens.

 

- Você vende utilidades, então! – disse Miguel.

 

- Não são utilidades – disse Shelda indignada. – São magias, já o disse.

 

- E você conheceu a minha mãe e meu pai? – perguntou Santiago. – Eles nunca disseram que eram amigos de uma cigana.

 

- Sua mãe nunca me mencionou para vocês porque eu pedi, disse Shelda. Eu sei que ela está na Terra do Bomfim. Passamos por lá, vocês sabem, a caravana de ciganos que eu faço parte. Sua mãe mandou lembranças. Foi uma coincidência fortuita ter encontrado Miguel no grande Mercadão. Vi que seu cabelo loiro é semelhante aos cabelos de sua mãe, mais o rosto puxado em forma de tubarão é semelhante ao vosso pai, sem duvida.

 

- Que bom que você conheceu a nossa mãe! – disse Miguel.

 

   A caravana dos ciganos estava deixando a cidade quando as primeiras estrelas do céu estavam brilhando bem longe. O velho cigano que ia à frente de todos levava um pandeiro e alegre tocava ele com as mãos.

 

  Miguel havia dado uma moeda de ouro para Shelda, antes de se despedir dela. Entregue a magia para Santiago, disse Miguel, ele saberá fazer o melhor com ela.

 

          

            Quando os ciganos já estavam sumindo pelo horizonte, Santiago levantou a magia que Miguel havia comprado de Shelda, a cigana, e arremessou a magia para o céu, que se tornou negro como uma rajada de ventanias frias.

 

 

       Vários peixes prateados começaram a cair de cima das nuvens, batendo sobre as casas e sobre as árvores, derrubando as pessoas desatentas que escorregavam nas barbatanas que se espatifavam no chão.

 

Fim

 

 

 

 

   

 

 

 

AQUELE QUE DORMIU POR MUITO TEMPO

 

AQUELE QUE DORMIU POR MUITO TEMPO

 

- Para Isabel Garcia de Ataide Lima, meu amor: dedico esse conto mágico para minha esposa mágica!

 

                  Francisco levantou os seus olhos azulados pela janela de vidros quebrados e dobradiços de ferro enferrujados e viu que todas as estrelas brancas do mapa astral estavam intactas e continuavam no mesmo lugar. Voltou sua atenção para a rua onde uma senhora simpática e elegante passava do outro lado da rua carregando uma sacola amarela na mão.

  - Boa noite, minha senhora, disse Francisco. Está precisando de ajuda para carregar os seus sonhos até a sua casa?

Não, a velha respondeu cordialmente. Meus sonhos não pesam mais do que meio quilo. Meus braços secos de uvas passas ainda aguentam carrega-los. Obrigada pela preocupação. Vou dispensá-lo da tarefa.

    A velha continuou o seu caminho, subindo a ladeira. Seu corpo ossudo e cabisbaixo parecia antever sonhos belos e fortes. Lá dentro da casa, a mulher de Francisco suspirou bem forte.

                    O aconteceu Amanda?  – perguntou Francisco, preocupado com o suspiro forte que trouxe para dentro da sala da casa um grande vendaval de sinistras andorinhas.  Ele conhecia muito bem os suspiros de Amanda. Quando eles eram lentos como doces rouxinóis, é porque o dinheiro que eles estavam precisando para comprar leite de vampiro ou dente de lobo estava chegando através de algum artificio mágico. Mas quando os suspiros dela eram fortes como a fúria de mil ventos, ele sabia que o pior estava para acontecer.

  - Já vão se fazer três mil anos, Francisco! Três mil anos e ele ainda dorme Francisco. Três mil anos! Três mil anos completados agora. Eu vi, eu olhei, as estrelas brancas continuam no mesmo lugar Francisco.

  Eu sei disso, respondeu Francisco com os olhos marejados de lágrimas. Também me preocupa que ele durma tanto.

Não come, não bebe, não se levanta, continuou Amanda com um suspiro lento e potente como a onda do mar de Julho sem se importar com o que Francisco acabara de dizer. Como eu posso viver sabendo que o meu irmão é um morto que está vivo?

 

             Desde que Roberto deitara seu corpo na cama macia da irmã para tirar um cochilo proveitoso, já que acabava de chegar de viagem e não havia nenhuma cama de hospedes na casa de Francisco e Amada, que ele não se levantava para mais nada.

Se ele tivesse ido para alguma pousada, falou Francisco. Talvez continuasse acordado. E não estaríamos nessa situação constrangedora.

- Eu nunca iria mandar meu irmão para uma pousada - gritou Amanda furiosa. – Minha família jamais perdoaria se eu fizesse algo desse tipo.

 

   A porta da casa estava aberta e foi por ela que entrou Eduarda trazendo na mão cinco galhos de mandrágoras e um elixir da vida eterna. Era uma mulher forte e alta, muito magra, seu pescoço era longo como o de uma girafa e seus cabelos eram ruivos como o fogo. Diziam as más línguas da cidade que ela era uma bruxa, uma verdadeira feiticeira daquelas antigas que eram queimadas escondidas pelos sacerdotes. Até o padre da igreja de mil pedaços caídos tinha medo de Eduarda. Ali na casa de Francisco ela sempre foi bem acolhida, e era uma das melhores amigas de Amanda.

Como vão todos? - perguntou Eduarda sentando no sofá com suas nádegas grandes e volumosas. – O jovem já levantou os olhos?

- Não só não levantou os olhos, como não levantou as mãos, os pés, o corpo, disse Amanda, dando um suspiro tão forte que encheu a casa com um rugido de um leão terrível.

Calma amiga, não precisa suspirar desse jeito, disse Eduarda. Ele vai acordar. Ninguém dorme para sempre.

Só os mortos, tornou a falar Francisco que até aquele momento não tinha dito nenhuma palavra. Eu mesmo já vi um dorminhoco levantando. Só que isso foi há muito tempo, nos dias em que eu me aventurava lá pro norte. Não sei se essas coisas continuam sendo possíveis.

 

Tudo é possível para aquele que crê, disse Amanda. Não é isso o que aprendemos todos nas escolas bíblicas das televisões? Já fiz os meus votos. Se Roberto levantar hoje eu juro que dou aquela galinha que bota ovos de ouro para a caridade. Juramento. Eu jurei Francisco. E você sabe que quando se jura é sagrado.

- Sei muito bem disso – disse Francisco. – Eu mesmo fiz vários juramentos. Um dia jurei para um peixe do oceano que não iria pesca-lo se ele me levasse de volta para o litoral que eu não conseguia mais encontrar, pois eu estava perdido no meio do oceano atlântico. Na aldeia de Altopicoshuypis, meu avô jurou para uma prostituta que iria dar para ela uma estrela cadente que ela viu caindo em direção as Montanhas dos Andes. Ele trouxe para ela a estrela cadente embrulhada em um manto desses que se encontra em qualquer camelô de rua.

 

Todas essas coisas são sérias, disse Eduarda colocando o elixir no meio das pernas que eram grossas e atraentes. Fiz alguns juramentos na minha vida. Alguns juramentos guardei, e manterei assim até o fim. Coisas da qual não posso nunca falar e nem pigarrear. Preciso manter o pacto do silêncio. São juramentos profundos de magia.

Você quer um pouco de café Eduarda? – perguntou Amanda com tristeza. – Meu irmão sempre tomava café nessa hora, comigo e com o Chico. Ficávamos conversando sobre muitas coisas. Agora ele não pode tomar nada e nem conversar nada. Nem água está bebendo. Graças a Deus que não se desidrata.

 

Seu irmão há de acordar, disse Eduarda segurando a xícara de café com lenta atenção de felina. – Será que não tem um pouco de leite para eu misturar com o café?

 

Eu sei que ele há de acordar no último dia, disse Amanda balançando a cabeça de um lado para o outro, preocupada. Quando viu que o suspiro subia pelo seu estômago até a boca tapou os próprios lábios sem vida com a mão direita. 

Sim, ele há de acordar, disse Francisco. E nós vamos voltar a tomar café como antes. E vamos conversar sobre muitas coisas como antes.

 

- Quem está no quarto com o Roberto? – perguntou Eduarda.

 

- Não tem ninguém lá – respondeu Amanda. – As luzes estão apagadas. A última fada que ficou olhando para ele, teve que ser enxotada de lá com a vassoura. Se pelo menos um anjo descesse e viesse ter com ele. Algum milagre. Quantas vezes eu olhei para aquele espelho do quarto enquanto ouvia o suspiro dele eu dizia para cima com os olhos cheios de tartarugas, sim, eu disse: eu creio, eu creio em Magia. Nunca descri. Nunca descrerei. Eu não posso descrer. Nem quando a velhice e a morte fizerem questão de me acompanhar para o túmulo sem flores para onde vou.

- Não diga bobagens – disse Francisco ríspido. – Seu túmulo será cheio de flores e trolls.

- Eu sei disso – disse Amanda. – Meu irmão dorme Francisco. Será que não vê que é por isso que suspiro?

- Não precisa suspirar tanto – disse Francisco. – Estamos cuidando dele. Logo ele acorda.

 

 Um tremor percorreu a casa com uma eletricidade viva, como se vários elefantes estivessem chovendo pelo céu. As telhas da casa se levantaram e tornaram a estrondar no chão. Lá fora a rua estava movimentada, com pessoas ouvindo músicas em seus carros, várias motos passavam em direções variadas, e muitos jovens bebiam cerveja sem nenhuma condescendência com o coração. Quando isso acontecia Francisco descia até o porão, donde tirava uma velha arma que guardava para tempos escusos. Era um velho bacamarte de herança de seu bisavô, um cigano barbudo e hostil que não gostava de discutir termos matemáticos com pessoas que não fossem cristãs. Seu bisavô deixara o bacamarte especialmente para ele, que era o mais novo dos cinco filhos do velho João Cigano. O velho bisavô tinha ficado vivo até os duzentos anos, e era muito bom em xadrez, e somente Francisco conseguiu detoná-lo em uma partida de xadrez.

- Não conte a ninguém sobre isso, meu bisnetinho – disse o velho bisavô. – Você sempre foi o meu neto predileto. Sei que coisas extraordinárias vão acontecer na sua vida. Você é um mago, um grande mágico, como meu pai foi, e o pai dele, e o pai do pai dele, e o pai do pai do pai dele. E sei que coisas maravilhosas acontecerão para você.

 Sempre que segurava o bacamarte na mão, Francisco se lembrava do rosto do seu velho bisavô dizendo tais e tais coisas.

“Velho bruxo, sabia muito bem que o extraordinário iria me cercar por todos os lados”, pensou Francisco, enquanto a voz de seu avô entrava em seu ouvido como um vento. Ele sentiu uma estranha fragrância de rosas invadindo a casa. Voltou para a sala e encontrou Amanda dando um novo suspiro que trouxe para a casa centenas de garças e pelicanos. Eduarda dava batidinhas suaves nas costas de Amanda, como que para acalmá-la.

 O que houve? – perguntou Francisco colocando o bacamarte na mesa.

Sua esposa subiu até o quarto onde está Roberto, para ver se ele havia acordado, disse Amanda.

E ele acordou? É preciso ter esperanças, disse Francisco quase num sussurro inaudível.

- Não, Francisco, ele não acordou – gritou Amanda. – Nem com todos os ruídos que esses mil demônios fazem ali fora ele não acorda. Ele não acorda com nada. Estou cansada de ter esperanças. Não quero ter esperança nenhuma. Esperança era o nome da filha que eu sempre quis ter e nunca vou ter porque não é o meu sonho ser a mãe de uma pessoa que vá dormir para todo o sempre. É assim com a minha família, Francisco, você bem sabe disso: meu avô, meu pai, e agora meu irmão. Todos dormem. Todos se vão para a terra do sono e não se levantam. E as mulheres, nós mulheres, sofremos por eles. Por que eles são a carne da nossa carne e o sangue do nosso sangue.

 

Posso ir chamar um comprador de sonhos, disse Eduarda, eles são pessoas boas no comércio, falam por ai que é por causa do sangue semita misturado com o sangue grego; eu tenho minhas dúvidas, só conheço um que é sábio como uma coruja e esperto como uma raposa. Quem sabe pode ajudar...

Nunca gostei de raposas, disse Francisco, é melhor deixarmos o tempo resolver essa questão. Mesmo que durem mais três mil anos. Já vi velhos errantes passarem por aqui nessas bandas com sacolas cheias de ouro e diamantes. É só uma questão de tempo e matemática.

 

 Amanda levantou um suspiro que estremeceu não só a casa e a rua, toda a cidade estremeceu dentro de seu suspiro. Um grande trovão chocalhou a prefeitura onde o gordo prefeito estava sentado comendo um baiacu vivo com uma esponja em forma de garfo e faca.

- O que foi isso, o que foi isso, Marieta? – perguntou o prefeito para Marieta, sua secretaria que parecia um palito de fósforo com sete dedos nas mãos de tão rápida que digitava no computador os seus nadas em brancos.

- É a mulher que estava suspirando por causa do irmão que continua dormindo – disse Marieta com sua voz de ganso em grasnados lentos.

- Aquele que dormiu por muito tempo? É esse? – perguntou o prefeito novamente, antes de abrir sua boca e engolir de uma só vez o baiacu entre suas mandíbulas.

- É esse mesmo prefeito – disse Marieta.

- E o que a prefeitura pode fazer para ajudar essa coitada? – perguntou o prefeito com uma gargalhada, como se já soubesse a resposta da secretária.

A secretaria tirou o búfalo que estava segurando sua pasta com as mãos cheias de pelos negros e antes de responder olhou a lâmpada que parecia estar sendo penetrada por uma orgia errante de duendes eletrônicos.

- A prefeitura não pode fazer nada – disse Marieta. – Não temos verbas para ajuda-los. Só para nos ajudar!

 

“Se todos esses suspiros pudesse acordar esse coitado infeliz”, pensou Francisco serenamente, olhando a rua cheia de jovens e motos e carros. Viu que um garoto de quatorze anos se assemelhava muito com Roberto, pois ele também tinha nariz aduncado, olhos negros perspicazes, movimentos ágeis com os pés em forma de ovelhas e chifres de faunos nos tufos escuros e loiros da cabeça.

Eduarda já tinha ido embora, e o relógio da sala estava em um silêncio de túmulo e dias antigos. Uma chuva serena não fez espantar os meninos e meninas que se agitavam como cotovias na frente da rua. “Claro que ele vai despertar, mais não é a hora, nem o dia, nem o momento”, pensou Francisco. Amanda estava dormindo como uma sonambula há três mil dias. Seu irmão não estava morto, apenas dormia o sono dos justos. Francisco guardou o bacamarte do bisavô cigano no porão. “Velho bruxou” pensou balançando a cabeça como um dinossauro com sono. De novo enfiou a cara larga e vermelha pela janela aberta. Seus olhos azulados faiscaram com a passagem do vento coberto de cobres e carregado de um odor de urina. Viu que todas as estrelas brancas do mapa astral estavam intactas e continuavam no mesmo lugar. Antes de fechar a janela Francisco deu um largo suspiro, que fez o mar arrepiar seus braços titânicos de água.

 Depois disso foi dormir com medo de nunca mais acordar, assim como Roberto.

 

Fim